Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Da utopia para a realidade: um salário básico para todos

(Foto: Pedro Ventura/Agência Brasília)

Faz três anos, enviei ao editor os originais de um livro provavelmente ainda muito prematuro, na época, para o Brasil. Tanto que até hoje continua inédito.

Porém, a crise social e econômica provocada pelo Coronavírus, agravando ainda mais a pobreza e ameaçando tornar irreversível a situação de miséria para milhões de famílias em todo o mundo, trouxe à atualidade uma antiga idéia: a de todos os países garantirem a todos seus cidadãos uma renda básica mínima para poderem viver dignamente. Honra a quem de direito: foi Thomas More, o primeiro a imaginar essa solução, ainda no século XVI, no seu livro Utopia.

O tema vem sendo abordado pelas organizações internacionais como um principal recurso capaz de evitar uma depressão econômica internacional. Ainda é recente um texto do prof. Guy Standing, da Universidade de Londres, publicado pelo Fórum Econômico de Davos, mostrando não ser uma solução de inspiração exclusiva de esquerda.

A fragilidade do atual sistema econômico mundial decorre da sua transformação num capitalismo de renda, argumenta o professor Standing, do qual se beneficiam exageradamente os que vivem de rendas de propriedades ou de investimentos financeiros. A mundialização desenfreada criou, assim, oito gigantes modernos: a desigualdade, a insegurança, a dívida, o estresse, a precariedade, a automatização, a extinção e o populismo neo-fascista. Essa situação chegou ao seu clímax com a crise decorrente do Coronavírus.

A Espanha decidiu, desde maio, criar algo semelhante para 22% da população em situação de precariedade. O Brasil também criou uma ajuda temporária, chamada emergencial. Entretanto, tais iniciativas não correspondem à essência da renda básica, por serem mínimas e transitórias.

É o caso também do programa Bolsa Família, uma ajuda irrisória distribuída a 20% das famílias brasileiras, e que poderá ser aumentada, não se sabe quanto, com o anunciado programa “Renda Brasil”, pelo ministro Paulo Guedes. O novo programa incluiria os trabalhadores autônomos, informais e desempregados. Em contrapartida, outros benefícios já concedidos aos trabalhadores de renda mínima seriam suprimidos.

O Partido dos Trabalhadores perdeu sua grande chance de fazer história, em termos de política econômica, ao ignorar praticamente o projeto de renda básica universal, proposto pelo ex-senador Eduardo Suplicy, criado há mais de 30 anos e constante em três de seus livros.

Transformada em projeto, a proposta de uma renda mínima universal apresentada ao Senado em 1994 chegou a ser aprovada em 2004 pelo Congresso, mas não foi aplicada concretamente pelo governo petista. Hoje, o governo Bolsonaro pretende utilizar essa mesma idéia básica, com as deturpações que lhe são costumeiras, dando-lhe um formato paternalista a fim de garantir sua reeleição.

Seguem alguns trechos originais do meu livro “A revolução do salário sem trabalho”, ainda sem a atualização necessária face ao Coronavírus, à espera de publicação.

Um salário mínimo para todos

O projeto de se criar uma renda fixa para todos não é mais um sonho utópico. O desenvolvimento da automatização aplicável não só nas indústrias de produção como nas atividades humanas cotidianas, com a utilização crescente de robôs, cada vez mais perfeitos graças ao avanço da inteligência artificial acoplada com a nova linguagem numerotizada dos computadores, irá provocar o fim de numerosas carreiras profissionais.

Em termos práticos, isso significará um aumento incontrolável do desemprego, gerando desestabilização social e política nos países desenvolvidos.

O mundo mudou, a esquerda e a direita até aqui não conseguiram lançar bases duradouras para uma sociedade com menos desigualdades e surge a iminência do aumento do desemprego, incontrolável com o desenvolvimento das novas tecnologias, automatização, robotização e inteligência artificial, que, na verdade, são transformações e modernizações positivas para todos nós.

Assim como a Internet revolucionou as comunicações e os contatos sociais, chegou a hora de se repensar a solução para os problemas que se arrastam pelos séculos, utilizando os instrumentos e experiências sociais e econômicas hoje existentes.

