Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Racismo policial e omissão midiática: por que esconder que Jefferson era negro?

No dia 8 de fevereiro de 2024, uma violenta operação policial no Complexo da Maré em busca de carga de veículos roubados provocou um protesto de moradores na Av. Brasil. Esse protesto terminou com a trágica morte de Jefferson de Araújo Costa, um jovem negro de 22 anos, entregador e ajudante de pedreiro. Morreu após um disparo de fuzil à queima-roupa de um PM que reprimia a manifestação. 

Vídeos de celulares, e também da câmera do uniforme do policial, mostram o momento em que o agente se aproxima de Jefferson, dispara, insulta o rapaz, depois entra na viatura e vai embora sem prestar socorro. No mesmo dia, o policial foi autuado por homicídio culposo e omissão de socorro, mas, no dia seguinte, o juiz pediu sua prisão preventiva e analisa o caso como homicídio qualificado.

A grande imprensa repercutiu amplamente o episódio, mas de forma seletiva. O Globo publicou cinco artigos noticiosos, o jornal O Dia publicou sete e a Folha de São Paulo publicou um. Estadão e Valor Econômico não publicaram. Foram 13 artigos no total entre os dias 8 e 11 de fevereiro no site desses jornais. E nenhum deles informa que Jefferson era negro. Por quê? Ele é descrito como “jovem”, “portador de necessidades especiais”, “trabalhador” e “morador da Maré”. Uma das notícias informa até que Jefferson seria pai em breve. Mas por que omitem a informação de que Jefferson era negro?

A ONG Redes da Maré, que produz jornalismo alternativo, diz claramente em uma nota publicada sobre o caso que Jefferson era negro. Os familiares de Jefferson presentes no protesto são negros. Os vídeos da morte de Jefferson mostram que ele era negro. A maioria dos 140 mil moradores do Complexo da Maré são negros. Mas por que a grande imprensa decide que a cor da pele de Jefferson não é relevante para ser mencionada nas notícias?

Vejamos mais de perto. Um jovem negro é morto pela polícia, com um tiro de fuzil, à queima-roupa, sem chance de se defender, sem socorro. Desse contexto, a única informação que foi invisibilizada de forma unânime foi a cor da pele da vítima. Omitir que o tiro de fuzil à queima roupa foi contra um homem negro, nesse caso, é escolher recusar toda a discussão que explica por que esse tipo de “equívoco de abordagem”, como classificou o Secretário da PM, só acontece contra um negro na periferia. 

Ao omitir que se trata de mais um jovem negro assassinado pela polícia, a grande imprensa se exime também da discussão que necessariamente viria junto com esse dado: abordar a banalização da morte dos negros nas favelas, a política de extermínio do Estado na periferia e o racismo intrínseco às ações da polícia. Lembrando que o atual Governador Cláudio Castro é responsável por 3 das 5 maiores chacinas do estado do RJ. E a cada 4 horas uma pessoa negra é morta pela polícia no Brasil, segundo a Rede de Observatórios da Segurança.

Num país historicamente marcado pelo assassinato e encarceramento em massa de pessoas negras, essa omissão é mais uma prova do pacto da grande imprensa com as forças policiais. E isso é gravíssimo sob diversos aspectos. O alinhamento dos jornais com as instituições do Estado compromete a independência dos veículos de comunicação, que deveriam ter como compromissos a defesa da igualdade étnico-racial, a defesa contra todas as formas de discriminação e a defesa das liberdades democráticas.

A operação policial que provocou o protesto na Av. Brasil se espalhou por seis favelas no Complexo da Maré, com tiroteios e pânico durante três horas. Todos os veículos roubados foram recuperados. A “missão” foi cumprida. Mas a que preço? Como menciona a nota da Redes da Maré, além da morte de Jefferson, uma série de direitos fundamentais foram violados, como o fechamento das Clínicas da Família, escolas que não funcionaram, comércio que não abriram as portas, moradores que não conseguiram ir e vir. Sem contar os incalculáveis danos psicológicos causados pelas intervenções policiais violentas mesmo após a saída da polícia. 

Se houvessem liberdades democráticas e de protesto, se os negros não fossem tratados como criminosos a priori, Jefferson estaria vivo agora. Jefferson era negro. E ser negro não é crime.

