Wednesday, 08 de January de 2025 ISSN 1519-7670 - Ano 25 - nº 1319

Estamos perdendo a capacidade de ver a realidade e o que o jornalismo tem a ver com isto?

(Foto:
Tânia Rêgo/Agência Brasil)

Nos Estados Unidos a economia vai bem e a criminalidade diminui, mas os eleitores votam num candidato que denuncia o caos no país. Aqui no Brasil, Lula tranquilizou a nação, a economia também vai bem, mas boa parte dos brasileiros, a maioria dos congressistas e o chamado mercado temem um futuro trágico. No cenário internacional, o fantasma de uma terceira guerra mundial volta a pairar nos grandes fóruns diplomáticos, apesar dos avanços incríveis das tecnologias digitais no modo de vida da população do planeta. Será que estamos perdendo a capacidade de enxergar a realidade?

O contraste entre o que acontece e o que achamos que acontece aponta para um descompasso crescente entre nossa percepção e a realidade. Nesta relação a imprensa tem um papel fundamental, porque é através dela que a maioria das pessoas obtém dados, fatos e ideias que as permitem perceber e opinar sobre o mundo em que vivemos. O jornalista norte-americano Joshua Benton, num artigo publicado no Nieman Lab, um projeto da Universidade Harvard, perguntou:  Será que a imprensa, autoproclamada como “cão de guarda” da democracia e da verdade não consegue mais perceber o mundo?

Benton não chega a dar uma resposta taxativa, mas justifica sua perplexidade recorrendo a dados históricos para mostrar o avanço da alienação informativa do americano médio. Até 2020, republicanos e democratas coincidiam em grande parte de suas percepções sobre realidade econômica e violência urbana. Mas a partir de 2020 surge uma aguda discrepância, quando 90% dos republicanos afirmavam que a criminalidade aumentou, enquanto apenas 29% dos democratas compartilhavam esta percepção.

Na economia, republicanos e democratas tinham mais ou menos a mesma opinião. Em 2020, segundo pesquisas da época citadas por Benton, apenas 15% dos entrevistados de ambos os partidos se mostravam pessimistas em questões como custo de vida, desemprego e taxa de juros.  Agora em 2024, o fosso entre os simpatizantes dos dois partidos aumentou dramaticamente. Enquanto 10% dos democratas se mostram otimistas, o pessimismo contamina 60% dos republicanos. Outro paradoxo: 70% dos americanos, independente da filiação partidária, não se queixam das finanças pessoais, mas ao mesmo tempo 80% deles admitem que a economia nacional está à beira do caos.

Aqui no Brasil, assistimos fenômeno parecido na percepção sobre o estado da economia, apesar de termos muito menos dados do que os disponíveis nos Estados Unidos. Os indicadores numéricos do comportamento da economia como inflação, PIB, emprego e consumo são todos positivos, mas na discussão sobre orçamento e ajuste fiscal predomina a ideia de que também estamos à beira de uma tragédia. Reina a tranquilidade na política nacional, mas o tema do momento é golpe de estado.

O jornalismo e a era das incertezas

O jornalismo tem um papel importante no agravamento desta modalidade de alienação informativa, porque é através da imprensa que a maioria das pessoas tem acesso aos dados, fatos, eventos e ideias que as permitem desenvolver percepções, opiniões e tomar decisões. O problema é que boa parte dos jornais, revistas, emissoras de rádio, de televisão e sites da internet, bem como influenciadores em plataformas digitais ainda não se deu conta das mudanças que tecnologias digitais vêm provocando na forma como os jornalistas interpretam a realidade que nos cerca. 

Pesquisadores, em várias partes do mundo, culpam a avalanche informativa deflagrada pela internet como a principal causadora da generalização das dúvidas e da insegurança cognitiva, pelo menos em metade da população mundial. 

É o que os especialistas e acadêmicos batizaram de crise do modelo dicotômico, ou seja, não existe mais apenas certo ou errado, bonito ou feio, verdadeiro ou falso. Há uma variedade de percepções intermediárias, tipo mais ou menos errado, mais ou menos bonito ou falso. Tudo depende da forma como as pessoas percebem a realidade. Como cada indivíduo vê o mundo de forma diferente, porque somos diferentes, o resultado é uma multiplicidade crescente de percepções e opiniões.

O aumento exponencial das incertezas faz com que as pessoas se agarrem ao que conhecem e ao que lhes transmite segurança, o que as leva a ver o mundo a partir de suas percepções e modo de vida.  O crescimento do conservadorismo está diretamente vinculado a uma menor tolerância na convivência com dúvidas e insegurança informativa.

Esta intolerância é o que alimenta a tendência da extrema direita de usar lentes pessimistas na sua visão de mundo. É uma percepção vinculada a uma estratégia política baseada no autoritarismo, como mostra um meme que se popularizou em plataformas digitais com maioria conservadora de usuários: Tempos difíceis criam homens fortes / Homens fortes geram bons tempos / Bons tempos geram homens fracos / homens fracos geram tempos difíceis. (1)

A imprensa mundial acabou contaminada pela polarização nas formas de perceber o mundo e parece não ter se dado conta de como seu papel é fundamental na redução do fosso que separa percepção e realidade no mundo contemporâneo. Como o jornalismo se propõe a ser imune às distorções na apresentação da realidade, profissionais e não profissionais na atividade implicitamente assumem uma grande responsabilidade na eliminação de todas as modalidades de distorção informativa.

  1. Tradução feita pelo autor do texto de um meme reproduzido no artigo The meaning crisis, and how we rescue young men from reactionary politics (https://www.skeptic.org.uk/2024/11/the-meaning-crisis-and-how-we-rescue-young-men-from-reactionary-politics/) sem citação de fonte.

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Carlos Castilho é jornalista com doutorado em Engenharia e Gestão do Conhecimento pelo EGC da UFSC. Professor de jornalismo online e pesquisador em comunicação comunitária. Mora no Rio Grande do Sul.