Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Armadilha discursiva do governo Bolsonaro dita a agenda pública nacional

(Foto: Fotos Públicas – Marcos Corrêa/PR)

Nos anos 1970, os pesquisadores estadunidenses Maxwell McCombs e Donald Shaw formularam a hipótese do “agendamento midiático”, que parte do princípio de que os consumidores de notícias tendem a considerar mais importantes os assuntos que são abordados com maior destaque na cobertura jornalística (tanto nos veículos impressos quanto nos eletrônicos). De acordo com essa linha de pensamento, as notícias veiculadas na imprensa não determinam necessariamente o que as pessoas pensam sobre uma temática qualquer, porém são bem-sucedidas em fazer com que o público pense e fale sobre um assunto e não sobre outros.

Cinco décadas após os pioneiros estudos de McCombs e Shaw, os grandes grupos de comunicação perderam o monopólio de determinar a agenda pública nacional; os assuntos sobre os quais a maioria das pessoas discutirá cotidianamente não são apenas aqueles escolhidos pela imprensa tradicional, mas, em muitas ocasiões, referem-se aos conteúdos veiculados na internet. Não por acaso, é cada vez maior o número de políticos, jogadores de futebol, músicos e atores que escolhem as redes sociais para se comunicar diretamente com o grande público, ao invés de recorrer às mídias tradicionais.

Nesse sentido, o atual governo brasileiro tem sido muito bem-sucedido em ditar os rumos da agenda pública nacional. Isso significa que cada tuíte polêmico de Bolsonaro, cada vídeo com declarações anódinas da ministra Damares Alves ou as críticas descabidas do ministro da Educação, Abraham Weintraub, a Paulo Freire rapidamente se transformam nos assuntos mais comentados em todo o país. Como apontou um colega de trabalho, independentemente de posicionamentos ideológicos, não conseguimos passar um dia sequer sem falar do governo Bolsonaro.

Mas, na prática, o que significa o fato de o governo definir os rumos da agenda pública nacional? Primeiramente, podemos dizer que Bolsonaro, com suas declarações incisivas e bombásticas, busca consolidar sua base de apoio, formada por indivíduos que defendem incondicionalmente todas as falas do “mito” (por mais “injustificáveis” que possam parecer) e inundam as redes sociais com os famosos questionamentos “e o PT?”, “e Lula?”, “e Dilma?”.

Pragmaticamente falando, para um governo que não foi eleito pela maioria dos eleitores (somados, os votos de Haddad, brancos, nulos e abstenções superaram a votação de Bolsonaro) e, não obstante, vê os seus (já baixos) índices de aprovação em queda livre, é importante sustentar seu público fiel. Faz parte da estratégia de governabilidade. Típico exemplo de “jogar para a plateia”.

Por outro lado, as declarações polêmicas de Bolsonaro e de outros membros de seu governo servem para desviar o foco e distrair a população sobre o que realmente é o principal objetivo do atual mandato presidencial: aplicar a nefasta e impopular agenda neoliberal, responsável pela política de terra arrasada que visa desmontar o Estado brasileiro e colocá-lo à disposição do grande capital internacional.

Assim, paulatinamente vamos perdendo direitos trabalhistas, a Previdência está sendo destruída, serviços públicos vão sendo exterminados, universidades e institutos federais são sucateados, a Amazônia é entregue para os Estados Unidos e o Intercept divulga matérias que demonstram o quão nocivas são as ações da Operação Lava Jato; mas as pessoas, nas ruas, estão discutindo sobre menino vestir azul e menina vestir rosa, se “ideologia de gênero” é coisa do diabo, o que é golden shower ou se evacuar dia sim, dia não, é benéfico para o meio ambiente.

Diante dessa realidade, os grandes veículos de comunicação, astutos como de costume, sabem se aproveitar como ninguém das idiossincrasias de Jair Bolsonaro e dos membros de seu governo. Criticam veemente cada barbaridade verbal vinda do presidente e de seus ministros e, em contrapartida, se calam diante dos malefícios gerados para os trabalhadores pela política econômica neoliberal. Desse modo, além de atender aos interesses diretos de seus financiadores (empresários e banqueiros), alguns dos principais articulistas da imprensa hegemônica ainda saem como “progressistas” e estimuladores do pensamento crítico.

Conforme apontado anteriormente, não nos causa surpresa o fato de o cidadão comum cair na armadilha discursiva feita pelo governo. Afinal de contas, a maioria das pessoas, demasiadamente preocupadas com suas obrigações rotineiras, tende a seguir a agenda pública nacional.

No entanto, o que chama bastante atenção é que setores que se consideram progressistas também estão aderindo à agenda ditada pelo governo. Desse modo, boa parte da esquerda brasileira (sobretudo aquela ligada às chamadas “pautas identitárias”) não denuncia as medidas neoliberais do governo, preferindo discutir temáticas moralistas. Isso significa que, enquanto os mínimos direitos democráticos da população estão sendo sumariamente eliminados, “jogados pelo ralo”, a “esquerda identitária” se preocupa em “lacrar” nas redes sociais com textões empoderados que usam linguagens não-binárias.

E, assim, o governo brasileiro tem obtido bastante êxito em sua estratégia de desviar a atenção do público e mantê-lo distraído em relação às questões realmente importantes, que afetam diretamente a vida do trabalhador brasileiro. Trata-se da prática qualificada pelo linguista e ativista estadunidense Noam Chomsky como “estratégia de distração”. Se o governo ainda não tem o poder de decidir sobre como as pessoas vão pensar, por outro lado podemos dizer que, em muitas ocasiões, já se encontra em reais condições de apontar sobre quais temas o público vai discutir. Maquiavel ficaria muito surpreso com o cenário político brasileiro deste início de século XXI.

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Francisco Fernandes Ladeira é mestre em Geografia pela UFSJ e professor do PROEJA do IFES – Campus Vitória. Autor (em parceria com Vicente de Paula Leão) do livro A influência dos discursos geopolíticos da mídia no ensino de Geografia: práticas pedagógicas e imaginários discentes, publicado pela editora CRV.