O Jornal Hoje do dia 23 de setembro exibiu uma reportagem narrada pela correspondente em Tel Aviv, Paola de Orte, sobre os ataques israelenses ao Líbano. Como todas as reportagens da Rede Globo sobre o Oriente Médio, em especial sobre o genocídio de Israel em Gaza, praticamente nenhum elemento foi produzido pela Globo. As imagens e depoimentos foram praticamente todos recolhidos pelas agências de notícias internacionais – Reuters, AP e AFP. Fora o voice over, apenas uma das entrevistas foi feita pela equipe da Globo.
Diz Paola de Orte, narrando a reportagem: “o analista político e professor de História na Universidade Americana de Beirute, Makram Rabah, explica que o Hezbollah, apesar de ser um grupo libanês, não representa os interesses do Líbano.” Então, ela dubla a fala de Rabah: “o Hezbollah é um representante do Irã e, embora muitas pessoas o vejam como um grupo libanês, é de fato um agente iraniano que domina o espaço político e econômico do Líbano.” A repórter finaliza: “para o professor, o chefe do grupo, Hassan Nasrallah, não se importa com o povo libanês, mas com uma oportunidade de ganho político.”
Primeiro, vamos ver quem é Makram Rabah. Como a própria reportagem o apresenta, ele dá aulas na Universidade Americana. Esta universidade é reconhecidamente uma formadora de quadros pró-estadunidenses e de colaboradores da CIA no Líbano, há décadas. Ele também é ligado a outras instituições de ensino e pesquisa dos Estados Unidos, como o Washington Institute, um dos inúmeros think tanks do imperialismo estadunidense.
O discurso de Rabah reflete a sua formação e corresponde aos mandamentos de seus patrões, os americanos. A máquina de propaganda dos EUA martela na cabeça do público que o Hezbollah, assim como o Hamas e os Houthis, é um “agente iraniano”. Essa é uma velha tática propagandística para deslegitimar adversários. Na Rússia, o czarismo, e depois Kerensky, acusavam os bolcheviques de serem “agentes alemães”. O senador Joseph McCarthy perseguiu até mesmo artistas de Hollywood, tachando-os de “agentes russos”. Os médicos cubanos que curaram tantos pacientes brasileiros eram considerados “agentes de Castro” pela Veja.
A popularidade do Hezbollah
Estas afirmações contra o Hezbollah são extremamente superficiais e preconceituosas. O Hezbollah nasceu da luta do povo libanês, particularmente de parcela de sua população muçulmana de doutrina xiita, contra os representantes da dominação estadunidense e israelense no país. A guerra civil libanesa iniciou em 1975 e o Partido Falangista, formação política abertamente fascista e terrorista, recebia todo o apoio dos EUA e de Israel para esmagar o restante da população libanesa a ferro e fogo e controlar o país. Seu líder, Bashir Gemayel, era um agente americano. E sem aspas, porque, ao contrário da propaganda contra o Hezbollah e o Irã, está plenamente documentado que, ainda quando vivia nos EUA, Gemayel havia sido recrutado pela CIA. Conforme seu poder aumentava, crescia também a propina paga pela CIA e pelo Mossad.
Dois meses e meio depois do aprofundamento da invasão de Israel ao Líbano, em 1982, ele subiu ao poder no país. Dois dias após Gemayel ser assassinado pelos opositores, o exército de ocupação israelense apoiou a invasão das milícias falangistas aos campos de refugiados palestinos de Sabra e Chatila, em Beirute, que resultou nos famigerados massacres, comparáveis apenas ao que Israel está fazendo atualmente em Gaza.
A ocupação israelense só terminou em 2000, mas voltou a acontecer rapidamente em 2006. Durante todos esses anos, a partir da década de 1980, quem esteve na linha de frente da luta pela expulsão dos invasores do Líbano foi precisamente o Hezbollah. É claro que o Hezbollah recebe forte apoio do Irã, em todos os sentidos. Os iranianos devem ser aplaudidos por isso, assim como pelo apoio à Resistência Palestina, aos Houthis e à Síria. Todos eles têm uma luta comum: a luta pela libertação nacional e de toda a região do domínio imperialista, exercido principalmente através de sua base militar chamada Israel.
A expulsão dos israelenses em 2006 elevou o prestígio do Hezbollah a níveis assombrosos. Em 2008, uma pesquisa do Arab Center for Research and Policies Studies mostrou que Hassan Nasrallah era o líder mais popular de todo o mundo árabe.
Nas últimas eleições gerais, em 2022, o Hezbollah recebeu 335,4 mil votos, mais do que o dobro do segundo partido mais votado (o Movimento Amal, seu aliado). No total, o Hezbollah e sua coalizão receberam mais de 700 mil votos, ou 39% dos votos registrados – mais de 460 mil votos a mais que o segundo colocado.
