Immersion (Piss Christ) é um trabalho de 1987 do estadunidense Andres Serrano. Trata-se da fotografia de um crucifixo comum imerso em um recipiente com urina. Serrano é cristão e diz que o crucifixo é usado quase sempre como um objeto acessório, de moda, sem a consciência que demanda. Alega que, provavelmente. Cristo urinou em si mesmo, encharcado de sangue e fluidos corporais, até a sua morte, na cruz. Seu trabalho é, enfim, quase pedagógico/religioso, uma “imersão” que ratifica o horror da crucificação para uma maior eficácia da evangelização.
Mas, em 1989, movidos pela indignação de um líder protestante fundamentalista, congressistas levaram para o senado norte-americano sua demanda: era necessário um maior controle das exposições que o Estado poderia subvencionar – afinal, o governo havia auxiliado financeiramente uma mostra que continha um trabalho blasfêmico. O senador Alfonse D’Amato, em sua fala, chegou a rasgar o catálogo da exposição de Serrano.
Um pouco depois, em 1990, a exposição fotográfica The Perfect Moment, do também estadunidense Robert Mapplethorpe, foi inaugurada no Contemporary Arts Center, em Cincinnati. Havia fotos de nudez, homossexualidade, sadomasoquismo e uma menina que levantava sua saia, entre outras imagens. Mapplethorpe já estava morto, então o diretor do Contemporary Arts Center, Dennis Barrie, foi processado, enfrentando um doloroso julgamento – que, afinal, o declarou inocente do crime de propaganda obscena ou atentado ao pudor.
O país palco dessa guerra cultural – que, segundo a doutrina do Destino Manifesto (uma mitologia estadunidense), é um país eleito diretamente por Deus para guiar a humanidade, e é como a Terra Prometida, num paralelo com o Êxodo do Antigo Testamento – havia passado recentemente pela administração do conservador Ronald Reagan, que deixava estendido um bom tapete para todas essas polêmicas. O tal Destino Manifesto pode ser uma explicação para o desejo dos EUA de serem o guia do mundo (vide o assassinato do general iraniano Qassim Suleimani, em 3 de janeiro de 2020, no aeroporto do Iraque – ou seja, qualquer lugar do mundo é passível de interferência bélica dos EUA), mas também em nome disso se trava uma guerra cultural interna, baseada numa moral generalista, ou seja, uma moral cristã que vai contra as ideias chamadas progressistas. As semelhanças com o Brasil de 2017 e 2018, quando foram atacadas a exposição Queermuseu e a performance La bête, de Wagner Schwartz, não são acidentais. Importamos uma nova guerra, uma guerra que, para os Estados Unidos, já é antiga (vide o arsenal fílmico hollywoodiano do pós-guerra), mas que também está sendo constantemente atualizada. A “nova” direita brasileira culpou a “velha” esquerda pela crise econômica brasileira. A coalizão conservadora quer o confronto, pois fala-se mais alto quando há vozes inimigas. Como a economia e os direitos não são pop, mobiliza-se pela moralidade, pelos costumes, hábitos, religião. Afinal, sobre esses tópicos, qualquer um pode opinar.
A arte é perfeita para ser atacada porque trabalha com rupturas, tabus, tudo o que é escondido. É comentadora do sagrado e do profano, da sexualidade e da religiosidade, do fetiche dos dogmas e da naturalidade da liberdade. E o brasileiro estadunizado bate continência nessa guerra historicamente importada: o exército militante digital é convocado constantemente para novas guerrilhas (ou guerrinhas?). A ideia é simplificar o inimigo, que é o comunista, ou no mínimo o esquerdista, como se o campo do pensamento progressista não tivesse vários matizes e críticas internas ferozes.
A direita, que se sentiu fortalecida após a deposição de Dilma (uma vitória e tanto), passou então ao trabalho contínuo de redução da experiência do outro. Apostando simbolicamente que a esquerda, a qualquer momento, pode voltar, deseja a contínua desestabilidade, e então governa sem governar, atua sem atuar. E, principalmente, fomenta o medo constante, por ser este um grande mobilizador de forças vitais. O fio condutor dessa “nova” direita é muito antigo: tornar uniforme aquilo que não o é – técnica-base da “guerra cultural” travada para requentar os velhos pseudotraumas. Uso esse termo porque não acredito que muitas pessoas se choquem de verdade com o que veem nas exposições “proibidas”, mas se deixam levar pela interpretação tosca dos próprios detratores dessas exposições de arte.
