Recentemente, foi publicado um artigo na Folha de S.Paulo chamando, por tabela, de idiota quem gosta de “Game of Thrones”. Para desqualificar qualquer um que goste desta série recorre a uma obra intitulada “Crônicas Saxônicas”, que ele compara e diz ser, esta última, “Game of Thrones” para adultos. Típico de intelectual que quer se mostrar culturalmente superior.
Só que tem um senão: ele, na sua sanha de distinção, esquece que, na ficção, ser fiel à história pouco ou nada significa. Para escrever sobre história, o escritor tem que se ater aos fatos. Mesmo no caso extremo do chamado conto histórico, o escritor precisa se ater ao espírito do caso narrado sem precisar se aferrar em demasia, até porque muitas cenas e diálogos deverão ser preenchidas dependendo mais de sua imaginação do que de relatos fidedignos extraídos de fontes históricas.
O que interessa na ficção não é o compromisso com os fatos e sim ser uma narrativa capaz de cativar tanto pelo conhecimento da época da história como pela inventividade e imaginação do autor, que, através disso, é capaz de criar uma mentira que conta uma verdade.
Na contramão desse tipo de comentário, que revela mais falta de discernimento sobre o que significa uma obra de ficção do que alta cultura, recorro a Augusto Meyer, que, ao analisar a obra “O Gaúcho”, de José de Alencar, publicada em 1870, através de artigo de mesmo nome no seu livro “Prosa dos Pagos”, começa demonstrando a total falta de conhecimento e familiaridade deste com o modus vivendi do gaúcho e termina reconhecendo e elogiando sua capacidade literária.
José de Alencar escreveu seu romance sem nunca ter vindo ao Sul e, segundo Augusto Meyer, negligenciando até o conhecimento de autores como Antônio Alves Pereira Coruja, que, em 1853, muito antes de 1870, tinha publicado na Revista do Instituto Histórico sua “Coleção de Vocábulos e Frases”. Este cuidado de Augusto Meyer, dono de um saber enciclopédico, em discernir o que é do terreno da historia e o que é da ficção, para não incorrer em análise totalizante caolha, é o que falta no nosso mundo de hoje hiperespecializado e redutor.
Usar como critério de análise paradigmas distintos, isto é, usar paradigma histórico para analisar ficção, não é bem a ferramenta adequada para aferir um filme ou série de TV de ficção. Ainda mais uma obra com fortes componentes míticos. Concordo que leituras várias podem ser feitas de “Game of Thrones”. Desde as mais infantis até as totalmente adultas. Sem querer comparar qualitativamente e visando apenas o aspecto literário polissêmico, recorro ao estilo shakespeariano que conseguia, por sua genialidade, atingir tanto o povo menos letrado como a alta aristocracia letrada ou não de sua época, como os de épocas que se sucederam até hoje.
Desde que bem conduzida, atribuo a quem consegue este intento mérito indiscutível. Mas penso que é o que falta hoje em dia, isto é, autores de alta cultura capazes de atingir públicos diversos sem nivelar por baixo. Concordo em parte que, no caso da série “Game of Thrones”, existe um apelo que dialoga com a fórmula de infantilização imprimida ultimamente por Hollywood. No entanto, é uma fórmula contendo elementos diferentes do usual em “blockbusters” que, no afã de terem o retorno do investimento em algumas semanas, não se preocupam em ir além do maniqueísmo trivial do mocinho/bandido embalado por toda uma trucagem tecnológica sedutora.
Acho que a HBO, com “Game of Thrones”, apostou em uma narrativa que tangencia a fórmula hollywoodiana sem se submeter integralmente aos seus ditames mercadológicos. Na minha opinião, e não descarto estar enganado, sua narrativa vai além, foge, como já disse antes, do maniqueísmo básico ao, por exemplo, compor personagens mais densos e complexos do que as figuras chapadas dos super-heróis que funcionam dentro do velho esquema vindo das histórias em quadrinhos feitas para um público juvenil ou infantilizado.
