América Latina: tímida em relação à Ucrânia, leniente em relação à Rússia? Do Canadá à Europa, passando pelos Estados Unidos, lança-se um olhar severo a esse decepcionante e reticente “Extremo Ocidente”.
É certo que todos esses países, de uma ou outra maneira, condenaram a violação da soberania ucraniana. Mas nenhum deles aplicou sanções com respeito ao agressor russo. Os líderes do Atlântico sinalizaram sua incompreensão. Sua imprensa deu voz a essas críticas, acrescidas, é claro, de questionamentos de governos e de correntes políticas. Um posicionamento assim, prudente, deve-se a múltiplas razões. Nos limitaremos, aqui, a considerar apenas uma delas: a economia, muitas vezes subestimada.
Em consequência da guerra de Vladimir Putin e das sanções “ocidentais” contra Moscou, os vinte países latino-americanos tiveram de enfrentar o fechamento de ambos mercados, russo e ucraniano. Os desdobramentos dessa imprevista conjuntura são nada menos que paradoxais.
Alguns deles são positivos. Muitos países latino-americanos produzem bens agrícolas, energéticos e minerais suficientes para atender às demandas dos mercados internacionais desestabilizados pelo conflito. Produtores de cereais e carnes, cobre, gás, petróleo, lítio, vivem um momento de euforia. Os fluxos estão em alta e o dinheiro não para de entrar em seus bolsos, desde 24 de fevereiro. A Argentina encerrou o mês de maio com uma injeção excepcional de dólares, 4 bilhões ao todo. São 150 milhões por dia pagos aos agroexportadores, principalmente para os de soja. O trigo semeado agora deverá assumir a frente nessas exportações, no fim do ano, gerando ao menos seis bilhões de receita adicional. As exportações de carne também subiram acima do marco dos 30% [1].
Mas essa moeda tem também o seu outro lado. Os ventos da inflação ameaçam os frágeis equilíbrios econômicos, políticos e sociais. Ao longo de um ano, de abril de 2021 a abril de 2022, a inflação argentina ultrapassou 58%. Os brasileiros, por sua vez, perderam 1,7% de seu poder de compra desde o fim de fevereiro. Os fertilizantes russos, massivamente importados por agroexportadores, têm chegado a duras penas. O Brasil conseguiu garantir a chegada de 24 cargueiros russos estocados com 678 mil toneladas de fertilizantes entre 24 de fevereiro e o final de abril [2]. Ainda assim, seu preço disparou. A ansiedade entre produtores e governos é cada vez mais perceptível.
O chefe de Estado argentino, Alberto Fernández, em caráter de urgência, visitou a Europa entre os dias 11 e 13 de maio de 2022. 25% das bananas equatorianas estavam destinadas ao mercado russo. Enriquecidas com 50% de fertilizantes provenientes da Rússia. Segundo um especialista local, a cadeia de suprimentos está agora gravemente interrompida. No Peru, a Conveagro (Convenção Nacional Agro do Peru), estima que a produção de batata pode cair 40% ainda este ano.
O abrir e fechar das torneiras de gás e de óleo podem responder a esse aumento da demanda? As reservas já estão lá, da Argentina à Venezuela. Grandes projetos, outrora inativos, estão agora sendo impulsionados em função do aumento dos preços, reativados em pelo menos 13 países. A produção de lítio na Argentina e a produção de hidrogênio na Colômbia estão ainda em fase de planejamento. A Argentina colocou os depósitos de Vaca Muerta na mesa ao negociar com seus parceiros que precisam desses produtos. Mas quem é que é capaz de fornecer 10 bilhões de dólares por ano para extrair esse gás e petróleo? Os esperados 500.000 barris/dia e 100 milhões de m3 de gás terão de aguardar no solo por um bom tempo. A Venezuela tem agora a chance de recuperar seu papel de coringa do petróleo. Isso ainda precisará se concretizar. Será que as sanções norte-americanas e europeias serão completamente suspensas? Em qual prazo? Toda a infraestrutura local se viu afetada pelas sanções de Washington e o descuido do governo, em Caracas. De fato, as negociações com investidores começaram em Davos, no dia 23 de maio, e sem data prevista, por enquanto, para chegarem a um bom termo.
Finalmente, tais consequências esbarram nos efeitos de uma herança econômica, financeira e social, por muito tempo mal conduzida. Nos últimos anos, a América Latina acumulou passivos: crescimento lento, retorno do endividamento e cenários de desigualdades abismais, ou seja, tudo o que provocou descontentamento e violência em países como a Argentina, Chile, Colômbia, Equador e Nicarágua. Em outros locais, eleitores censuraram, do México ao Uruguai, passando pelo Peru, os partidos e seu representantes estabelecidos. A pandemia de coronavírus, nos últimos dois anos, não ajudou em nada este cenário.
A escassez de hospitais e de acesso de qualidade à recursos de saúde, a onda de mortes, os confinados sem previdência social, catalisaram demandas essenciais. Por falta de alternativas, os poderes públicos argentino, brasileiro, mexicano e peruano recorreram às vacinas russas e chinesas. Compromissos se firmaram, investimentos foram feitos. Momentos de incerteza econômica e instabilidade social e política não encorajam muito a expressão de opiniões mais duras a favor da soberania ucraniana.
O comércio entre Brasil e Rússia cresceu 89% desde o início do ano. Jair Bolsonaro e Alberto Fernández visitaram Moscou alguns dias antes do início das hostilidades, intencionando assegurar a compra de fertilizantes. Foi possível medir o peso do constrangimento nas observações feitas por Gustavo Petro, candidato com maior intenção de voto à presidência da Colômbia – ainda antes das eleições de 29 de maio –, acerca da guerra russo-ucraniana: “Não podemos fazer nada. […] Temos de nos cuidar. Nossa guerra é outra, [ela é] contra a fome” [3].
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Texto publicado originalmente em francês, em 27 de maio de 2022, na seção ‘Actualités, Amérique Latine’ no site Nouveaux Espaces Latinos – Société et Cultures de L’Amérique Latine et Caraïbes, Paris/França, sob o título “Amérique latine et la guerre russo-ukrainienne – l’économie, une dimension sous-estimée”. Disponível em: https://www.espaces-latinos.org/archives/105680. Traduzido por Thiago Augusto Carlos Pereira e Luzmara Curcino.
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Notas:
[1] Jornal Ámbito Financiero, 17 maio de 2022.
[2] Jornal Economia, 21 maio de 2022.
[3] Proferida na imprensa cotidiana da Colômbia, em 25 de fevereiro de 2022.
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Jean-Jacques Kourliandsky é diretor do Observatório da América Latina junto ao IRIS – Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas, com sede em Paris, e responsável pela cobertura e análise conjuntural geopolítica da América Latina e Caribe. É formado em Ciências Políticas pelo Instituto de Estudos Políticos de Bordeaux e Doutor em História Contemporânea pela Universidade de Bordeaux III. Atua como observador internacional junto às fundações Friedrich Ebert e Jean Jaurès. É autor, entre outros, do livro “Amérique Latine: Insubordinations émergentes” (2014), e colabora frequentemente com o Observatório da Imprensa, em parceria com o LABOR – Laboratório de Estudos do Discurso e com o LIRE – Laboratório de Estudos da Leitura, ambos da UFSCar – Universidade Federal de São Carlos.