A palavra veganismo tem sido mencionada e abordada com uma crescente frequência nos portais, telejornais, rádios e mídias impressas. Cada vez mais reportagens e notícias falam do “estilo de vida vegano”, do mercado de produtos “veganos”, de grandes empresas que faturam alto com o “nicho vegano”, de celebridades adeptas do modo de vida ou da “dieta vegana” etc.
Isso tem animado boa parte da comunidade vegana brasileira e de outros países, já que representaria o aumento da visibilidade das pautas centradas na ética animal. Mas a verdade, infelizmente, é que precisamos ser muito mais céticos com essa suposta popularização midiática.
Neste artigo, pretendo mostrar por que esse “estilo de vida” que a imprensa tem divulgado, longe de significar o modo de vida antiespecista e politizado que tem se desenvolvido desde a década de 1940, não passa de um “veganismo” que pecuarista gosta.
O que é realmente o veganismo, afinal de contas?
Antes de descobrir como e por que a mídia vive descaracterizando o veganismo, é necessário você saber, a princípio, a verdadeira definição dele.
Segundo a Vegan Society, entidade britânica que o fundou cerca de 75 anos atrás, o veganismo “é um modo de vida que busca excluir, na medida do possível e praticável, todas as formas de exploração e crueldade promovidas contra animais para fins de alimentação, vestuário e qualquer outro propósito”.
A VS complementa que “uma coisa que todos nós, veganos, temos em comum é uma alimentação vegetal que evita todo e qualquer alimento de origem animal, como carne (incluindo peixes, moluscos e insetos), laticínios, ovos e mel – assim como produtos como couro e qualquer um testado em animais”.
De modo de vida baseado em evitar e substituir produtos de origem animal e/ou testados em cobaias, o veganismo foi evoluindo para um poderoso posicionamento ético e político orientado a combater o especismo, sistema de crenças que considera os animais não humanos moralmente inferiores aos humanos e que trata animais de determinadas espécies como mais inferiores que os de outras, além de toda e qualquer forma de exploração animal.
Portanto, para além de evitar consumir produtos cuja fabricação e certificação envolvem exploração animal, o vegano também boicota empresas que possuem alguma política especista, como testar ingredientes de seus produtos em animais; vender para o mercado chinês, onde os testes em animais são obrigatórios em diversas situações; patrocinar entretenimentos e eventos especistas, como rodeios, vaquejadas, apresentações de animais e desfiles de moda que promovem o uso de pele animal; e usar animais “de carga” ou “de tração” na obtenção de suas matérias-primas.
Também evita ir a zoológicos, rodeios, vaquejadas, circos com animais, aquários que mantêm animais em cativeiro, hotéis-fazenda que oferecem cavalgada e passeios de charrete puxada por animais etc., exceto para fins de denúncia e obtenção de indícios de violência contra os animais. Repudia a compra de animais domésticos, o aprisionamento de aves em gaiolas e peixes em aquários e o “emprego” de cães “de guarda” e “policiais”, assim como todas as demais formas de uso proprietário de animais. Não apoia reformas de “bem-estar animal”, que sempre visam refinar, “amadurecer” e tornar mais palatável, nunca enfraquecer, a exploração dos animais.
E sempre que pode e considera oportuno, promove alguma forma de ativismo em defesa dos direitos animais – ou seja, os direitos dos animais à vida, à liberdade, à integridade física e psicológica, à socialização e, sobretudo, o de não ser tratado como propriedade. Pode compartilhar conteúdo de conscientização vegana nas redes sociais, conversar com pessoas próximas que ainda não compreendem bem o veganismo e a ética animal, produzir materiais como blogs, sites, livros, podcasts, páginas sociais e canais de vídeo sobre o tema, participar de eventos intelectuais pró-direitos animais e mobilizações contra uma ou mais formas de exploração animal etc.
