Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

As nefastas consequências potenciais do jornalismo capacitista para os autistas

Aviso de conteúdo: este artigo descreve atos de capacitismo contra autistas e cita termos depreciativos. Leia-o apenas se estiver certo de que não sofrerá gatilhos emocionais.

A abordagem capacitista e degradante do autismo pela imprensa faz muito mal para nós, autistas. Isso deveria ser óbvio, mas infelizmente não é para grande parte, se não a maioria, dos responsáveis por veículos de comunicação brasileiros e de outros países.

Afinal, muitas de suas notícias e reportagens insistem em chamar a nossa condição de “doença”, abordá-la como se fosse uma grave e trágica patologia e tratar a nós, autistas, como “pobres vítimas” dela.

Diante dessa infeliz realidade, neste artigo eu abordo o quanto essa maneira de falar sobre o autismo e os autistas é irresponsável e pode acarretar, quando já não acarreta, consequências muito perniciosas para quem tem um cérebro diferente do padrão neurotípico.

O impacto psicológico da abordagem degradante do autismo nos leitores autistas
Podemos perceber que, via de regra, o jornalista que redige matérias que abordam ou mencionam o autismo em teor capacitista desconsidera que a empresa de comunicação para a qual trabalha possui centenas ou milhares de leitores, telespectadores ou ouvintes autistas.

Isso não o deixa ver que determinados conteúdos redigidos sobre a condição, ou que a citam, tendem a ter um desastroso impacto no psicológico dessa parcela do seu público.

Sem essa consciência e sensibilidade, acaba gerando matérias que descrevem o autismo de maneira patologizante, lhe atribuem características estereotipadas, como “falta de empatia”, “propensão a ataques de fúria” e “incapacidade de se comunicar”, deixam a entender que a população neurodiversa “sofre” da condição e seria impedida por ela de ter uma vida digna e ser feliz, dão voz apenas aos pais de autistas e ressaltam que ele “ainda” não tem cura e há “esperança” dessa “cura” para daqui a alguns anos.

O leitor autista que se depara com isso, se não tiver o devido preparo emocional para dar de cara com matérias tão mórbidas, ainda mais se for criança ou adolescente, vai se achar a pessoa mais inferior, enferma e “bizarra” do mundo.

Vai se ver como “portador de uma doença irreversível”, menos capaz do que os neurotípicos, alguém que “precisa ser curado” para enfim ganhar o respeito de seus colegas de escola e de internet e da sociedade como um todo.

Acreditará que seus comportamentos, vistos como “esquisitos” e “retardados”, que despertam o ódio dos bullies e a intolerância de professores e parentes abusivos, são fruto de uma “perturbação neurológica”, ao invés de simples excentricidades humanas que deveriam ser aceitas e respeitadas.

Pensará que o problema real é ele ser “doente”, “perturbado” e “anormal”, e não que a maioria das pessoas ao seu redor pode ser preconceituosa, desrespeitosa, antiética e ignorante sobre a natureza do autismo.

O que tende a surgir nesse leitor, a partir do acúmulo de reiterações de sua suposta inferioridade, na imprensa e em diversas ocasiões, são problemas como autoestima cada vez mais baixa e degradada, complexo de inferioridade, síndrome do impostor, depressão, transtornos como ansiedade generalizada e estresse pós-traumático, ideações suicidas ou homicidas, doenças de natureza psicossomática, baixa imunidade e diminuição considerável da sua expectativa de vida.

A má influência do jornalismo capacitista na visão da sociedade sobre os autistas e na forma de ela nos tratar
Além de contribuir para que os autistas adoeçam mental e fisicamente, o jornalismo capacitista é uma péssima influência para os neurotípicos que convivem ou conviverão com pessoas neurodiversas.

Um neurotípico que cresce e amadurece ouvindo ou lendo todas as já mencionadas desinformações sobre o autismo tende a ser uma pessoa cruel conosco.