Mesmo o próprio Cristo, que declarou a perenidade da miséria com sua frase “os pobres sempre os tereis convosco”, nossa maturidade social, neste começo do terceiro milênio, pode permitir o lançamento das bases para se colocar um fim definitivo para a fome e a miséria em termos locais, regionais, nacionais e mesmo em todo o planeta.

Não se trata de uma ação política, plano religioso assistencial ou de filantropia, mas de um projeto econômico e social, vindo de tempos remotos, materializado, pela primeira vez, no livro visionário de Thomas More, publicado há tempos, no século XVI, Utopia.

Esse livro conta a existência de uma ilha ideal, onde as riquezas eram partilhadas por todos, antecipando os sonhos e o surgimento de tantas comunidades, geralmente religiosas, muitas vivendo em autarcia, bastando a si próprias, e sem contato maior com o mundo exterior.

Nos anos 60, século passado, a oposição aos padrões legados de geração a geração, levou os jovens, principalmente nos EUA, à ruptura e à criação de comunidades hippies, onde viviam partilhando tudo quanto possuíam, de uma maneira intuitiva, improvisada e um tanto precária, em torno de seus ideais, que eram basicamente de ruptura e de busca de realização individual, desvinculadas de projetos de reformas políticas.

Poucas comunidades sobreviveram ao avanço da idade de seus participantes, que acabaram por se integrar no sistema de classes e concorrência econômica e social do qual haviam saído.

Foi, entretanto, a Revolução de 1917, na Rússia, que deu origem à principal tentativa e experiência de sociedade igualitária e sem classes sociais, com oportunidades iguais para todos e sem os bolsões de miséria, existentes nas periferias e favelas de todos os outros países.

A experiência durou setenta anos, e embora pretendesse acabar com a desigualdade social, reforçou o aparelho do Estado, diminuiu as liberdades, criou uma burocracia e se desviou para o totalitarismo com suas repressões e o culto da personalidade.

Não sendo, portanto, uma opção religiosa, nem dos jovens em ruptura social e nem um projeto político interessado em colocar na prática o marxismo, qual a novidade, nos dias de hoje, sem recorrer à força ou necessidade de uma revolução, pode acabar com os segmentos de miséria, aceitos como fatalidades normais nas sociedades humanas?

Trata-se de uma utopia capaz de se tornar realidade, como as histórias de ficção científica de Jules Verne, H.G.Wells ou Asimov que, as últimas invenções e descobertas tecnológicas tornaram próximas da nossa vida cotidiana.

Alguma coisa palpável, concreta, como o dinheiro: criar-se uma renda, um pagamento, um tipo de pensão ou bolsa, como um salário mas sem a obrigação do trabalho, que seria paga a toda a população mas destinada a beneficiar as pessoas de baixa renda.

Por que se pagar essa renda para todas as pessoas? Para se evitar a humilhação aos mais pobres de se inscreverem como necessitados, ato aos quais muitos se negam preferindo arcar com as restrições da miséria. Esse pagamento seria logo devolvido pelos não necessitados junto com o imposto de renda.

Essa solução prática na luta contra a miséria, aparentemente dispendiosa demais para o Estado, mas na verdade nem tanto, é conhecida, com pequenas variantes, pelos nomes de renda garantida, renda básica para todos ou renda mínima incondicional e universal.

Economistas de direita e de esquerda, com algumas modificações, consideram ser essa renda a maneira de se transformar as atuais relações sociais, suplantando-se as perspectivas sombrias do desemprego.

Na contracorrente, os países com crescentes problemas estruturais de desemprego crônico, ainda tentam recorrer aos seguros desemprego e ajudas assistenciais sempre insuficientes e degradantes, enquanto outros simplesmente abandonam essa parcela da população.

Ao mesmo tempo, aumentam a idade para a aposentadoria, quando as empresas não contratam maiores de 50 anos e muito menos idosos de 60, criando novos bolsões sociais de desempregados, condenados a um fim de vida de miséria.

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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro Sujo da Corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, A Rebelião Romântica da Jovem Guarda, em 1966. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil, e RFI.