Até mesmo pesquisas de institutos ocidentais apontam para uma alta popularidade do Hezbollah. No final do ano passado, após o início da atual fase do genocídio em Gaza, o Washington Institute mostrou que 93% dos xiitas, 34% dos sunitas e 29% dos cristãos tinham uma visão positiva do Hezbollah. O Partido de Deus é um partido de corte xiita, mas tem crescido mais ainda entre os não xiitas, de acordo com esse instituto. A pesquisa anterior, de 2020, mostrava um apoio de 7% dos sunitas e 16% dos cristãos. Já uma pesquisa de opinião do Barômetro Árabe, realizada entre fevereiro e abril deste ano, indicou que o Hezbollah tem o apoio de um terço dos libaneses, incluindo 85% dos xiitas. A percepção positiva do papel do Hezbollah na política regional aumentou particularmente entre drusos, sunitas e cristãos nos últimos dois anos. A pesquisa do Barômetro também mostrou que os libaneses rejeitam de maneira contundente o genocídio em Gaza e consideram os bombardeios israelenses àquele território palestino muito mais terroristas (78%) do que os ataques do Hezbollah ao norte de Israel (11%).
Por último, o apoio popular do Hezbollah é tão grande que mais de 100 mil libaneses decidiram se juntar às suas milícias armadas. Portanto, não se trata de um apoio passivo, mas, sim, de um apoio ativo. De fato, o Hezbollah tem o maior contingente entre todas as organizações paramilitares do mundo nos dias atuais.
Então, como o Hezbollah pode ser um mero “agente iraniano”, se ele recebe tanto apoio popular?
Como dito no início do texto, isso é um artifício para deslegitimar o Hezbollah. Outro é rotulá-lo de “extremista”. É difícil que esse adjetivo não acompanhe qualquer menção ao nome Hezbollah no noticiário da Rede Globo, bem como ela faz com os “terroristas do Hamas”. Nenhum jornalista da Globo jamais explicou por que chama o Hamas de “terrorista” e o Hezbollah de “extremista”. Mas é claro para todos os observadores minimamente atentos que isso é uma jogada de manipulação para apresentá-los como o lado mau da história. Nem o governo, nem o exército e nem mesmo o primeiro-ministro de extrema-direita de Israel jamais foram chamados de “extremistas” ou de “terroristas”. Mesmo que todos eles sejam responsáveis por incontáveis atrocidades cometidas há um ano, e que até altos funcionários e organismos da ONU, bem como o próprio governo brasileiro, reconheçam que Israel comete um genocídio que já matou mais de 52 mil palestinos em Gaza, contando com os desaparecidos sob escombros.
Uma agência dos EUA
A Globo, que foi criada pela ditadura militar implantada pelos EUA e graças aos dólares da Time-Life, que sempre teve negócios com o Deep State estadunidense e recebe o patrocínio de inúmeras empresas dos EUA, é muito mais uma “agente americana” do que o Hezbollah é um “agente iraniano”. E como tal, desempenha o papel de principal porta-voz dos EUA no Brasil.
A Globo dissemina a propaganda encomendada desde os EUA a favor de Israel (outra criação estadunidense) para garantir o apoio da burguesia, de parte da classe média alienada e do aparato burocrático do governo brasileiro às empreitadas imperialistas. Também promove essa propaganda para colocar aqueles que estão contra o genocídio e do lado dos oprimidos na defensiva. Porque tomar essa postura seria estar do lado dos “terroristas” e dos “extremistas”. Esse discurso é repetido por todos os grandes veículos de comunicação brasileiros, que também têm o seu rabo preso com o dinheiro e o poder dos EUA.
Esse é um ponto em comum da Globo e da imprensa pró-imperialista brasileira com todos os grandes meios de comunicação dos EUA, da Europa e dos países submetidos ao jugo imperialista. Mas o Brasil tem também uma especificidade: abriga uma das maiores diásporas de origem árabe (cristã e muçulmana) do mundo. A própria diáspora libanesa é a maior do mundo, com até 10 milhões de libaneses e descendentes, segundo dados do Itamaraty. Os grandes meios de comunicação, em especial a Globo, que é o maior de todos, têm a obrigação de impedir que toda essa gente tenha os mesmos sentimentos de revolta e indignação contra as barbaridades cometidas por Israel e EUA, visto que têm seus parentes no Oriente Médio sendo dizimados pelas ações destes dois atores. Porque isso poderia forçar o governo e as instituições brasileiras a reduzir sua colaboração com aqueles que oprimem o Oriente Médio – que são os mesmos que subjugam o Brasil.
Uma clássica lógica imperialista é a de dividir para reinar. É assim que sempre agiram os impérios. O Oriente Médio, junto com a África, é um dos mais fortes exemplos do sucesso dessa estratégia milenar. E divide-se principalmente por meio da propaganda, que é difundida sob a máscara da “imparcialidade jornalística”.
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Eduardo Vasco é jornalista especializado em política internacional, foi correspondente na guerra da Ucrânia e escreveu os livros-reportagem “O povo esquecido: uma história de genocídio e resistência no Donbass” e “Bloqueio: a guerra silenciosa contra Cuba”.