A gestão do patrimônio histórico e cultural é um tema praticamente ausente na cobertura midiática no Brasil. Nos últimos anos, a temática só ganhou destaque na Grande Mídia em ocasiões trágicas, como: nos incêndios no Museu Nacional do Rio de Janeiro e na Cinemateca em São Paulo, ocorridos por falta de manutenção e adequações de segurança. Mais recentemente, novamente a temática ganhou notoriedade por conta da destruição realizada por bolsonaristas no dia 08/01, durante o atentado contra a democracia ocorrido em Brasília.
Em relação aos eventos no Museu Nacional e na Cinemateca, podemos dizer que as tragédias já eram previsíveis e anunciadas, especialmente pelo descaso com o patrimônio histórico e artístico demonstrado pelo governo federal nos últimos anos. O Museu Nacional sofreu cortes nos investimentos da União desde 2015, porém de forma mais agressiva a partir de 2017 quando a instituição recebeu seu menor investimento, até então, no século XXI. O orçamento ainda foi reduzido em 2018, ano em que, em setembro, ocorreu o incêndio que destruiu a maior parte do acervo da instituição. Para efeito de comparação, no período de janeiro a julho de 2014, o Museu Nacional recebeu R$ 741.900,00; já no mesmo período de 2018, o valor foi dez vezes menor, a saber R$ 71.500,00, conforme apurado por uma reportagem do Portal Poder 360 (03/09/2018), de acordo com levantamento junto ao Portal SigaBrasil e corrigido pelo IPCA. Para efeito de comparação, conforme apontado por reportagem do El País-Brasil (04/09/2018), a gestão Temer investiu menos no Museu Nacional do que a Câmara dos Deputados investiu na lavagem de seus veículos oficiais. O investimento na instituição também foi menor do que o que foi gasto na manutenção do Palácio da Alvorada, desocupado desde 2016, quando ocorreu o golpe contra Dilma Rousseff.
No caso da Cinemateca, podemos afirmar que o corte de verbas e a ignorância, por parte do governo federal, dos alertas do Ministério Público Federal de São Paulo sobre os riscos de incêndio do acervo, foram determinantes para a tragédia. No final de maio de 2020 o MPF deu um prazo de 60 dias para a Secretaria Especial da Cultura se posicionar sobre a falta de repasses orçamentários à Cinemateca. Na época os funcionários estavam sem receber salários desde abril e a conta de luz já estava dois meses atrasada, para termos uma ideia do impacto da falta de repasse do orçamento do governo federal. Em 2020 estavam previstos R$ 12 milhões de recursos para a Cinemateca, porém, a suspensão do contrato entre o Ministério da Educação e a Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto – Acerp fez com que nenhuma parcela do orçamento fosse repassada. Reportagens que repercutiram a atuação do MPF na época destacaram o risco de incêndio, como observou o site GHZ (30/05/2020), que destacou a presença de um depósito de rolos de nitrato de celulose na Cinemateca, material altamente inflamável. Portanto, o incêndio ocorrido em julho de 2021 já era anunciado pelo MPF e por veículos de comunicação há pelo menos um ano antes da tragédia.
Sabemos que no Brasil o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan é o órgão responsável por efetivar a gestão do patrimônio cultural, artístico e histórico brasileiro, conforme determinado pelo artigo 216 da Constituição Federal. Porém, nos últimos anos o instituto sofreu um verdadeiro desmonte, com a troca de diversos gestores e com cortes impactantes em seu orçamento. O arquiteto Andrey Schlee, que era diretor do Departamento de Patrimônio Material e Fiscalização foi o primeiro a perder o cargo, por conta do embargo de uma obra da Havan devido a descobertas arqueológicas no terreno. Segundo reportagem da Carta Capital (15/12/2021), Bolsonaro comentou o caso durante um evento na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo – FIESP:
“Tomei conhecimento de que uma pessoa conhecida, o Luciano Hang, estava fazendo mais uma obra e apareceu um pedaço de azulejo nas escavações. Chegou o Iphan e interditou a obra. Liguei para o ministro da pasta e ‘que trem é esse’? Porque não sou inteligente como meus ministros. O que é Iphan? Explicaram para mim, tomei conhecimento, ripei todo mundo do Iphan. Botei outro cara lá”.
A declaração do presidente mostra, por diversos motivos, a total falta de compromisso com a gestão do patrimônio histórico brasileiro. Em primeiro lugar, causa-nos perplexidade o fato de Bolsonaro ter afirmado, após quase 3 anos como chefe do Executivo, que sequer sabia o que era o Iphan. É ainda mais grave que o interesse do presidente pelo órgão só tenha surgido devido ao desejo de um financiador de suas campanhas de colocar fim a um embargo que visava proteger achados arqueológicos. Além disso, Bolsonaro, em sua fala, admite com naturalidade o aparelhamento do Estado promovido por ele, ao nomear para cargos de direção pessoas que cumpram suas ordens, a despeito do caráter técnico exigido por algumas tomadas de decisões.
