Durante a campanha eleitoral de Angela Merkel, em 2005, a mídia alemã e as redes sociais (mesmo ainda longe da intensidade que instigam hoje) focavam na candidata muito além de sua competência, sua agenda, seu programa de governo. O penteado, o corte de cabelo, os terninhos todos iguais de cores diferentes eram pautas diárias na mídia. Seu adversário, um candidato da Baviera, exibia sua esposa como cabo eleitoral. Ela era mais vaidosa e mais vistosa do que Angela Merkel, e isso servia como uma soma de pontos frente à adversária.
Durante os anos de sucesso em seu governo, as pautas sobre aspectos externos da chanceler desapareceram. Aliás, uma tática tradicional da chanceler para “minguar” a pauta era simplesmente ignorá-la durante três dias. A postura de deixar os jornalistas falando sozinhos, virando as costas e saindo, como faz o atual presidente do Brasil, a chanceler não usou. Ela simplesmente enviava uma declaração pelo porta-voz. Quem teimasse em ficar remoendo a pauta para tirar mais “caldo” recebia uma resposta em sua retórica seca e postura fria: “Eu já respondi a essa pergunta”. Na Alemanha, é difícil fugir da imprensa repetidamente e ainda mais em temas de interesse de toda uma população. Quando ela é superficial e foca no sensacionalismo, a chanceler e seu time esbanjam sangue frio.
O machismo midiático lá e cá
Uma menina esperneia e bate na mesa para ser ouvida ou para expressar sua opinião – os machistas de plantão (e ser machista não é privilégio do sexo masculino) dizem que ela é “difícil”, “encrenqueira”. Quando se trata de um menino, ele é taxado de “decidido” e de quem “sabe o que quer”. Esses rótulos comportamentais vêm sendo “colados” em meninas e meninos. Incontáveis são as reações de consternação de alemães ao perceberem meu comportamento reservado, em contrapartida de eu ser brasileira. No mais tardar, ao exibir domínio da língua alemã, o quebra-cabeça fica completo. Na mente machista e bitolada existe intrínseca incompatibilidade entre o fato de eu me chamar Fátima (o que remete à religião muçulmana e, com isso, a Turquia, Iraque ou Irã), ser brasileira e ainda me dar o direito de ser caxias, não rir de tudo toda hora e de não querer fazer o animador da festa.
O comentário em forma de zoeira, no Facebook, comparando Michelle Bolsonaro com Brigitte Macron por um seguidor do presidente – seguido de um “Não humilha cara KKK” escrito por Bolsonaro – foi uma tentativa do presidente se vangloriar de ter (como um artigo que ele comprou ou um objeto de estimação) uma mulher bonita ao seu lado. Isso, na mente dos medíocres, brilha como ouro.
O comentário não foi “somente” preconceituoso em referência à idade da primeira-dama francesa, mas também pela diferença da idade entre o casal. Homens que largam suas mulheres para ficar com uma mais nova significa mostrar-se atraente, potente, poderoso.
Pegaram carona no comentário de Jair Bolsonaro o ministro da Fazenda, Paulo Guedes, e o comediante paulista Fábio Rabin, esse último em seu show em Sorocaba no dia 1º de setembro. En passant, referindo-se a Brigitte Macron, o stand-up comedian mandou: “Ela é feia mesmo!!!”, colhendo regozijo da plateia. A retórica é ensaiada: mesmo quando, logo na sequência da frase que “solta”, diz que “é brincadeira!!!”, ela nada perde em intensidade e semântica, enquanto o “brincadeira” passa raspando pelos ouvidos, sem ser percebido. A fórmula da retórica é bem parecida com a dos partidos de direita radical e extrema-direita (guardando a diferença entre o conteúdo): fala-se algo polêmico, que choca. Logo depois, dá-se uma declaração de que “foi tudo um mal entendido” e que “nós não queríamos ferir ninguém”. É um morde e assopra calculado. Só muda o conteúdo. A prática é a mesma.
Bela, recatada e do lar…
Na cerimônia de posse do segundo governo da presidenta Dilma, os olhares estavam todos voltados para Marcela Temer, que parecia sofrer de incurável monotonia no evento. E, mesmo assim, a internet quebrou.
