Intuição é coisa poderosa. Digo isso porque, no dia 29 de outubro, quando o Jornal Nacional exibiu a reportagem sobre a citação ao nome do presidente Jair Bolsonaro no caso envolvendo o assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes – há mais de 600 dias sem resolução -, identifiquei um erro grosseiro na prática jornalística da TV Globo: a emissora não ouviu as explicações do próprio presidente na reportagem. O telejornal só exibiu as explicações do advogado Frederick Wassef.
No entanto, a Rede Globo tinha, na comitiva de imprensa do presidente, a repórter Delis Ortiz colada em Jair Bolsonaro durante os doze dias em que o presidente circulou pela Ásia e pelo Oriente Médio.
Quando não vi a reportagem exibir uma explicação do presidente, pensei: não é possível que a TV Globo cometeria um erro jornalístico tão pedestre, numa circunstância tão grave, envolvendo o nome do presidente da República num caso de repercussão internacional. Era um erro grave e rasteiro para o jornalismo da TV Globo.
Porém, esse tipo de “erro”, digamos, tornou-se comum na prática jornalística da Rede Globo, especialmente ao longo dos anos em que o “lavajatismo” deu as cartas na emissora dos Marinho.
Parênteses: a deontologia jornalística se deteriora quando não são observadas as práticas jornalísticas sorrateiras que se exercem contra uns e/ou outros, e que um dia podem se voltar contra o jornalismo.
Jair Bolsonaro, naquela raivosa transmissão no Facebook – hoje sabemos que encenada -, já na madrugada (3h50) do dia 30 de outubro na Arábia Saudita, deixou escapar, em tom de crítica, que não foi procurado pela reportagem do Jornal Nacional, mesmo a emissora tendo a repórter Delis Ortiz na comitiva de imprensa com ele o tempo todo. Ou seja, Bolsonaro estava instruído sobre práticas jornalísticas básicas neste caso. Ele sabia que a repórter teria tempo, estrutura, condições e o dever deontológico de ouvir os esclarecimentos dele no caso. Tanto que o presidente tratou da questão na live, justamente para usar também isso contra a prática jornalística da emissora. Ele foi esperto, estava certo e instruído. Deveria ter sido ouvido pela reportagem. Mas era tudo muito estranho.
Até que, em 4 de novembro, a jornalista Mônica Bergamo, do jornal Folha de S.Paulo, publicou a nota divulgada internamente pelo diretor-geral de jornalismo da Rede Globo, Ali Kamel, para os jornalistas da emissora. “Há momentos em nossa vida de jornalistas em que devemos parar para celebrar nossos êxitos”, assim começa a nota de Kamel à equipe. Que finaliza a mesma nota afirmando: “Seguiremos fazendo jornalismo, em busca da verdade. É a nossa missão. Para nós, é motivo de orgulho. Para outros, de irritação e medo.”
Na longa e elucidativa nota, Kamel explica detalhes da apuração jornalística do caso. Tomo a liberdade de reproduzir um trecho significativo para a contextualização deste texto. Retomo a seguir. Aspas para Ali Kamel.
“A origem da reportagem remonta ao dia 1° de outubro, quando a editoria teve acesso a uma página do livro de ocorrências do condomínio em que mora Ronnie Lessa, o acusado de matar Marielle. Ali, estava anotado que, para entrar no condomínio, o comparsa dele, Elcio Queiroz, dissera estar indo para a casa 58, residência do então deputado Jair Bolsonaro, hoje presidente da República. Isso era tudo, o ponto de partida.”
“Um meticuloso trabalho de investigação teve início: aquela página do livro existiu, constava de algum inquérito? No curso da investigação, a editoria confirmou que o documento existia e mais: comprovou que o porteiro que fez a anotação prestara dois depoimentos em que afirmou que ligara duas vezes para a casa 58, tendo sido atendido, nas palavras dele, pelo “seu Jair”. A investigação não parou. Onde estava o então deputado Jair Bolsonaro naquele dia? A editoria pesquisou os registros da Câmara e confirmou que o então deputado estava em Brasília e participara de duas votações, em horários que tornavam impossível a sua presença no Rio. Pesquisou mais e descobriu vídeos que o então deputado gravara na Câmara naquele dia e publicara em suas redes sociais. A realidade não batia com o depoimento do porteiro.”