Se ele aprende e reaprende constantemente, por meio de jornalistas que lhe inspiram confiança, que o problema seria o autismo – e, por tabela, a existência dos autistas -, e não o preconceito contra neurodiversos, então provavelmente ele nos verá como coitados que precisam ser “salvos” da condição. Ou acreditará que o mundo seria “melhor” e “mais ordeiro” se apenas neurotípicos existissem.

Nos verá como pessoas inferiores, dignas de pena ou desprezo. Opinará que não deveríamos estudar ou ter estudado nas mesmas escolas que os “normais”. Que não seríamos capazes de trazer contribuições positivas notáveis para o mundo. Que o Estado e a comunidade médica deveriam promover pesquisas de meios de “curar” a nossa “doença”, ao invés de “gastar sem necessidade” em políticas de inclusão, acessibilidade e atendimento de nossas necessidades específicas.

Daí, ele adotará contra nós diversos comportamentos intolerantes, entre eles bullying, apoio a ONGs adeptas do modelo médico do autismo, discursos de ódio, defesa de terapias abusivas e dietas restritivas para “curar o autismo”, uso das palavras “autista” e “autismo” para insultar colegas ou oponentes políticos etc.

Todas essas atitudes, adotadas por milhões de pessoas, fazem nossa vida neurodiversa ter muito menos prazer e alegrias e muito mais privações e sofrimentos do que deveria.

Dois exemplos de destaque
Algumas matérias chamam bastante a nossa atenção, no sentido de ter o potencial de esmigalhar o psicológico de leitores autistas e perverter a visão dos neurotípicos sobre o nosso neurodesenvolvimento.

O primeiro exemplo que quero mencionar – do qual eu e muitos outros autistas temos nos queixado há cerca de uma semana, sem nenhuma resposta consistente até o momento – é a reportagem “Graças ao óleo de cannabis, o mistério do autismo pode ser resolvido”, publicada no último dia 4 no site da revista Época.

Ela mostra o autismo de maneira bastante depreciativa e patologizante. Diz que ele “é um mistério”, como se autistas não fossem capazes de revelar ao mundo o que são e sentem e como vivem tendo um cérebro diferente. Atribui-lhe “sintomas”, como ataques de fúria, torpor, distúrbios nervosos e ansiedade, que nem todo autista possui. Associa-o ao consumo de “um coquetel completo de remédios com tarjas assustadoras”, como se quisesse compará-lo com um câncer resistente à mais pesada quimioterapia. Subentende que autistas seriam “vítimas” que precisariam ser “salvas” do próprio cérebro neurodivergente. Fala do óleo de cannabis não como um remédio que pode simplesmente melhorar nossa qualidade de vida e nos ajudar a prosperar naquilo em que somos bons, mas como uma espécie de “esperança de cura” para nos converter em neurotípicos. Só considera os interesses e desejos dos pais de autistas, não os dos próprios neurodiversos.

Um autista desprevenido que tiver a infelicidade de ler essa matéria poderá sofrer um sério gatilho psicológico. Vendo sua condição ser rebaixada a uma “trágica doença” e tendo sua identidade social reduzida à de um enfermo sofredor que precisa ser curado, sua talvez já degradada autoestima irá decair mais ainda. Se tem depressão e/ou transtorno de ansiedade, elas poderão disparar de novo. Se é propenso a meltdowns em situações de opressão psicológica, provavelmente sofrerá mais uma crise do tipo.

E um neurotípico que não acessa conteúdos pró-neurodiversidade e foi acostumado com ideias preconceituosas sobre o autismo, depois de ler tal texto, tende a ter suas crenças reconfirmadas. Pensará que a condição “deve ser curada mesmo”, que autistas seriam mesmo uma espécie de “pobres doentes” portadores de encefalopatia severa e passariam a vida toda sofrendo por causa da “patologia”. Com isso, continuará nos tratando de maneira vitimizadora, sem reconhecer nossas capacidades e poderes, nos reduzindo a coitados incapazes que precisariam ser sempre defendidos pelos pais ou por outros neurotípicos e transformados em “pessoas normais” para enfim podermos ser felizes.