No dia 09 de setembro, o humorista Tutty Vasques, em post no Facebook, referindo-se ao guarda-roupa tradicional de mulheres no palanque durante o desfile do último dia 7, mostrou-se saudoso do vestido branco de Marcela, exatamente um anos atrás. Um comediante pode quase tudo: o Tutty, o Gustavo Mendes e até o Fábio Rabin, mas o presidente de um país não pode. O presidente se mostrou machista e, ao mesmo tempo, acometido de uma síndrome de vira-lata tão grande que decidiu recusar a ajuda imediata do G7 para as queimadas na Amazônia. O fato de que, em seus discursos, há regozijo de mulheres em forma de gritos de “mito”, mostra como o machismo e o triunfo do medíocre tomaram conta do Brasil.
Que bom que madame Macron não apresenta nenhuma similaridade nem com Marcela e nem com Michele. Ao contrário das duas esposas em seus papéis de cunho protocolar, Brigitte é a conselheira e a que escreve os discursos do marido. Isso, sim, é empoderamento, e não o domínio da língua de surdos vestindo rosa. No Brasil, porém, a premissa retrógrada de que meninas vestem rosa e meninos, azul, está em alta conjuntura – e as mulheres estão sendo confrontadas com declarações como da filha de Silvio Santos, Patrícia Abravanel, que parece ter a receita infalível para que mulheres evitem ser traídas pelo marido.
Em declarações como essas, mulheres são influenciadas, pelo número inflacionário de pautas com a mesma retórica, a se ajustar a uma forma de comportamento para não serem traídas, sugerindo que determinam se sim ou não. Pior. Se isso acontecer, a culpa será delas. A expressão “salvar um casamento” é rotineira em matérias sobre casais em crise e em cenas de novela, como atualmente em A Dona do Pedaço, em excelentes cenas protagonizadas pela veterana Natália do Valle – que vive Beatriz, uma mulher traída muitos anos e muitas vezes e que se recusa a viver de aparências para manter o casamento.
As pautas da imprensa machista e de visível fetiche voyeurístico ratificam ainda mais esses modelos obsoletos de relacionamento, instigando, obrigando as mulheres a fazer concessões de mão única. Nem Angela Merkel nem Brigitte Macron têm necessidade de abrir mão de seus planos e suas trilhas, mas esses casos são a minoria.
Ofensa gratuita
Até mesmo o comentarista da GloboNews, Guga Chacra, toma partido em favor da ex-presidenta do Chile, Michelle Bachelet, e da primeira-dama francesa, Brigitte Macron, e ainda relembra a intransponibilidade de relações diplomáticas entre Brasil e França. A ironia: no telão, somente vozes masculinas falam sobre a falta de educação em taxar madame Macron de “feia”. É grotesco, mas previsível, se tratando da GloboNews.
Quando mulheres querem entrar no setor de cargos de confianças numa empresa ou no alto escalão da política, os ataques serão, sempre, pela aparência – logo nesse quesito, que nós, mulheres, enfrentamos diariamente, com dúvidas que trazemos desde a infância. Enfrentamos o preconceito, o machismo, sinônimo de exclusão por um homem achar que aquela mulher não deve estar ocupando aquele espaço.
A declaração do ministro Sergio Moro sobre a violência doméstica legitimou o que é crime prescrito na Lei Maria da Penha, alegando que “os homens se sentem intimidados”. O desdobramento de uma declaração dessas é fatal e imprevisível. Homens violentos veem na retórica do ministro uma justificativa, uma carte blanche – logo ele que deveria, categoricamente, condenar as formas de violência contra as mulheres. A foto postada no Instagram da esposa do ministro, esperando “o maridão para jantar”, explica a dolorosa falta de um mínimo de pensamento emancipatório por parte do ministro, pessoa pública. O que a imprensa machista não entende e grande parte dos polêmicos de plantão nas redes não alcança: não há nada de errado em fazer um jantar para o maridão. Essa atitude não desqualifica ninguém, nem compromete a emancipação.
A foto se torna, sim, um problema, quando a autora é a mulher do superministro da Justiça, e que deveria ser o primeiro a levantar sua voz contra qualquer tipo de violência, especificamente contra as mulheres.
Violência entre homens e mulheres acontece na Alemanha, no Brasil, em todo o lugar. As diferenças são as nuances, determinadas pelo desenvolvimento, pela característica cultural, pelo o que estipula o Código Penal e pela independência do setor judiciário.
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Fátima Lacerda é carioca, radicada em Berlim desde 1988 e testemunha ocular da queda do Muro de Berlim. Formada em Letras (RJ), tem curso básico de Ciências Políticas pela Universidade Livre de Berlim e diploma de Gestora Cultural e de Mídia da Universidade Hanns Eisler, Berlim. Atua como jornalista freelancer para a imprensa brasileira e como curadora de filmes.