Como ficou mais provável a libertação do ex-presidente Lula, me veio a ideia de escrever alguma coisa sobre esse possível retorno, revestindo-o de alguns galardões. Utilizando qual estilo? O da livre interpretação, método consagrado no Brasil de hoje, onde qualquer sabidão se utiliza do mitológico livro sagrado cristão, a Bíblia, para fazer qualquer versículo dizer o que nem sempre significava na origem.
Quais os retornos mais evidentes, quando colocamos essa palavra “retorno” no motor de busca do nosso cérebro? Sem fazer tilt, mas como se fizesse, nos vem o legendário retorno de Ulisses, depois de ter combatido na Guerra de Troia. Tão esperado por sua bem amada Penélope, Ulisses, envelhecido, não consegue se fazer reconhecer até provar sua identidade.
A Odisseia foi escrita por Homero e é a segunda mais antiga obra mitológico-histórico-literária da Antiguidade grega. Numa civilização não cristã, esse livro de versos, junto com a Ilíada, do mesmo autor, com seus mitos e deuses, bons e maus, é uma espécie de Bíblia numa versão pagã.
A Odisseia conta em versos a epopeia de Ulisses, que, depois de lutar na Guerra de Troia, toma com seu navio a rota para chegar a Ítaca, onde vive sua esposa Penélope, que deixara fazia vinte anos. Na viagem de regresso, encontra Calipso, mulher solitária, esplendorosa e sensual, que, para conquistá-lo, lhe promete uma juventude eterna. Porém, Ulisses insiste em regressar, sem saber que Poseidon, o deus dos mares, irá utilizar de todos os meios para impedi-lo.
Lula não é Ulisses, nada a ver. Porém, sua trajetória política tem algo de mítica. Não é uma exceção. A história real dos humanos documenta outros heroicos retornos. Assim como outros esperados retornos não ocorridos.
O tão esperado rei Sebastião não retornou de sua campanha contra os infiéis na África, apesar da espera do povo português. Bem longe de nossa cultura mitológica cristã, pode-se citar o frustrante não-retorno da ex-primeira-ministra paquistanesa Benazir Bhutto (bela mulher que vi num dos Fóruns de Davos).
Restou o consolo de ser santificado. Mas nada impede algumas ilações, neste nosso texto, mesmo porque o cenário proposto inclui deuses cristãos evangélicos, alguns ajudando, outros utilizando maldosamente de todos os meios e subterfúgios para impedir o retorno de Lula, depois de sua vitória com a invenção do Cavalo de Troia.
Primeira mulher muçulmana a exercer a função de primeira-ministra, por duas vezes, Benazir Bhutto foi vítima, há onze anos, de um atentado cometido por talibãs em plena campanha eleitoral. E, assim, não pôde concluir seu retorno.
Os heróis não são perfeitos
Ulisses não é um deus, mas uma figura heroica grega. Não é perfeito, comete erros, é alguém que falha, tem defeitos, é derrotado diversas vezes, mas sobrevive e prospera graças à sua inteligência e força de vontade. Guardadas as proporções, não seria essa também uma definição resumida do herói mítico brasileiro Lula? Não estaríamos presenciando, ao vivo, a viagem imóvel de regresso de Lula?
Poseidon, o inimigo que o persegue, poderia ser assimilado ao juiz todo-poderoso Moro. Os deuses malvados que procuram destruir Lula, no seu retorno, seriam os mitológicos pastores cristãos modernos, vomitando maldições em nome da trindade cristã jupiteriana.
Ou seja, Poseidon frustra, quando pode, o retorno mesmo de heróis não mitológicos. Nada ainda confirma definitivamente o retorno de Lula. Poseidon prepara suas últimas ciladas. Ficará Lula apenas na memória dos seus fiéis, no pranto dos pobres que se arrependeram de tê-lo traído, preferindo votar no protegido de Poseidon? Se tornará uma legenda venerada por uns e detestada por outros?
Porém, a mitologia judaica, e não só a mitologia grega, registra um festivo retorno. É o caso do conhecido José, filho de Jacó, vendido por seus irmãos como escravo, mas que se torna primeiro-ministro do faraó do Egito. É emocionante o retorno à sua identidade antiga, no abraço no pai, diante dos irmãos arrependidos e perdoados.
Imaginem, agora, a França, recebendo de volta ao poder, num regime presidencialista forte, seu herói da resistência contra a ocupação nazista, o general De Gaulle. Treze anos depois do fim da Segunda Guerra, a França tinha se tornado ingovernável.
E não podemos esquecer do retorno ao poder, no Brasil, do ex-presidente e ex-ditador Getúlio Vargas, ao qual o operariado brasileiro deveu as leis trabalhistas e a extinta lei da Previdência.
Lula vai voltar? Mais algumas semanas e saberemos.
PS: O compositor italiano Claudio Monteverdi transformou a história numa ópera, em 1640, O retorno de Ulisses. Quem sabe Chico Buarque se inspira para fazer uma ópera contando as aventuras de Lula, perseguido pelo deus Moro, escapando da tempestade do mensalão para cair na da Lava Jato, mas delas conseguindo sair até o inesperado retorno.
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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. É criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro sujo da corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, A rebelião romântica da Jovem Guarda, em 1966. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.