“Game of Thrones”, além da beleza da história mítica e fantástica, tem bons diálogos. Para não ficar apenas em generalizações, reproduzo alguns diálogos adultos que são interessantes não apenas por soar condizente com o andamento da trama como por sua qualidade intrínseca e atemporal. Por exemplo, no episódio de onde se discutia o caso da morte do membro do grupo das harpias, o líder dos imaculados sentenciou com uma frase dura e matadora, dirigindo-se ao líder dos nobres, presente na mesa de negociação, quando este evocou algo relativo à compaixão ou justiça. Meu propósito não é reproduzi-la exatamente, mas sim o espírito da resposta do líder dos imaculados: vocês não nunca revelaram qualquer preocupação com compaixão e justiça; nunca tiveram nenhum compromisso neste sentido.
Em outro momento, ao se dirigir a um encontro com a Rainha Cersei Baratheon — que não é flor que se cheire — o ardiloso Lorde Petyr Baelish é barrado por um dos líderes de uma seita religiosa fanática — elas existem desde sempre e sempre usam velhas e surradas artimanhas para enganar os trouxas e imbecis que também são abundantes desde sempre — que lhe diz ser ele um desqualificado dono de bordel.
Lorde Petyr, em resposta, diz que ambos são, no fundo, iguais, pois “vendem fantasias”. E arremata: “pelo menos as minhas são mais divertidas”. No terceiro episódio da temporada sete, Euron Greyjoy, ao derrotar a frota de aliados da rainha Daenerys Targaryen, entra na cidade com prisioneiros para presentear a rainha Cersei, incluindo Ellaria Sand, assassina de sua filha, a princesa Myrcella, e é recepcionada com ovações de júbilo e agradecimento, ao mesmo tempo que os prisioneiros trazidos por ele são achincalhados pelo povo.
Falando com Jaime Lannister, mão, irmão e amante da rainha Cersei, Euron diz que adora aquele tipo de afago que está recebendo e, em resposta, o primeiro diz que aquele povo que agora o está recepcionando pode muito bem amanhã estar em êxtase vendo-o ser decapitado. Na tréplica, Euro Greyjoy diz algo no sentido de que o povo gosta mesmo é de decapitação.
Em um episódio recente de “Game of Thrones”, um banqueiro aparece para cobrar as dívidas da rainha Cersei. Sem perder a majestade, como é do seu feitio, Cersei tomou do representante do Banco de Ferro a dura que nenhum dos muitos inimigos que cultiva foi capaz de lhe aplicar. Quando ela pede 15 dias para pagar uma dívida inteira em uma só parcela, o banqueiro ainda tripudia: “que pena, nosso banco adora os juros que o reino paga”. Uma cena bem representativa da queda das potências diante dos bancos.
Outra parte que me chamou atenção foi quando, na sequência da cena acima descrita, diante da aparente hesitação do representante do Banco de Ferro acerca de a quem financiar entre as partes em guerra, a rainha Cersei, para convencê-lo da pertinência de seu pedido de empréstimo, lembra que sua inimiga luta para libertar os escravos e que isso certamente não é bom para os negócios. Melhor argumentação diante de um banqueiro é impossível.
Portanto, “Game of Thrones” cumpre o objetivo de criar uma narrativa de caráter mítico, no sentido dado por Giambattista Vico a este termo, para demonstrar, através de belas cenas acompanhadas de diálogos denunciadores, uma condição conflitante tanto em termos éticos quanto sociais, políticos e religiosos, encaixando-se perfeitamente como representação literária, como mentira elucidadora de uma verdade.
Representações literárias adultas que nunca fazem parte da narrativa maniqueísta infantilizada dos filmes de super-heróis hollywoodianos, até onde minha pouca familiaridade com o gênero alcança. Para ser justo, a composição do Homem de Ferro, nos dois primeiros que assisti, inclui certa dose de humor, humanidade e complexidade que deve ser debitada mais ao talento de Robert Downey Jr. do que aos interesses comerciais de Hollywood.
**
Jorge Alberto Benitz é engenheiro e escritor.