“Em meio a essa apuração da Rio (que era feita de maneira sigilosa, com o conhecimento apenas de Bonner, Vinicius, as lideranças da Rio e os autores envolvidos, tudo para que a informação não vazasse para outros órgãos de imprensa), uma fonte absolutamente próxima da família do presidente Jair Bolsonaro (e que em respeito ao sigilo da fonte tem seu nome preservado), procurou nossa emissora em Brasília para dizer que ia estourar uma grande bomba, pois a investigação do Caso Marielle esbarrara num personagem com foro privilegiado e que, por esse motivo, o caso tinha sido levado ao STF para que se decidisse se a investigação poderia ou não prosseguir. A editoria em Brasília, àquela altura, não sabia das apurações da editoria Rio. Eu estranhei: por que uma fonte tão próxima ao presidente nos contava algo que era prejudicial ao presidente? Dias depois, a mesma fonte perguntava: a matéria não vai sair?”
“Isso nos fez redobrar os cuidados. Mandei voltar a apuração quase à estaca zero e checar tudo novamente, ao mesmo tempo em que a Editoria Rio foi informada sobre o STF. Confirmar se o caso realmente tinha ido parar no Supremo tornava tudo mais importante, pois o conturbado Caso Marielle poderia ser paralisado. Tudo foi novamente rechecado, a editoria tratou de se cercar de ainda mais cuidados sobre a existência do documento da portaria e dos depoimentos do porteiro. Na terça-feira, dia 29 de outubro, às 19 horas, a editoria Rio confirmou, sem chance de erro, que de fato o MP estadual consultara o STF. De posse de todos esses fatos, informamos às autoridades envolvidas nas investigações que a reportagem seria publicada naquele dia, nos termos em que foi publicada.”
Retomo a palavra. E a partir das informações da nota de Ali Kamel, soubemos que o advogado Frederick Wassef, ao ser informado sobre o conteúdo da notícia, aceitou dar entrevista à reportagem em São Paulo. Kamel diz: “Ele [Frederick Wassef] desmentiu o porteiro e, confirmando o que nós [TV Globo] já sabíamos, disse que o presidente estava em Brasília no dia do crime. Era madrugada na Arábia Saudita e em nenhum momento o advogado ofereceu entrevista com o presidente”.
Assim sendo, Ali Kamel revela que o advogado do presidente “fez parecer” que Jair Bolsonaro não estaria mais acessível naquele momento – era madrugada na Arábia Saudita – para dar uma declaração pessoalmente à reportagem através da jornalista Delis Ortiz.
Como verificamos, Jair Bolsonaro não apenas estava acessível, como estava todo paramentado de terno e gravata esperando para colocar em palco sua performance raivosa, supostamente emocionado, em toda essa armadilha fabricada para desmoralizar o jornalismo da emissora e a imprensa brasileira por tabela, “num entrapment jornalístico que serviu para Bolsonaro posar de vítima e herói”, como precisamente previu o jornalista Reinaldo Azevedo – em 1º de novembro, portanto antes da nota de Ali Kamel vir à tona -, em sua coluna na Folha de S.Paulo intitulada “Sem mordomo, prendam o porteiro!”.
“A Globo tem de se perguntar se não caiu numa armadilha, num ‘entrapment’ jornalístico, que serviu para Bolsonaro posar de vítima e herói. (…) Bolsonaro deixou claro que já tinha ciência havia dias de que seu nome passara a figurar no caso. A fluência atípica da indignação no seu vídeo, apesar da retórica peculiar, pareceu-me de cara bem mais do que improviso. Entrapment“, afirmou Reinaldo Azevedo.
Horas depois da divulgação da nota de Kamel, na coluna de Mônica Bergamo na Folha, o jornalista Reinaldo Azevedo arrematou sua previsão em tom de alerta em seu blog no Uol. “O conjunto da obra só evidencia que existe hoje um trabalho organizado para levar o jornalismo profissional a cair em ciladas, em armadilhas, em pegadinhas.”
