Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Carta ao primo que quer me converter evangélico

(Foto: Pexels)

Meu querido primo, estávamos trocando idéias por WhatsApp sobre a quarentena ou confinamento: se o presidente Bolsonaro tem razão ou não em querer soltar o pessoal nas ruas com o risco de pegarem o coronavírus. Certo?

Nisso, você me surpreendeu, e me citou e enviou um versículo da Bíblia, Salmo 91, no qual se lê que não devemos temer nada quando estamos com Deus.

Temer o que? No caso, imagino que seria o coronavírus. E como eu havia citado o presidente Bolsonaro no meio de pessoas em Brasília, a conclusão seria (me corrija se não for): mais forte do que as recomendações da OMS contra o vírus é a proteção de Deus. Bolsonaro está com Deus e, então, nada acontecerá com ele, porque ele tem a proteção de Deus. E, por tabela, as pessoas tementes a Deus que se encontraram em Brasília com ele não precisam temer o vírus porque são também protegidas por Deus.

É isso mesmo que você quis me dizer? Tem certeza?

Tudo bem. A seguir, você me pede para me arrepender dos meus pecados porque ainda há tempo. Que Deus me ama, que devo me converter. Que ele me protegerá do mal e da peste. Imagino, do coronavírus.

Fico imensamente grato por me falar isso, imagino que muitas pessoas estarão recebendo também essa mensagem nas igrejas e nos cultos em presença ou online. Se estiverem dentro de uma igreja com cinquenta, cem, duzentas pessoas, falando aleluia e cantando hinos, podem ficar tranquilos que não serão contaminados pelos coronavírus mesmo se o vírus estiver circulando no ar ou quando se derem as mãos. Admiro sua fé, a ponto de colocar sua vida em perigo!

Por volta do ano 1340, não havia ainda os evangélicos, eram os católicos que pregavam o cristianismo na Europa. E, de repente, vinda da Ásia e transmitida por ratos e pulgas, apareceu uma doença estranha, que provocava altas febres, criava gânglios ou inchaços na virilha e provocava a morte. Naquela época, não havia os cuidados de higiene de hoje, nem água encanada, nem se tomava banho de chuveiro e nem as roupas ficavam limpas nas máquinas de lavar.

Diante de tanta gente doente e das mortes que começavam, as igrejas ficavam cheias e, sem saber, aumentavam as contaminações. Havia rezas, missas, cânticos, os pecadores se arrependiam, faziam penitências, os padres faziam exorcismos contra Satanás. Naquela época, não havia vacina, nem remédios, ninguém pensou em isolar a população num confinamento. A situação lembrava muito a agora existente com o atual coronavírus, mas a doença tinha outro nome: era a peste negra.

E, como sempre acontece, apareceram os charlatões, os vendedores de indulgências ou perdões para os doentes e para os que temiam ficar doentes. Muitos davam tudo quanto possuíam à Igreja, para se livrar da peste. E a Igreja Católica ficou muito rica, muito poderosa, porque era a única que tinha a chave para levar os homens a Deus.

A peste negra durou uns quarenta anos, mas teve recorrências por quatrocentos anos. Morreram muitas e muitas pessoas, metade da população da época na Europa. A Igreja Católica era tão forte que vendia o céu, o perdão, o paraíso para os pecadores. E havia crédulos, tantos crédulos que aceitavam, acreditavam, rezavam, faziam penitências, pagavam e sentiam-se protegidos.

Foi nesse quadro que surgiu um monge, na Alemanha, revoltado com tanta exploração. Era Martinho Lutero, e com ele veio a Reforma. E o mundo começou a mudar. Logo surgiram outros reformadores, como Calvino, e a mensagem principal era a salvação pela fé, sem a exploração dos fiéis pelo clero, pelo Vaticano, pelos padres.

Foi a Reforma que abriu as portas para os fiéis lerem a Bíblia, mas não só a Bíblia, e se libertarem da interpretação tendenciosa da Igreja Católica da época, a pensarem por si próprios. Dessa liberdade, que acabou com a chamada Idade Média, surgiu um novo conceito de ser humano e o Estado laico, sem ligação com as diferentes religiões e crenças. E se desenvolveram a literatura, a filosofia e o livre pensamento. Dessa separação da igreja, surgiu o mundo moderno.