Ideias são, em geral, desdobramentos de investigações coletivas que conseguem se metodologizar com um trabalho muito árduo. A superficialidade de Bolsonaro não inaugura nada, não tem nada de trabalho: ele apenas deixa que os preconceitos tenham terreno livre, que o ódio se espalhe, que se isente a crítica da violência estatal, que se carimbe o passaporte da incivilidade. Simplesmente deixa a coisa rolar, porque há tempos ela é o que já é.
E, nessa guerra cultural, de que lado estamos? Ou: de que lado nos colocaram?
Para exemplificar um caminho original, recorro ao dadaísmo, movimento artístico que surgiu em 1916, em Zurique. Artistas desertores do serviço militar alemão da Primeira Guerra Mundial foram para a Suíça e se reuniam no Cabaret Voltaire. Iniciaram ali um movimento que negava aquele horror do conflito bélico entre nações e, como crítica ao absurdo da guerra, começaram a fazer uma arte absurda, caótica, aleatória, nonsense. Suas armas “de guerra” eram totalmente diferentes das vistas até então: aqueles trabalhos formavam uma arte revolucionária que reivindicava outro caminho. Depois disso, por volta de 1920, veio o surrealismo, que salientava a importância do inconsciente na atividade criativa. As teses psicanalíticas de Freud deram a base para o desenvolvimento dessas ideias artísticas. Estava sepultada a procura da verossimilhança do mundo numa tela. Mas a arte e a cultura não permanecem estáticas, então outros movimentos se sucederam. Os EUA do pós-guerra tornaram-se uma potência cultural da sociedade do consumo e do espetáculo: para se afirmar como ser humano, era necessário medir o seu poder de bem-estar, de consumo. Inclusive o consumo de arte.
O cinema hollywoodiano é essa aposta: uma arte acessível, narrativa, que pode influenciar comportamentos. Conteúdos controlados como instrumento da afirmação de um projeto de poder mundial. Um conteúdo que se modula para reafirmar-se todos os dias, finalmente uma medida para o horizonte da linha evolutiva cultural da sociedade.
Seria um anacronismo fazer uma crítica, hoje, aos movimentos modernista, futurista etc., mas a questão da modernidade em si é questionável. O Cristo de trancinhas, de Victor Brecheret, chocou a sociedade paulista em 1922. A modernista Anita Malfatti foi espinafrada por Monteiro Lobato em uma crítica ferocíssima no Estado de S.Paulo e nunca mais se recuperou. Será que somos mais felizes do que as pessoas da Idade Média? Ou apenas temos outros instrumentos consumíveis diferentes daquela época? Evoluímos? Jacques Rancière, Bruno Latour e Michel Foucault são exemplos de pensadores que questionam essa modernidade ou pós-modernidade. Em 1889, o positivismo alimentou o lema da nossa bandeira (ordem e progresso), a ideia de que a ciência é que salvaria a humanidade, traria progresso. Como explicar, então, a conexão de movimentos nacionalistas com os movimentos antivacina ou terraplanista? A guerra de interpretações é a guerra da pós-verdade. O caso é que toda a guerra diz que vem para acabar com a guerra anterior, mas apenas fomenta outras. Da mesma forma, a vaia apenas instiga a curiosidade (a exposição de Mapplethorpe bateu recordes de público, assim como a Queermuseu, remontada em 2018 no Rio de Janeiro). A arte, entretanto, tem liberdade para profanar a própria ideia anterior de arte, assim como fez Marcel Duchamp ao pintar bigodes em uma reprodução da Monalisa, de Leonardo da Vinci, ou ao colocar um mictório de cabeça para baixo e chamá-lo de fonte. A sutileza criativa pode ser uma arma difícil de manejar, mas é muito potente.
