Em meados do século passado, a filósofa Hannah Arendt cunhou a expressão “banalidade do mal” para ilustrar a maneira como determinadas ideias de ódio se disseminaram na sociedade alemã durante o regime nazista. Guardadas as devidas diferenças e proporções históricas, podemos afirmar que, daqui a alguns anos, algum pensador brasileiro também deverá escrever um livro tentando explicar a banalização do mal que tem ocorrido atualmente em nosso país, da mesma forma que fez Hannah Arendt sobre a sua terra natal.
É fato que o Estado brasileiro foi fundado sob a violência (“parteira da história”, segundo Marx): primeiramente, no genocídio de indígenas; posteriormente, com a vergonhosa escravização de negros de origem africana. No entanto, em pleno século XXI, tempo suficiente para que as atrocidades de nosso passado já tivessem sido superadas, vemos a barbárie se manifestar mais forte do que nunca. Como explicar para uma mente minimamente civilizada o fato de o governador de um dos estados mais importantes da federação comemorar a morte de um jovem portador de distúrbios mentais após a ação de snipers como se fosse um gol em final de Copa do Mundo ou que o presidente da República se referiu à ditadura militar – período devidamente reconhecido por violações aos direitos humanos, práticas de torturas e perseguições políticas – como “nota dez” em diversos aspectos, inclusive no “amor ao próximo”?
Aliás, quando discursos e práticas autoritárias emanam das próprias autoridades públicas, temos o chamado “efeito guarda da esquina”, termo utilizado para descrever o caso do cidadão comum que, ao observar o (mau) exemplo que vem de cima, também passa a se sentir no direito de praticar todo tipo de violência. Basta analisarmos os noticiários recentes para constatarmos essa lamentável realidade.
Durante uma apresentação no interior de Minas Gerais, o humorista Gustavo Mendes foi agredido verbalmente por fãs do presidente Jair Bolsonaro quando fez referência ao presidente da França, Emmanuel Macron (que se tornou inimigo número um dos bolsonaristas após apontar a gravidade dos incêndios na Amazônia). Em São Paulo, no domingo (1/9), em um claro caso de xenofobia, um bar de refugiados palestinos foi atacado com spray de pimenta e garrafas. Apenas um dia depois, também na capital paulista, um jovem negro foi chicoteado após tentar furtar uma barra de chocolate em um supermercado. Já em Manaus, um adolescente de 17 anos matou o irmão de 18 por descobrir uma relação homossexual. Infelizmente, assim como na Alemanha de Hannah Arendt, o fantasma do ódio às minorias também está presente entre nós. Elza Soares já cantava: “a carne mais barata do mercado é a carne negra”.
Não obstante, também temos o triste título de campeão mundial de assassinatos no campo. Já nas redes sociais, haters se regozijam ao tomar conhecimento de que mais um “bandido” foi morto em uma “bem-sucedida” ação policial, cunhando suas frases típicas: “mais um CPF foi cancelado com sucesso”, “fizeram um bom trabalho”, “poderiam ter matado mais”, e, é claro, o seu principal mantra, “bandido bom é bandido morto”.
Na grande mídia, programas policialescos têm na banalidade do mal a sua principal matéria-prima. O que seriam dos Cidade Alerta, Brasil Urgente e Polícia 24 horas da vida se não fossem as cenas de violência cotidianas? Como bem apontou a jornalista Bia Barbosa, esses programas, baseados em desfiles de cadáveres, agressões, achincalhamento de suspeitos em delegacias, discursos contrários aos direitos humanos, na defesa dos justiçamentos e na redução da maioridade penal, contribuem decisivamente para a legitimação da barbárie em nosso país.
Por outro lado, a mesma classe média que se indignou quando um cão foi morto por um segurança do Carrefour se cala diante do extermínio de jovens, pobres e negros nas periferias das grandes cidades brasileiras. Como dizia um famoso funk dos anos 1990: “era só mais um Silva que a estrela não brilha”.
Por fim, é importante ressaltar que, enquanto a Alemanha de Arendt já reconheceu os erros de seu passado, condenando veementemente as atrocidades cometidas durante o regime nazista, no Brasil muitos ainda têm dificuldades em lidar com páginas infelizes de nossa história, como a escravidão, o massacre de Canudos e a ditadura militar. Não por acaso, a tortura praticada no período autoritário anteriormente citado ainda é uma realidade presente em delegacias, em abusos rotineiros de autoridade e, lembrando o efeito “guarda da esquina”, exaltada até em discursos em pleno Congresso Nacional.
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Francisco Fernandes Ladeira é mestre em Geografia pela UFSJ e professor do PROEJA do IFES – Campus Vitória. Autor (em parceria com Vicente de Paula Leão) do livro A influência dos discursos geopolíticos da mídia no ensino de Geografia: práticas pedagógicas e imaginários discentes, publicado pela editora CRV.