Após o caso citado acima, diversos superintendentes regionais foram substituídos, assim como, pelo menos, outros 4 diretores, além da presidenta do Iphan, Kátia Bogéa, que foi retirada do cargo para dar lugar a Larissa Pereira, que sequer era servidora do Instituto. A nova presidenta do órgão é graduada em Turismo e Hotelaria e possui pós-graduação em marketing. A nomeação chegou a ser suspensa pela Justiça por “falta de capacitação técnica”, porém a decisão foi revertida. Lamentavelmente, durante esse processo de aparelhamento do Iphan, muitos outros cargos foram distribuídos a profissionais sem a menor capacitação ou perfil para as funções que devem desempenhar. Podemos ilustrar esta questão citando o exemplo da diretoria do Departamento de Patrimônio Imaterial, que foi ocupada, de 2020 a 2022, pelo pastor Tassos Lycurgo, que não tinha nenhuma formação relacionada ao cargo. O religioso possui pós-doutorado em Apologética Cristã (Oral Roberts University, EUA) e em Sociologia Jurídica (UFPB), é doutor em Matemática/Lógica (UFRN), mestre em Filosofia Analítica (Sussex University, Inglaterra), especialista em Direito Material e Processual do Trabalho (Uniderp). O atual presidente do Iphan, nomeado pelo governo Lula, em entrevista concedida ao portal UOL no dia 13/01/23, afirmou que encontrou um Iphan, no qual a maior parte das pessoas não tinham “nenhum perfil técnico, nenhum currículo ligado à área […]”. Leandro Grass ainda afirmou que o perfil dessas pessoas era: “influencers, monarquistas, pastores sem formação e sem currículo, o que compromete o trabalho das superintendências”.
As trocas de cargos promovidas por Bolsonaro deixam clara a intenção do presidente em privilegiar os interesses econômicos do mercado de construção civil e do turismo, a despeito da preservação do patrimônio histórico e cultural do Brasil. Se não bastasse o aparelhamento do Iphan, com a distribuição de cargos por critérios políticos, para pessoas que não possuem qualificação técnica, o órgão teve em 2021 o seu menor orçamento dos últimos 10 anos. Os cortes orçamentários sofridos pelo Iphan foram sistemáticos desde que Bolsonaro assumiu a presidência: o orçamento geral, que era de R$ 650 milhões em 2019, caiu para R$ 399 milhões em 2020 e para 326 milhões em 2021, segundo a plataforma SigaBrasil.
Portanto, o vandalismo e a destruição de obras como: “As Mulatas”, de Di Cavalcanti, “O Flautista”, de Bruno Jorge, além de itens como o relógio de Balthazar Martinot e da escultura de Frans Krajceberg, é mais um episódio do triste descaso com o patrimônio histórico e cultural brasileiro nos últimos anos. Podemos dizer que os terroristas que cometeram o ato personificaram todo o ódio e o desprezo do bolsonarismo contra a arte, a cultura e a história de nosso país. O ocorrido não deve ser retratado pela mídia como o único ataque promovido por bolsonaristas contra nossa arte, cultura e história. O lamentável atentado soma-se ao desmonte do Iphan e à destruição de grande parte do acervo da Cinemateca, fruto da incompetência e do descaso do governo Federal. Ainda podemos citar as avarias em obras de arte que se encontravam no Palácio da Alvorada e que foram danificadas no período em que a família Bolsonaro ocupou o local. Merece destaque a obra “Orixás”, de Djanira, furada por uma caneta, o que revela muito da relação da referida família com o patrimônio artístico nacional.
Embora a atuação de Bolsonaro e de seus fanáticos e violentos seguidores tenha marcado o ponto mais dramático do descaso com a arte, com a cultura e com a história brasileira, não devemos esquecer que outros governos tiveram responsabilidade sobre o catastrófico cenário atual, como revelamos no caso do incêndio do Museu Nacional. A gestão do patrimônio histórico e cultural brasileiro é, somente, um dos aspectos que devem ser reconstruídos no Brasil após os inúmeros desmontes promovidos em nome dos interesses do grande capital e do aparelhamento do Estado, traços marcantes dos governos federais nos últimos 5 anos. Infelizmente, a falta de comprometimento com a gestão do patrimônio histórico e cultural brasileiro foi pouco denunciada pela cobertura midiática e pela sociedade civil organizada no Brasil. Talvez a grande quantidade de acontecimentos em torno do governo Bolsonaro, o grande número de escândalos, os ataques às instituições da República e as incontáveis declarações sem o menor decoro realizadas pelo presidente, tenham tornado impossível para a mídia e para a população como um todo, ter a real dimensão do tamanho do retrocesso vivido pelo Brasil nos últimos anos. Com isso, eventos importantes passaram quase que despercebidos aos olhos da mídia e da sociedade e, certamente, virão à tona nos próximos anos, o que nos dará uma dimensão mais real da dificuldade que será reconstruir o país após a irresponsável aventura bolsonarista. Cabe à cobertura midiática passar o país a limpo e contribuir para que a sociedade possa enxergar o tamanho do desafio que temos pela frente enquanto nação, o que pode contribuir para desarmar os espíritos e mostrar a importância de buscarmos união em prol dos interesses do país. Ter a real dimensão do prejuízo causado pela irresponsabilidade do governo da extrema direita também pode colaborar para que a sociedade possa reconhecer, no futuro, o período como uma triste lembrança para a qual nunca mais desejaremos retornar.
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Diogo Comitre é professor do IFSP, mestre e doutorando do Programa de História Social da Universidade de São Paulo;
Ana Carolina Diniz Rosa Comitre é professora da UNISO, mestre e doutoranda em Saúde Coletiva da Unicamp