Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Bernie Sanders: o novo fantasma americano?

(Foto: Wikimedia)

Na terça-feira (3/3), ocorreu nos Estados Unidos a chamada “Superterça”, com catorze estados realizando simultaneamente as prévias para as escolhas dos candidatos à presidência pelos partidos Democrata e Republicano. Segundo a maioria dos analistas políticos, geralmente quem vence a Superterça desponta como favorito para o restante das primárias, previstas para se encerrarem no mês de junho. No último processo eleitoral, há quatro anos, foi exatamente em uma Superterça que a ex-primeira dama Hillary Clinton praticamente se consolidou como candidata democrata à Casa Branca. Conforme noticiou o portal G1, “este ano a Superterça pode ser ainda mais decisiva, já que passou a incluir a Califórnia, estado com maior número de delegados do país, e que antes realizava suas primárias somente no final do primeiro semestre”. Se, no partido Republicano, é praticamente certa a indicação de Donald Trump à reeleição, do lado democrata a disputa está acirrada entre Bernie Sanders, senador por Vermont, e o ex-vice presidente Joe Biden.

Devido à considerável visibilidade do cargo, o excêntrico Trump já é bastante conhecido do grande público. Suas declarações polêmicas são frequentemente destacadas na imprensa global. Por sua vez, Joe Biden, cuja candidatura apresentou um crescimento vertiginoso nos últimos dias, é o nome preferido da grande mídia estadunidense e, consequentemente, da imprensa brasileira. Já sobre o outro pré-candidato democrata à Casa Branca, muitas questões podem ser suscitadas. Afinal, quem é Bernie Sanders? O que representa a presença de um político que se declara “socialista” na corrida presidencial realizada no centro do capitalismo contemporâneo? Quem é esse senhor, quase octogenário, que nos lendários anos 1960 foi preso por participar de protestos antirracistas, foi prefeito da pequena e conservadora cidade de Burlington, já apoiou a descriminalização do aborto e agora tenta pela segunda vez ser o quadragésimo presidente da nação mais poderosa do planeta? A autointitulada “América” – território do livre mercado por excelência – corre o risco de enveredar para o comunismo?

Pois bem: se formos procurar saber sobre Sanders tendo como principal fonte os discursos geopolíticos da mídia hegemônica, certamente teremos informações reducionistas, enviesadas e altamente tendenciosas. Ou seja, não vamos obter respostas satisfatórias para as questões levantadas acima. O conturbado cenário político estadunidense é muito mais complexo do que os poucos minutos diários dos noticiários internacionais da TV aberta ou das maniqueístas coberturas especiais da GloboNews.

Para começarmos a compreender a representação feita pela grande mídia brasileira sobre Bernie Sanders, o primeiro passo é identificar quais adjetivos são utilizados para descrever o senador de Vermont. Conforme já destacou o professor da USP Marcos Napolitano em seu livro Como usar a televisão na sala de aula, a análise do léxico midiático, isto é, o levantamento das palavras que aparecem com maior frequência nas coberturas sobre um determinado assunto, é um importante mecanismo para desvelar que ideologias estão por trás dos noticiários.

Além de “socialista”, os principais analistas políticos da mídia rotulam Sanders como “radical” e “extremista” em contraposição ao seu rival na disputa das primárias do partido Democrata: o “moderado” Joe Biden (somente a repórter da GloboNews Raquel Krähenbühl refere-se ao senador de Vermont como “progressista”). Não obstante, para Arnaldo Jabor, comentarista do Jornal da Globo, Sanders é um “Bolsonaro de esquerda”. E assim vai se construindo uma imagem negativa de Sanders, apresentando-o como um candidato que, se eleito, poderá causar enorme instabilidade ao sistema político estadunidense e, consequentemente, ao restante do planeta.

Será que esse senhor de 78 anos promoverá a revolução do proletariado no centro do capitalismo global? Ele “come criancinhas”? Os Estados Unidos se transformarão em uma nova União Soviética? Será preciso que alguma atriz famosa de Hollywood vá à televisão dizer que tem “medo de Sanders”, assim como fez Regina Duarte em relação a Lula no ano de 2002? A classe média estadunidense deverá vestir o uniforme de sua seleção nacional e ir às ruas protestar contra a “ameaça Sanders”, sob o bordão “a nossa bandeira jamais será vermelha”?

É fato que o telespectador de perfil conservador, que formula suas opiniões geopolíticas a partir dos posicionamentos de alguns articulistas da mídia hegemônica, provavelmente está convencido que Bernie Sanders é realmente um “radical”. Porém, se formos analisar a atual conjuntura política dos Estados Unidos de uma maneira mais acurada, não é difícil constatar que a situação é bem diferente.