Artigos utilizados na pesquisa:

REDES DA MARÉ – Nota da Redes da Maré sobre a operação policial de 8 de fevereiro de 2024.

https://www.redesdamare.org.br/br/artigo/324/nota-da-redes-da-mare-sobre-a-operacao-policial-de-8-de-fevereiro-de-2024 

FOLHA DE SÃO PAULO

Homem é baleado à queima-roupa por policial na avenida Brasil, no Rio.

https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2024/02/homem-e-baleado-a-queima-roupa-por-policial-na-avenida-brasil-no-rio.shtml 

JORNAL O GLOBO

Família de jovem morto por PM na Maré levou mais de quatro horas para liberar o corpo por não ter documento.

https://oglobo.globo.com/rio/noticia/2024/02/10/familia-de-jovem-morto-por-pm-na-mare-levou-mais-de-quatro-horas-para-liberar-o-corpo-por-nao-ter-documento.ghtml 

‘A gente está vivendo o inferno, o luto e a impunidade ao mesmo tempo’, diz irmã de jovem morto por tiro à queima-roupa na Maré.

https://oglobo.globo.com/rio/noticia/2024/02/09/a-gente-esta-vivendo-o-inferno-o-luto-e-a-impunidade-ao-mesmo-tempo-diz-irma-de-jovem-morto-por-tiro-a-queima-roupa-na-mare.ghtml 

Secretário da PM admite ‘abordagem completamente equivocada’ a jovem morto à queima-roupa na Maré, mas defende que agente está apto a trabalhar.

https://oglobo.globo.com/rio/noticia/2024/02/09/secretario-da-pm-admite-abordagem-completamente-equivocada-a-jovem-morto-na-mas-defende-que-agente-esta-apto-a-trabalhar.ghtml 

Policial militar mata homem após atirar à queima-roupa durante operação no Complexo da Maré.

https://oglobo.globo.com/rio/noticia/2024/02/08/policial-militar-atira-em-homem-a-queima-roupa-durante-operacao-no-complexo-da-mare.ghtml 

Morte à queima-roupa na Maré: ‘Policial chegou jogando spray, atirou e depois correu para a viatura’, diz irmã da vítima.

https://oglobo.globo.com/rio/noticia/2024/02/08/morte-a-queima-roupa-na-mare-policial-chegou-jogando-spray-atirou-e-depois-correu-para-a-viatura-diz-irma-da-vitima.ghtml 

JORNAL O DIA

Jovem morto à queima-roupa por PM é enterrado no Cemitério de Inhaúma.

https://odia.ig.com.br/rio-de-janeiro/2024/02/6791136-jovem-morto-a-queima-roupa-por-pm-e-enterrado-no-cemiterio-de-inhauma.html 

Jovem morto com tiro à queima-roupa por PM na Maré será enterrado em Inhaúma.

https://odia.ig.com.br/rio-de-janeiro/2024/02/6790822-jovem-morto-com-tiro-a-queima-roupa-por-pm-na-mare-sera-enterrado-em-inhauma.html 

Justiça converte para preventiva prisão de PM que matou jovem com tiro à queima-roupa na Maré.

https://odia.ig.com.br/rio-de-janeiro/2024/02/6790573-justica-converte-para-preventiva-prisao-de-pm-que-matou-jovem-com-tiro-a-queima-roupa-na-mare.html 

No IML, irmã de jovem morto por PM com tiro à queima-roupa desabafa: ‘Quero que esse policial pague’.

https://odia.ig.com.br/rio-de-janeiro/2024/02/6790407-no-iml-irma-de-jovem-morto-por-pm-com-tiro-a-queima-roupa-desabafa-quero-que-esse-policial-pague.html 

Policial que matou jovem na Maré é preso; agente responderá por homicídio culposo.

https://odia.ig.com.br/rio-de-janeiro/2024/02/6789997-policial-que-atirou-em-jovem-a-queima-roupa-na-mare-e-preso-agente-respondera-por-homicidio-culposo.html 

PM instaura inquérito para apurar morte de jovem baleado à queima-roupa na Maré.

https://odia.ig.com.br/rio-de-janeiro/2024/02/6789849-pm-instaura-inquerito-para-apurar-morte-de-jovem-baleado-a-queima-roupa-na-mare.html 

PM mata jovem com tiro à queima-roupa durante operação no Complexo da Maré.

https://odia.ig.com.br/rio-de-janeiro/2024/02/6789732-homem-morre-apos-ser-baleado-a-queima-roupa-por-pm-durante-operacao-no-complexo-da-mare.html 

 

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Glaucia Almeida Reis Blanco é
Bacharel em Comunicação-Jornalismo (UFJF), Mestre em Relações Étnico-Raciais (Cefet/RJ) e Especialista em Gestão Estratégica da Comunicação (FACHA). Atua como servidora pública em assessoria de imprensa e tem produção acadêmica com pesquisas sobre jornalismo, redes sociais, análise do discurso e a questão racial no Brasil.

Flávio Almeida Reis é licenciado e mestre em Geografia pela UFF.