Isso foi forte na Europa, mas nos países distantes essa mudança nem sempre chegou com a mesma força. Na América Latina, a educação e a cultura nunca foram para todos. O povo sempre teve apenas um mínimo; no Brasil, a Igreja Católica sempre dominou e fora das capitais a religião sempre se misturou com crendices. A religião convivia com pobreza, ignorância e miséria. E se misturava com as religiões africanas. Foi quando surgiu uma novidade: dizendo-se evangélicos, mas sem ter nada a ver com os protestantes já existentes no Brasil, surgiu o Evangelho da Prosperidade, uma nova maneira de ser cristão. A nova moda exportada e apoiada pelos Estados Unidos pegou e cresceu, e hoje seus fiéis seguidores são 30% da população – em 2050, serão mais que os católicos.

Diversas variantes existem e algumas garantem a cura divina além do sucesso econômico. Os pastores não fazem seminário e nem um curso de teologia, alguns pregam o Evangelho como faziam os vendedores ambulantes de barbatanas para colarinhos na Praça da Sé. E as pessoas acreditam.

É claro que fiquei surpreso com sua mensagem. Simples, direta. Nunca imaginei assim o Evangelho. Essa interpretação literal de alguns versículos da Bíblia me é estranha. Sei que você foi universitário, teve acesso à literatura, deve ter estudado um pouco de filosofia.

Se você pede para eu fazer, deve ter feito. Você se arrependeu e se converteu. Mas, primo, se arrependeu do quê? Tinha tantos pecados assim? Não acredito, sempre foi um jovem de bons princípios. Bom, mas se isso lhe faz bem, tudo bem. Entretanto, isso me parece pouco diferente das crendices e superstições.

E vou lhe contar uma coisa que vi e ouvi agora há pouco na TV francesa. Deus não protege ninguém desse coronavírus. Não seja tolo e nem inocente – a contaminação, na França, veio de uma reunião de 1500 pessoas numa comunidade evangélica, A Igreja da Porta Cristã Aberta, na região do Haut Rhin. Os médicos dizem que foi como uma bomba – os casos de vírus vieram das pessoas que saíram desse culto, igreja lotada, com muita gente já contaminada e contaminando.

Se você quer acreditar em Deus, tudo bem, ninguém é proibido de ter fé. Mas não acredite no Bolsonaro como se fosse um enviado de Deus. Esse sujeito, que gosta de armas, não merece sua fé e nem de ninguém. Mas também não acredite em tudo quanto dizem os pastores. Você me parece crédulo!

Você precisa acreditar em alguma coisa? Tudo bem. Eu não preciso. Vivo bem sem a figura de um pai celestial ou Deus. Se eu tivesse de me arrepender, como você disse, nem sei do que seria. Não acredito nem em céu e nem em inferno. Nem em deus e nem no diabo. Diabo é o Bolsonaro, disfarçado como um anjo de luz!!!

Não tenho medo da morte, acho coisa normal. Mas acho um crime Bolsonaro menosprezar a vida do povo brasileiro em favor da economia, sem querer proteger as pessoas como se está fazendo na Europa. Se houvesse Deus, juro que Bolsonaro seria punido.

A Bíblia é um belo livro, com belas histórias, mas existem também outros livros para ler. Não se fixe só na Bíblia. E, importante – não pense que seu pastor detém a verdade. Ele é como qualquer um de nós, só que é metido a dizer que está perto de Deus. Como não existe Deus, é um mentiroso que vive da credulidade dos outros.

Me desculpe ser franco, mas você é um jovem inteligente, não se deixe enganar. Nós, os ateus, toda minha família é ateia, nós vivemos bem, somos felizes, não somos pecadores, somos pessoas leais, corretas e defensoras dos direitos humanos. Melhor do que o cristão Bolsonaro, não temos armas e nem queremos tê-las; achamos que são dignos de nosso amor e respeito tanto os negros como os amarelos, homossexuais e os pobres. Para nós, esta vida humana é suficiente, não precisamos ter céu e nem nos ajoelhar diante do que não existe.

Grande abraço, não quero lhe converter, não tenho igreja, só esclarecer.

Seu primo.

***

Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro sujo da corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, A rebelião romântica da Jovem Guarda, em 1966. Foi colaborador do Pasquim. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.