Outro exemplo que se destacou negativamente, em setembro passado, foi a matéria “O que é a síndrome de Asperger, transtorno do qual sofre (sic) a ativista Greta Thunberg”, publicada no GaúchaZH poucos dias depois do discurso da ambientalista aspie na Cúpula do Clima da ONU.

Repetidas vezes, a matéria usa o termo “doença” para se referir ao que é atualmente denominado “transtorno” do espectro autista de nível 1 pelo DSM-5, e com renomeação prevista também para o CID-11 em 2022. Foca quase que somente nos seus aspectos negativos. Menospreza o lado positivo de ser autista aspie, inclusive não explicando como o Asperger/TEA nível 1 foi decisivo para moldar o poderoso e inspirador ativismo de Greta.

Reserva, pelo contrário, um olhar negativo ao talento dela, ao dizer que “a sueca vem se tornando alvo de críticos pela intensidade de seu posicionamento”. Não menciona a declaração da forte e inteligente adolescente sueca de que “dadas as circunstâncias, ser diferente (autista) é um superpoder”. Em resumo, aborda a neurodivergência de pessoas como Greta e eu como se fosse um problema, e não um rico motor de potenciais talentos e traços maravilhosamente positivos de personalidade.

Um autista de nível 1 que lê um conteúdo assim pode se sentir mal. Poderá acreditar que, mesmo para uma pessoa tão talentosa como Greta Thunberg, ser autista seria um “problema”, algo que inerentemente traria muito mais prejuízos do que benefícios. Que, se o aspie sofre com a rejeição dos colegas e os estímulos sensoriais excessivos da cidade, seria especificamente por ser autista, e não porque a sociedade capacitista e psicofóbica entre a qual ele vive não o respeita, não reconhece suas necessidades específicas, nem o vê como uma pessoa digna que quer viver bem, ser feliz e, em muitos casos, contribuir para um futuro melhor para todos.

Daí vai sentir o que já foi mencionado: autoestima degradada, surto depressivo, crença de que o “melhor” seria pessoas “fora do normal” como ele terem seu autismo forçadamente suprimido e serem convertidas em “normais”…

E o leitor que porta preconceito e ignorância sobre a diversidade cerebral humana vai ter suas crenças capacitistas reiteradas. Com isso, continuará tratando autistas como “doentes”, “vítimas” de seu próprio cérebro, com uma inferiorizante comiseração, defendendo “cura” e a repressão de comportamentos autísticos, acreditando que nós não temos tanto talento, potencial e habilidades quanto os neurotípicos…

Apesar de todos esses problemas serem apontados e leitores autistas terem reclamado, a GaúchaZH ignorou as queixas e manteve a preconceituosa matéria inalterada, assim como o site da revista Época está fazendo em relação à reportagem sobre óleo de cannabis.

Conclusão
Sempre que falar sobre pessoas neurodiversas, o jornalismo precisa ser, antes de tudo, responsável, empático e, sobretudo, ético. Mas, infelizmente, vez ou outra essa atitude respeitosa se encontra em falta. Matérias preconceituosas, mantenedoras e reforçadoras da opressão contra autistas e tóxicas à saúde mental de leitores neurodivergentes são publicadas e, apesar das reclamações, mantidas sem alterações significativas.

Tenho a esperança de que, algum dia, com o crescimento do ativismo autista contra o capacitismo e a psicofobia, esse comportamento seja banido de uma vez por todas da tradição jornalística brasileira. Para que isso aconteça o quanto antes, tenho trabalhado bastante, intercedendo para que matérias postadas sem a devida consideração e respeito a nós, autistas, sejam corrigidas – uma luta que tem sido vitoriosa em cada vez mais casos desde setembro deste ano.

A forma como o jornalismo pensa e descreve o mundo é decisiva para enfraquecer ou manter costumes opressores. Além disso, é necessário lembrar algo ignorado por grande parte dos jornalistas: autistas também leem portais de notícias e mídias impressas, assistem a telejornais e ouvem rádio e podcasts. E podem se sentir acolhidos ou maltratados pelo conteúdo que acessam.

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Robson Fernando de Souza é escritor e blogueiro defensor da neurodiversidade e do veganismo político.