O formulário de inscrição numa guerra que não fomos nós que inventamos tem letras miúdas, quer nos convencer pelo pensamento mágico, aquele que diz que, fazendo tudo de novo, igual a um passado mítico, vamos ter resultados diferentes. Em nome de quê, afinal, devemos nos arriscar a nos machucar? Não podemos deixar que a vida digital (a banalidade da guerra cultural) imite mais e mais a artificialidade das redes sociais, que são evidentes.
Há, por exemplo, cineastas iranianos presos neste exato momento. Desconheço cineastas revolucionários hollywoodianos que arriscaram sua vida para filmar e que estejam encarcerados agora. Significa que os EUA são um bom país, que protege seus artistas, e que libertará os artistas iranianos que arriscam sua pele para desenvolver seus processos fílmicos?
Aprendi a gostar do Irã através do cinema de Abbas Kiarostami, de Asghar Farhadi, de Jafar Panahi, da família Makhmalbaf. Nem por isso esqueço do sistema de teocracia do horror que, por exemplo, condenou recentemente a dezesseis anos de prisão uma moça de 26 anos que entregou flores no metrô no Dia Internacional da Mulher e questionou a imposição do lenço no seu cabelo. Yasaman Aryani agora está encarcerada. Será que Trump se importa com ela? Ou com os cineastas iranianos? Ou apenas procura acirrar o conflito? Guerra para mais guerra? Em 2017, Asghar Farhadi, que filmou O apartamento, não compareceu à cerimônia de entrega do Oscar em Los Angeles. Motivo: segundo as medidas anti-imigração propostas por Trump, nenhum iraniano podia entrar no país.
O protestantismo de Martinho Lutero propunha o questionamento da adoração da imagem e um pastor neopentecostal brasileiro, certa vez, quis deixar isso bem claro ao chutar a imagem de Nossa Senhora Aparecida em uma rede de TV, sendo rechaçado pela comunidade católica. No julgamento do diretor Dennis Barrie, o diretor do Contemporary Arts Center, algo interessante foi levantado por sua defesa: para acusar a exposição de propaganda obscena, os evangélicos fizeram várias cópias do trabalho de Mapplethorpe para distribuição (inclusive de trabalhos de outros artistas que nada tinham a ver com Mapplethorpe); assim, se o diretor fosse condenado por propaganda, os conservadores também tinham de sê-lo, pois espalharam aquelas imagens, maciçamente, por iniciativa própria, e sem que elas estivessem no ambiente controlado do museu. Notório artista frustrado, Hitler, em 1937, em Munique, realizou a exposição Arte Degenerada para que as pessoas soubessem que aquilo exposto era a real “arte ruim”. A exposição tinha filas para ser vista, ou seja, tornou-se um sucesso de público. O Santander Cultural fechou a exposição Queermuseu e divulgou uma nota dizendo que “quando a arte não é capaz de gerar inclusão e reflexão positiva, perde seu propósito maior, que é elevar a condição humana…”. Quando a arte não é capaz de gerar inclusão… O Santander Cultural publica essa frase e, ao mesmo tempo, exclui a possibilidade de que aquela arte seja vista – querendo que a arte se inclua sozinha, suponho. Diz que existe uma reflexão positiva – por consequência, há também uma reflexão negativa, acredito. Diz também que existem propósitos maiores e propósitos menores na arte e, ao mesmo tempo, fala que é preciso elevar a condição humana, propondo então questões transcendentais, que portanto se aproximam das questões religiosas e morais.
A história da arte é também a história das rupturas, entrecortada por guerras bélicas e culturais, mas sempre atrelada às pesquisas internas, libertárias, do autoconhecimento. Procurando desfamiliarizar o olhar, os costumes e atitudes, busca oferecer independência. Um projeto pastoral definitivamente não será o projeto artístico global. Posso, por exemplo, até utilizar a metáfora do soldado da arte neste momento brasileiro, mas nunca um soldado da guerra cultural (cultura é uma coisa, arte é outra). O processo militar é irreconciliável com o processo-gênese da arte, que é o de experimentar.
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Alex Frechette é artista plástico e autor de Copa pra quem? Olimpíadas pra quem? Arte e megaeventos esportivos no Rio de Janeiro – Contranarrativas na cidade turística.