Saturday, 21 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Tempo de morder os calcanhares

Três importantes jornalistas deram o sinal recentemente: ou o jornalismo evita as armadilhas mais visíveis do poder político ou se tornará refém dele. Bob Woodward, que acaba de lançar “Medo: Trump na Casa Branca”, afirmou com todas as letras que a imprensa dos Estados Unidos “mordeu o anzol” e Donald Trump conseguiu o efeito que desejava.

O incômodo presidente conseguiu atrair repórteres e veículos para um terreno em que se movimenta com mais traquejo, o do conflito. A mídia comprou a briga do jeito que ele mais gosta e caiu no alçapão que o fanfarrão armou.

Aqui no Brasil, o experiente Carlos Wagner colocou o dedo na ferida: até agora, Bolsonaro pautou as redações e é hora de virar o jogo. O repórter chama a atenção da necessidade de cobertura de temas concretos e que afetam diretamente a vida dos eleitores, tendo eles escolhido o ex-capitão ou não. Cinco dias depois, Malu Gaspar disse que é “hora de acordar”. A colunista da piauí fez uma contundente autocrítica do jornalismo brasileiro, propondo inclusive uma direção para os próximos meses.

Os três profissionais exortam seus colegas a manter o foco sobre o que é relevante e não se distrair com besteiras. Isto é, que se concentrem nos movimentos sub-reptícios e não se seduzam com quaisquer objetos cintilantes que os governantes chacoalhem. Alguns veículos já vêm calibrando suas coberturas nos Estados Unidos, e no Brasil, ainda estamos ensaiando alguns passos. A Folha de S.Paulo parece ser o mais saliente deles, principalmente nas reportagens que investigam os impulsionamentos de propaganda em redes sociais e os disparos em serviços de mensageria instantânea durante a campanha eleitoral. As práticas são ilegais podem ter desequilibrado a disputa, e há muito a descobrir sobre o funcionamento dessas novas estratégias de manipulação informativa e enganação política. A Folha acerta ao seguir as pistas no caso, e se não agrada aos seus concorrentes seguir o jornal paulista, que farejem outros sinais, em trilhas paralelas. Que busquem seus próprios caminhos de investigar o que aconteceu nessas atípicas eleições.

A Folha acerta em insistir e investigar, mas derrapa quando reserva amplo espaço para uma entrevista irrelevante com um personagem como Olavo de Carvalho, por exemplo. Além da desmedida atenção que deu às polêmicas declarações, o fez de forma quase acrítica, sem a devida firmeza para contestações ou contrapontos. Em outras palavras: correu atrás de objetos faiscantes. Só.

Ladridos e dentadas

É natural e esperado que haja uma zona de atrito permanente entre políticos e jornalistas. Os primeiros não querem ser retratados de forma desabonadora nem querem que se revele eventuais erros ou mal-feitos. Políticos não gostam de jornalistas, mas gostam de relações públicas, assessores de comunicação e de publicitários. Esses costumam blindá-los e promovê-los. Jornalistas, não. Podem ser impertinentes, desagradáveis, indelicados e inoportunos. Os melhores geralmente são.

É preciso repetir que não basta que o jornalismo conte verdades, ele precisa também revelar mentiras. O Estado de S. Paulo fez isso, no final de novembro, ao desmentir o deputado Eduardo Bolsonaro. Em uma reunião privada, o político reconheceu que talvez não se conseguisse aprovar a reforma da Previdência, e o jornal publicou a declaração. O terceiro filho de Bolsonaro negou a declaração em rede social, mas foi rapidamente desmentido pelo Estadão que publicou o áudio que provava a fala.

O episódio sinaliza com clareza de que lado o jornal decidiu ficar: do fato, da verdade, do interesse público de saber o que efetivamente aconteceu. Empresas de comunicação que tenham ânimo de lucro costumam dobrar os joelhos quando governos acenam com verbas publicitárias. Muitas vezes, os compromissos financeiros se sobrepõem aos valores jornalísticos, às promessas editoriais. Resistir às chantagens é mais um teste para a mídia nacional, mergulhada no contexto ultrapolarizado da sociedade e afetada por uma economia reticente.

Um dos clichês da nossa profissão é justamente o que reforça o papel do jornalismo como cão de guarda do interesse público. Não foi à toa que usei o verbo farejar alguns parágrafos acima. Repórteres necessitam de sentidos bem aguçados.

Nos novos governos e novas legislaturas, o jornalismo brasileiro precisa verdadeiramente assumir suas funções de vigilância e alerta da cidadania. Precisa latir e avisar que estão cometendo irregularidades, que crimes estão sendo praticados. Mas eu vou mais além: está na hora de soltar os cachorros para que eles mordam os calcanhares de quem está no poder.

Jair Bolsonaro se elegeu com promessas messiânicas de moralidade pública e de restauração nacional. Governadores, deputados e senadores também assumiram sedutores compromissos públicos, que não podem ser ignorados agora. É preciso escrutinar seus mandatos, acompanhar de perto seus movimentos, investigar seus passos. Desde o primeiro dia do ano. Se o Brasil tem uma democracia estável e se as instituições estão mesmo funcionando, não há justificativa para esperar um período de lua de mel. O país tem muitos desafios a vencer e tem pressa. Nenhum voto na urna é voto em branco. Escolher candidatos é parte dos desafios diários da democracia. O cidadão pode (e deve) fiscalizar os atos dos eleitos. O jornalismo, por sua vez, não pode e não deve se negar a fazer isso. Se repórteres e editores se acomodarem, terão sido adestrados.

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Rogério Christofoletti é professor de jornalismo na UFSC e pesquisador do Observatório da Ética Jornalística.