Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O jornalismo e a Jornada Mundial da Juventude

(Fotos: ©️Paulo Fidalgo)

Vendo a cobertura dos meios informativos portugueses sobre a visita do papa Francisco a Portugal de 2 a 6 de agosto, a sensação que tive é que não adiantava mudar de canal ou de jornal, tudo era a mesma coisa. Na televisão, no dia 6 de agosto pela manhã, houve um momento em que passando da RTP1 para a SIC, para a TVI, para a SIC Notícias, para a RTP3, para a CMTV e para o Porto Canal, o que passava era o mesmo – só mudava o enquadramento da imagem.

Só havia uma notícia? Ou a assessoria de imprensa da Igreja Católica conseguiu a unanimidade?

A impressão com que fico é que faltou o essencial: a discussão política. Apenas relataram e mostraram aquilo que interessava a um dos lados da luta que ocorre hoje na hierarquia católica e, com isso, deixaram de prestar um serviço aos cidadãos.

Quando falo da discussão política, não estou me referindo ao possível aproveitamento por parte das autoridades portuguesas, no âmbito municipal ou nacional, dos efeitos da reunião de mais de um milhão e meio de pessoas em Lisboa. Nem sequer da questão da pedofilia na Igreja – que em si não é política, mas do âmbito da criminalidade e das doenças psiquiátricas, e que acaba por tornar-se política pelas redes de encobrimento que foram criadas ao longo de décadas.

Situando: o papa veio a Portugal numa das visitas mais emblemáticas e talvez a mais longa do seu pontificado. Ele procura mudar a face da Igreja, tornando-a mais voltada para os desfavorecidos e afirmando a abertura da instituição para grupos tradicionalmente excluídos, como os homossexuais e transexuais. Rejeita a Igreja Católica como uma instituição de riqueza, fechada, e que apenas está voltada para os “puros”. Quer uma maior participação das mulheres, ainda que rejeite o direito de serem elas quem decide sobre os seus próprios corpos.

Essas mudanças, numa instituição secular, não ocorrem sem uma reação de dentro das próprias hostes – e também de fora. Os mais tradicionalistas querem uma outra Igreja.

Eis a discussão política que foi escamoteada. Era importante que esse aspecto fundamental tivesse sido referido na cobertura jornalística da jornada.

A falta dessa visão crítica fez passar a ideia de que não há uma disputa no Vaticano, que todos estão unidos em torno do papa Francisco. Parece que a corrente contrária deixou de existir. No entanto, essa luta segue, intestina.

A única manifestação dessa disputa ocorreu no dia 3 de agosto, na missa voltada da igreja da Ameixoeira realizada para a comunidade LGBT em Lisboa. Um grupo de 10 a 12 jovens pessoas procurou interromper a celebração, entoando cânticos sagrados em latim. O evento foi tratado como sendo apenas um grupo de arruaceiros ultramontanos.

Uma questão: não foi um tratamento semelhante o dado aos padres que aderiram à Teologia da Libertação, na década de 1960, quando os padres subiam ao altar para condenar a guerra colonial? As posições do padre Mário, da Lixa, quando foi preso pela PIDE apesar da Concordata prever que os padres estavam fora do âmbito criminal e apenas se regiam pelo direito canônico, não foram ignoradas pela imprensa do Estado Novo?

Será que, ao tratar essa facção da Igreja Católica como não existente, ou como sendo apenas alguns tresloucados, não se está a escamotear o principal? Não seria questão de a imprensa ouvir essas vozes, saber o que representam, qual a sua força?

Por parte da Igreja Católica, uma cobertura do evento que deixe de lado os opositores das principais propostas políticas é algo favorável. Deixa uma sensação de união absoluta em torno do papa. Mas não é essa instituição que tem o papel de informar. Para o jornalismo, informar é uma obrigação.

A disputa pelo poder na Igreja Católica continua, por baixo do pano. Os opositores à proposta de uma igreja mais voltada para os deserdados e desfavorecidos têm um financiamento muito grande e contínuo. A influência da chamada “teologia da prosperidade”, presente em várias igrejas neopentecostais – que acredita que a graça divina se revela no acúmulo de bens materiais por parte dos indivíduos – faz-se sentir em muitos padres e bispos católicos, especialmente nos países em que essas denominações vêm conquistando muitos crentes, como os Estados Unidos, o Brasil e alguns países africanos e outros latino-americanos.

Neste momento, há uma situação favorável aos partidários das propostas do papa Francisco. A discussão sobre a pedofilia dentro da Igreja colocou na defensiva os que a ele se opõem. Não porque eles defendam a pedofilia, mas porque eles encontravam-se numa situação de poder e foram responsáveis pelo acobertamento da violência contra crianças e adolescentes. Assim, ao atacar esse comportamento criminoso, obtém-se mais do que a purga dos que nunca deveriam estar à frente dos altares.

E a disputa pelo poder na Igreja Católica não se atém apenas à questão da pedofilia. O papa está com 86 anos e tem a perfeita noção da temporalidade da vida. Ele procurou assegurar a continuidade da mudança que trouxe. Com o anúncio realizado antes da jornada, ele terá, no final deste ano, nomeado 112 dos cardeais, criando um grupo forte para escolher o próximo ocupante do pontificado – nem todos estarão em idade de votar, já que a participação no conclave é limitada aos que tenham menos de 80 anos. Mas se, neste momento, o número de participantes num eventual conclave se situa em torno de 140, já está garantida a grande maioria dos votos para uma solução de continuidade no trono de Pedro.

Não se pode esquecer que a Igreja Católica não é uma instituição democrática. Apenas um grupo seleto escolhe os seus rumos. E as divergências manifestam-se através de cismas ou do abandono por parte dos fiéis.

Nesse quadro, o que foi a Jornada Mundial da Juventude?

Foi uma afirmação de vitória? Se sim, qual a sua dimensão?

Foi mais um marco na disputa pelo poder? Então, quais seriam os próximos passos?

Foi a apresentação de um programa de ação para a instituição no próximo período? Nesse caso, é importante que isso seja traduzido por alguém que tenha uma postura independente em relação à instituição. É pouco provável que seja um padre, sujeito à disciplina, que tenha a visão crítica necessária para fazer essa interpretação.

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Jair Rattner é jornalista, com 40 anos de profissão, e pesquisador do ICNova. Tem mestrado em Literatura Portuguesa e doutorado em Ciências da Comunicação. Foi correspondente da Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, BBC – Serviço Brasileiro, Deutsche Welle e Agência Xinhua, entre outros.