Uma vez que o veganismo defende o fim da hierarquização moral entre os seres humanos e os animais não humanos, o que logicamente se espera é que o vegano também se posicione com veemência contra outras formas de hierarquização moral, tais como o racismo, o machismo, a LGBTfobia, o elitismo, a xenofobia, a intolerância religiosa, o capacitismo, a psicofobia, a gordofobia, o antropocentrismo etc. Por isso, é muito comum um vegano ser contrário ao capitalismo e a ideologias de direita, por causa de suas muitas hierarquizações sociais e morais, opressões, injustiças e violências.
O que a mídia tenta nos convencer de que seria o veganismo
O grande problema é que o “veganismo” que a mídia menciona e às vezes até elogia quase nunca é esse posicionamento antiespecista, igualitário e pró-justiça. Mas sim algo radicalmente diferente, muito menos sério e politizado.
O que a maioria dos veículos de comunicação chama de “veganismo” nada mais é do que um hábito de consumo submisso ao capitalismo, motivado por uma misericórdia bem-estarista – que nada tem a ver com direitos animais e oposição ao especismo – por animais “de consumo” vítimas de maus tratos chocantes, por preocupação pelo meio ambiente e/ou por saúde e “boa forma”. Aliás, em diversas situações ele aparece como uma mera dieta vegetariana – sendo chamado, nesses casos, de “dieta vegana”.
Às vezes, ele é descrito como se fosse uma espécie de posicionamento religioso, baseado em crenças subjetivas que nem sempre encontrariam comprovação na realidade material.
Muitas matérias, aliás, sequer mencionam o respeito dos veganos aos animais, tampouco o objetivo de ser vegano. Reduzem o veganismo a um estilo de vida que seria um fim em si mesmo, algo que as pessoas adotam porque acham “legal” e “a moda do momento”. Ou então a um nicho de mercado semelhante ao de produtos “naturais” e fitness.
Falando em nicho, tem sido cada vez mais comum reportagens abordarem esse modo de vida a partir de uma ótica mercantilista e aética. Colocam os anseios dos veganos não como algo que diz respeito a mudar as tradições, crenças e valores especistas e desigualitários vigentes, mas sim como uma oportunidade de lucro fácil para empresas inescrupulosas que querem faturar com o “mercado vegano” sem abandonar suas práticas e políticas de exploração animal.
Em outras palavras, essas matérias incentivam que tais empreendimentos promovam a desonesta estratégia de marketing chamada vegan-washing. Por meio desta, eles passam para o público a falsa imagem de “preocupação com os animais” e “apoio à causa vegana”, enquanto continuam realizando ou terceirizando cruéis testes em cobaias, patrocinando eventos de exploração animal, cometendo crimes ambientais e trabalhistas, promovendo violações de direitos humanos e, sobretudo, conservando ou mesmo fortalecendo seus negócios de produtos animais.
É a partir dessa manipulação despolitizadora do veganismo que grande parte da imprensa tem naturalizado e banalizado a atitude dessas empresas de lançar produtos rotulados como “veganos” enquanto persistem explorando e matando animais.
No mais, esforça-se em converter um modo de vida ético e antiespecista, que peita os interesses de pecuaristas e outros latifundiários, empresários da pesca e da indústria frigorífica, vendedores de animais, donos de laboratórios de cobaias etc., num mero consumo seletivo modista que não os incomoda. Num “veganismo” que pecuarista gosta.
Conclusão
A imprensa quase toda está promovendo um imenso desserviço ao apagar a essência ética e política do veganismo e, assim, proteger os negócios de gente que fatura milhões ou bilhões com a exploração e matança de animais. Quando ela fala de “veganismo”, não está se colocando ao lado dos animais e da proposta ética e política do movimento vegano, mas sim apenas favorecendo interesses de mercado.
Diante disso, nós, veganos, nos vemos obrigados a nos virar e criar nossa própria mídia alternativa, já que a tendência é apenas raramente a imprensa estar do nosso lado e não de quem explora animais e manipula o público vegano.
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Robson Fernando de Souza é escritor e blogueiro defensor da neurodiversidade e do veganismo político.