Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

O último ano da década: teria a distopia vencido a utopia?

Enfim chegamos ao emblemático 2020. Duas décadas se passaram desde o também emblemático ano 2000, quando muitos consideravam que presenciaríamos o “final dos tempos”. Lembro que minha avó gostava de repetir uma famosa e catastrófica profecia: “A 1000 chegará, de 2000 não passará”. Já para os nossos antepassados que não acreditavam em um apocalipse prematuro, o segundo milênio seria marcado, sobretudo, por uma sociedade altamente automatizada, com os seres humanos rodeados por robôs, algo similar ao famoso desenho Os Jetsons.

Pois bem, conforme a realidade nos tem mostrado: nem um, nem outro. O mundo não acabou ou tampouco nosso cotidiano é marcado pela completa substituição do esforço físico do homem pelas novas tecnologias. Lembrando o título de um livro do sociólogo italiano Domenico de Masi, será que o futuro realmente chegou? Nas universidades brasileiras, o “Future-se” chegou e não é nada bom: representa a tentativa de sucatear o ensino público para, posteriormente, privatizá-lo (o que, é claro, conta com o apoio da grande mídia).

Muitos acreditam que, neste início de século XXI, os sonhos de um mundo melhor foram eliminados. Como já dizia a banda de hard rock Van Halen, the dream is over. Teria a distopia vencido a utopia? Parece que nossa sociedade se transformou em um misto de vigilância constante, estilo 1984, de George Orwell, com a perda progressiva das individualidades, como denunciado por Aldous Huxley em Admirável mundo novo.

Já a grande proximidade entre o presidente Jair Bolsonaro e pastores neopentecostais traz um enorme risco à laicidade estatal, uma das maiores conquistas republicanas no Brasil. Estaríamos caminhando para uma ditadura religiosa, assim como em O conto da aia, de Margaret Atwood? Ou para um governo totalitário, estilo Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, que proíbe qualquer livro com medo de que o conhecimento possa estimular o povo a se rebelar?

No surreal Brasil deste início de 2020 (que seria cômico se não fosse trágico), o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos é chefiado por uma mulher machista. A pasta do Meio Ambiente está sob a liderança de um defensor do desmatamento. O ministro da Educação odeia professores. Temos um chanceler que acredita na teoria da conspiração conhecida como “globalismo”. O presidente da Biblioteca Nacional associa o analfabetismo ao cantor Caetano Veloso. E o presidente da Funarte já declarou que Elvis Presley, os Beatles e a CIA trabalharam para implementar o socialismo nos Estados Unidos. Como bem escreveu meu primo, em um grupo de WhatsApp, parece que entramos numa realidade paralela, vivendo em um mundo bizarro.

No Oriente Médio, este ano começa com ataques estadunidenses a alvos iranianos. Na América Latina, as massas estão nas ruas protestando contra as consequências da nefasta agenda econômica neoliberal. Na mídia hegemônica, esses protestos não têm “causas”, somente “consequências”. Destacam-se as ações dos “vândalos”, que “depredam os patrimônios público e privado”, e são omitidas as políticas de rapina promovidas pelos grandes capitalistas internacionais em relação aos recursos dos estados sul-americanos. Aliás, foi para colocar em prática a agenda neoliberal que ocorreram os golpes no Paraguai, em 2012, no Brasil, em 2016, e, recentemente, na Bolívia de Evo Morales.

Diante do exposto, o que esperar do ano que fecha a segunda década do século 21? (Quem prestou atenção às aulas de História sabe que essa década termina em 2020, e não no ano passado). Quais são as perspectivas para este ano que se inicia e para os anos vindouros?

Não há como cairmos em um otimismo ingênuo. Cazuza ainda soa atual quando cantava: “meus inimigos estão no poder”. Em uma época de crise do capital, a extrema-direita avança a passos largos no Brasil e no mundo. Na Europa e nos Estados Unidos, casos de xenofobia são cada vez mais frequentes. O mesmo processo de globalização que apregoa a livre circulação de serviços e mercadorias apresenta várias barreiras para a locomoção de pessoas entre as fronteiras nacionais.

No Brasil da pós-verdade, o grupo de WhatsApp é a nova caverna de Platão. Cada um tem suas convicções, constrói suas próprias “verdades” e isso é suficiente. A Terra é plana. O nazismo é de esquerda. O ator Leonardo DiCaprio está financiando as queimadas na Amazônia. O kit gay foi distribuído em escolas na época dos governos petistas. Não houve ditadura militar em nosso país. Ursal e Foro de São Paulo querem implantar o comunismo na América Latina. A teoria da evolução é “cientificismo”. E a “ideologia de gênero” é ensinada em sala de aula por professores adeptos do “marxismo cultural”.

Neste início de século, a internet tem abalado as estruturas da grande mídia. Conforme a realidade nos tem demonstrado, as audiências das principais emissoras brasileiras caem vertiginosamente a cada ano. Somente em 2019, a Rede Globo demitiu mais de cem funcionários. Não por acaso, há alguns meses, no artigo intitulado “O jogo dos juros, o impacto na economia e na Globo”, o jornalista Luís Nassif sentenciou que o grupo Globo – devido à concorrência de plataformas digitais e pela queda de suas fontes de rendimentos – corre o sério risco de se transformar, em curto/médio prazo, em um mero provedor de conteúdo ou ser vendido para um dos gigantes da mídia global. Nessa mesma linha, as tiragens dos principais jornais e revistas do país têm decrescido substancialmente, a ponto de muitos periódicos terem abandonado suas versões impressas.

No entanto, apesar de não sermos mais dependentes dos grandes grupos de comunicação para obter notícias sobre os principais acontecimentos nacionais e internacionais, por que as ideias conservadoras e reacionárias estão mais fortes do que nunca? O que explica esse (aparente) paradoxo?

É simples: não adianta democratizar a difusão e o acesso a informações se importantes instituições socializadoras, como a família, a religião e a escola, ainda são norteadas pela manutenção do status quo. Em suma: a democratização e o acesso à divulgação de informações serão inócuos caso a sociedade, de maneira geral, continue sendo dominada por pensamentos conservadores.

Para não fechar este artigo em um tom pessimista e, como gostam de dizer os supersticiosos, para não atrair mau agouro para essa jornada que se inicia, só me resta desejar um feliz ano novo a todos os leitores do Observatório da Imprensa e que possamos ter força e disposição para lutar contra todas as injustiças sociais e retrocessos civilizacionais que nos assolam nesses tempos difíceis.

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Francisco Fernandes Ladeira é mestre em Geografia pela UFSJ. Autor (em parceria com Vicente de Paula Leão) do livro A influência dos discursos geopolíticos da mídia no ensino de Geografia: práticas pedagógicas e imaginários discentes, publicado pela editora CRV. E-mail: ffernandesladeira@yahoo.com.br.