Os principais jornais brasileiros noticiaram, com grande destaque, o “acordo” entre Congresso e Executivo, relativo ao assim chamado “orçamento impositivo”. Isso poria fim ao que seria um achaque, chantagem ou mesmo extorsão orçamentária promovido pelos parlamentares contra o governo Bolsonaro. Teria sido essa a visão do general Heleno, no áudio vazado acidentalmente e amplamente divulgado. Algumas perguntas, entretanto, emergem das notícias veiculadas: o “chantageado” teria cedido à “chantagem”? Ou tal acordo faria parte do jogo democrático, sendo legalmente previsto e/ou moralmente aceitável? Revisando alguns dos maiores jornais brasileiros, não encontramos respostas a tais questões.
Seria oportuno lembrar que discussões sobre a lisura das emendas parlamentares povoam, de modo polêmico, a imprensa brasileira desde 1993, quando ocorreu o famoso escândalo dos anões do orçamento. Apimentado por um crime de sangue – o assassinato da mulher de um dos envolvidos -, o escândalo dos anões expôs as relações promíscuas entre Legislativo e Executivo, com a participação de associações civis, empresas e empreiteiras. À época presidida pelo deputado federal João Alves, a Comissão de Finanças, da Câmara federal, chegou a manipular cerca de 30% do orçamento de um dos ministérios (Ação Social), além de aprovar suas “emendas parlamentares carimbadas” em muitos outros. Nomes ainda hoje ativos, alguns envolvidos na operação Lava Jato, já atuavam na época e foram citados no escândalo dos anões: seria o caso de Geddel Vieira Lima, Edison Lobão e Joaquim Roriz, por exemplo.
Tanto o caso presente quanto o primevo escândalo orçamentário guardam um ponto comum: só puderam acontecer mediante a participação (e cooperação) entre Legislativo e Executivo. E, para fechar o ciclo da corrupção (o que não precisa necessariamente ocorrer, diga-se), sempre haverá um terceiro: uma associação civil, um empresário ou uma empreiteira. Nenhum dos personagens citados consegue subverter o orçamento isoladamente. Sempre atuam em conjunto. Por que? A resposta a esta pergunta esclarece, também, as nossas indagações iniciais. E podemos encontrá-la ao verificarmos a natureza da lei orçamentária. Vejamos.
A Lei do Orçamento, assim como a LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias) e o PPA (Plano Plurianual), tem como objetivo orientar o planejamento dos gastos e investimentos públicos no curto e no médio prazos. Sua legitimidade, articulação e funcionalidade estão disciplinadas pela Constituição federal e pela Lei 4.320/64. E suas restrições, inclusive penais, pela LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal), entre outras. O resultado de sua execução e a prestação de contas desses gastos são fiscalizados pelos tribunais de contas e pelos legislativos federal, estaduais e municipais, cada um segundo suas competências. Grosso modo, esse seria o ciclo financeiro e orçamentário que contém os imperativos dos gastos públicos. Gastos que refletem a alocação dos recursos públicos e, por consequência, os compromissos políticos de cada governo, bem como seus respectivos perfis ideológicos. Seria, toda essa articulação, um exaustivo processo de transparência democrática, inexistente em regimes autoritários, ou em sistemas políticos que dispensam a vigência do Estado de Direito. Os problemas começam, nas democracias, quando grupos organizados se dispõem a disputar os recursos públicos a qualquer preço. Inclusive desrespeitando a natureza da lei orçamentária: uma lei que autoriza – mas não obriga – um determinado gasto público. Aí está o busílis.
A ideia seria que o Parlamento autoriza o gasto público e o Executivo o realiza, nos estritos limites determinados pela Lei Orçamentária – se a arrecadação fiscal se (e somente se) realizar conforme as estimativas históricas da arrecadação projetada. Em sendo uma estimativa, a arrecadação pode ser menor, ou maior, que o estimado. Em ambos os casos, o Orçamento poderá (e deverá) ser remanejado ou reestruturado – para mais ou para menos. Daí que, por definição ontológica, a natureza da lei orçamentária é autorizativa – e não cogente ou obrigatória. Nessa medida, a ideia de um orçamento impositivo, como quer o Congresso, é contraditória e ofende a natureza e a funcionalidade lógica da Lei de Orçamento. Não se pode, por princípio, obrigar legalmente a realização de um gasto de um recurso ainda não arrecadado. Ninguém pode dar o que não tem. O orçamento impositivo é uma ideia malandra, fundada na percepção popular que diz: “se a farinha é pouca, meu pirão primeiro”.
Além disso, essa disposição malandra reflete uma crise maior de identidade que atinge todos os poderes. Temos um desenfreado ativismo judicial, uma recorrente malandragem parlamentar e um cada vez mais preocupante comportamento desequilibrado do Executivo federal. Não há inocentes – muito menos santos – nessa história.
Embora não seja novidade, vamos dar nomes aos bois: orçamento impositivo seria, tecnicamente, um exercício de vidência fiscal.
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Marco A. Andere Teixeira é historiador, advogado, professor, cientista político, especialista em controle externo e pós-graduando em Direito Administrativo pela UFMG.