Primeiramente, é preciso analisar a que tipo de “socialismo” Sanders se refere para definir seu direcionamento ideológico. Ao contrário do “socialismo” de Marx – relacionado à revolução proletária, que colocaria um ponto final no sistema capitalista, abrindo caminho para a implantação da sociedade comunista -, o “socialismo” do pré-candidato democrata possui outro viés: refere-se, basicamente, à diminuição do poder das grandes corporações e ao aumento da atuação estatal através da expansão de serviços públicos. Portanto, sob o ponto de vista da esquerda política, Bernie Sanders está muito mais para “reformista” do que propriamente “revolucionário”, fator que poderia descrevê-lo como “moderado” (ironicamente, o adjetivo usado pela grande mídia para qualificar o seu principal oponente no partido Democrata). Em momento algum de sua trajetória pública Sanders propôs o fim da propriedade privada dos meios de produção, pilar básico da sociedade capitalista.

Entretanto, para os setores conservadores de nossa sociedade, de maneira geral, e para a mídia hegemônica, em particular, qualquer político que questione minimamente o status quo capitalista ou proponha reformas sociais (por mais tímidas que possam ser) é sumariamente tachado de “comunista”, “ditador”, “radical” ou “populista”, entre outros termos que apresentariam uma suposta carga semântica negativa.

Por outro lado, é importante destacar que, em um sistema político como o estadunidense – calcado em um bipartidarismo rígido, pensado estrategicamente para que somente candidatos apoiados pelo grande capital tenham reais chances de se eleger -, a ascensão e a grande popularidade de um nome de esquerda como Bernie Sanders (cuja campanha é financiada essencialmente pela sua própria militância, muitas vezes com doações de baixos valores), por si só, já é um indício de uma crise política sem precedentes. Diferentemente dos “identitários” Barack Obama e Hillary Clinton, que suscitam pautas secundárias, o senador por Vermont traz para as discussões políticas questões realmente voltadas para o espectro progressista, como os direitos trabalhistas, as taxações de grandes fortunas, as intervenções imperialistas em nações subdesenvolvidas e a tão temida luta de classes.

Não por acaso, conforme noticiou a própria imprensa estadunidense, setores da cúpula do partido Democrata já articulam uma possibilidade de impedir a candidatura Sanders, mesmo que ela seja a vencedora das primárias. Um racha democrata, com a criação de uma nova organização partidária, também é uma questão não descartada. Além do mais, uma disputa presidencial entre Donald Trump e Bernie Sanders representaria não apenas a crise do sistema político estadunidense, mas também o aumento da polarização ideológica no país.

A crise política se manifestaria no fato de que nem o “socialista” Sanders ou tampouco o “protecionista” Trump representam o perfil recomendado pelo grande capital. Evidentemente, nesse cenário, o republicano seria o candidato apoiado pelos grandes grupos de comunicação estadunidenses, pois, na atual conjuntura de crise econômica global, a extrema-direita ainda é preferível em uma disputa com a esquerda. Situação similar à que ocorreu no Brasil em 2018, quando nossa mídia hegemônica, diante da impossibilidade de vitória eleitoral do chamado “centro” (eufemismo para “direita tradicional”), teve que apoiar a candidatura Jair Bolsonaro para derrotar o PT (no entanto, por aqui, diferentemente da terra do Tio Sam, a extrema-direita é entreguista e diplomaticamente submissa).

Já a polarização estaria presente na disputa entre dois programas de governo bem definidos no espectro ideológico: um à esquerda, com Sanders; outro à direita, com Trump. Situação inédita no já citado fechado bipartidarismo estadunidense. Isso significa que muitas mobilizações populares poderiam eclodir Estados Unidos afora tendo como inspiração o fenômeno político Bernie Sanders.

Caso chegasse à Casa Branca, Sanders seria capaz de promover mudanças significativas no Estado norte-americano? Novamente, as coberturas jornalísticas da grande mídia mais confundem do que propriamente explicam a realidade. Ao personalizar a eleição estadunidense, o que significa reduzir a disputa eleitoral a indivíduos e não levar em conta toda a conjuntura política e os jogos de interesses econômicos, os noticiários internacionais tendem a gerar no público a (errônea) impressão de que um presidente teria plenos poderes para colocar suas ideias em prática, à revelia de quaisquer outros fatores. Conforme a história demonstra, nos Estados Unidos, o capital especulativo e os poderosos negócios corporativos e militares, entre outros lobbies, norteiam o andamento estatal, independente de quem ocupe a presidência, seja Democrata ou Republicano. O que Sanders poderia fazer, no máximo, seria aumentar a atuação do Estado, o que, conforme já destacado neste texto, não é uma prática aceitável pelos grandes capitalistas neste momento de crise econômica global.

Parece que a postura do mainstream político estadunidense em relação a Bernie Sanders segue a velha cartilha de Carlos Lacerda: não pode ser candidato; se for, não pode ser eleito; se eleito, não pode tomar posse; se tomar posse, não poderá governar. E ainda há quem acredite (ingenuamente ou não) no falacioso mantra midiático que diz serem os Estados Unidos “a maior democracia do planeta”.

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Francisco Fernandes Ladeira é mestre em Geografia pela UFSJ. Autor dos livros A influência dos discursos geopolíticos da mídia no ensino de Geografia: práticas pedagógicas e imaginários discentes (parceria com Vicente de Paula Leão) e 10 anos de Observatório da Imprensa: a segunda década do século XXI sob o ponto de vista de um crítico midiático (em processo de edição), ambos pela editora CRV.