Isto posto, resgato algumas reflexões que propus no artigo intitulado “E se for (quase) verdade?”, publicado neste Observatório da Imprensa em 22 de janeiro, na edição 1021.
Para a pesquisadora Rita Lopes, da Universidade da Beira Interior, em Portugal, “a notícia como construção da realidade e a ideia de negócio entre partes para enquadramento noticioso” compõem os dois conceitos-chave acerca da “relação entre jornalistas e fontes de informação na produção da notícia”. Assim, diz Lopes, a “notícia não é o que os jornalistas pensam, mas o que as fontes dizem, mediado pelas organizações noticiosas, rotinas jornalísticas e convenções”. E completa com um porém: a “notícia depende das fontes das notícias, que, por sua vez, dependem da forma como o jornalista procura as fontes das notícias”.
O perigo se instala quando o jornalista se deixa domar pelo desejo de obter da fonte de informação aquilo que quer tanto quanto do modo como quer, para referendar seus anseios jornalísticos exaltados e construir a sua realidade noticiosa. A negociabilidade da construção da notícia, por vezes, já começa viciada na procura da fonte.
“O campo da notícia é um palco de lutas pelo poder”, diz o pesquisador Rogério Santos, citado pela professora Rita Lopes no livro O poder dos media na sociedade contemporânea. É importante termos em mente essa dimensão ao analisar a relação entre jornalistas e fontes de informação na produção da notícia inserida num contexto de “pressões de foro econômico, publicista e concorrencial”, numa espécie de “luta pela prioridade, pela nova mais nova”, explica Lopes, que ressalta: “ao jornalista estabelecem-se dispositivos de temporalidade que o obrigam a uma prática sob o signo da rapidez (ou precipitação) e da renovação permanente”.
Nesse palco, o espetáculo que tem predominado é o valor comercial resultante dessa lógica noticiosa, reforçada por agentes ou grupos comunicacionais mais afeitos aos cifrões dos cliques fáceis e do zapping rápido do que às informações com legitimidade e correção. Isso não se aplica neste caso do Jornal Nacional, mas a vários outros, sim.
Paula Cesarino Costa, ombudsman da Folha à época, no texto intitulado “O presidente contra a imprensa”, disse que o “embate com um presidente recém-eleito é tão desgastante quanto necessário para jornais e jornalistas. Uma reação intempestiva seria tomar Bolsonaro como inimigo a ser derrubado”. E concluiu: “É preciso redobrar a atenção, afinar os filtros editoriais, empenhar-se ainda mais na precisão jornalística e na garantia do direito de defesa.”
Há outras questões instigantes que poderiam ser observadas a partir da cilada armada pelo presidente Jair Bolsonaro contra o jornalismo da TV Globo, ou melhor, contra a imprensa brasileira, porque o intuito do presidente e de seu governo era e será, fundamentalmente, deslegitimar o jornalismo profissional. Isso é plenamente verificável desde o início da presidência de Bolsonaro, como demonstrado no levantamento mensal da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) publicado em 1º de novembro.
“Até 31 de outubro, foram 99 declarações vistas como ataques a jornalistas (onze ocorrências) e descredibilização da imprensa (88 ocorrências), que visam deslegitimar o trabalho jornalístico, colocando a imprensa e os jornalistas como adversários políticos, ou descredibilizando o trabalho de profissionais e veículos. O mapeamento se refere a dados coletados no período de 1º de janeiro a 31 de outubro deste ano, com base em todas as postagens de Bolsonaro no Twitter e no Facebook, além das transcrições dos discursos e entrevistas oficiais que constam no site do Palácio do Planalto. Foram avaliadas todas as ocasiões em que o presidente se refere a jornalistas, mídia, imprensa e produção de notícias.”
Por ora, fico nestas questões deste que já é um caso jornalístico a ser estudado por profissionais da comunicação social. E subscrevo: “A Fenaj e todas as instituições que prezam pela democracia não podem aceitar a institucionalização da violência contra jornalistas e das ameaças à liberdade de imprensa como prática de um governo”, afirma a presidenta da organização, Maria José Braga.
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Rubem Matias Filho é jornalista e historiador. Aluno de mestrado em Ciências da Comunicação na Universidade Nova de Lisboa (Portugal).