Desde meados de julho de 2021, Cuba e Haiti estariam em um remake atualizado e ao vivo de La fièvre monte à El Pao, de Luis Buñuel [1]? A violência eruptiva, quase simultânea em ambas as ilhas, e igualmente inesperada em ambos os casos, pode justificar qualquer paralelismo? Podemos colocar ‘no mesmo saco’ estes dois países em função de sua proximidade geográfica nas Grandes Antilhas?
À primeira vista, tudo está em oposição. Desde sua independência, o Haiti tem sido governado por “elites” sociais que, em sua maioria, são indiferentes ao destino da maioria de seus concidadãos. Voltadas para Washington, por toda sorte de necessidade, essas elites cedem ao fatalismo de um horizonte historicamente em escombros. Seus governos sucessivos são, portanto, pró-ocidentais. Ainda assim, não é proibido sonhar, como fez um brilhante romancista haitiano, Jean-Baptiste Schiller, que imaginou uma ficção compensatória, um projeto de desembarque em massa nos Estados Unidos. [2]
Cuba, tendo adotado este caminho, rompeu com o Ocidente em 1960. Havana, sob a liderança de Fidel Castro, juntou-se ao “campo” soviético. E adotou o comunismo como a ideologia estruturante de sua vida institucional e social. A URSS se liquefez, e com ela sua rede diplomática, em 1991. Os líderes cubanos, resistindo ao canto de sereia gorbachviano, optaram por preservar a tocha leninista, até hoje. A Constituição, revista em 2020, casou-se com oximoros ideológicos, defendendo uma democracia unipartidária.
Se diferentes nesse aspecto, as semelhanças geográficas e históricas entre Havana e Porto Príncipe também estão presentes. Elas constituem uma matriz comum que leva a comportamentos semelhantes em muitos aspectos. Cuba e Haiti foram colonizados muito cedo, no final do século XV. Algumas décadas depois, a Espanha e a França criaram nesses territórios economias de exploração agrícola mantidas com a escravização de africanos. A independência de seus povos, dolorosamente conquistada, não foi totalmente reconhecida. A soberania cubana, assim como a soberania haitiana, logo foram limitadas, principalmente pelos Estados Unidos. Como uma potência regional antes de ser global, Washington cravou seus dentes nas Antilhas. Os dois estados caribenhos foram ocupados militarmente. Os sucessivos governantes dos palácios presidenciais em Havana e Porto Príncipe, quem quer que sejam, presos nessas contradições internacionais, têm favorecido a preservação de suas posições dominantes. Em nenhum momento eles conseguiram atender às expectativas da população. Paradoxalmente, muitos cubanos e haitianos foram forçados ao exílio, para sobreviver. Paradoxo: numerosos são aqueles que optaram por se exilar justo nos Estados Unidos, país que abriga centenas de milhares deles.
Na ausência de uma solução que atenda às expectativas sociais, tanto em Cuba, como no Haiti, a panela de pressão popular ocasionalmente explode e lança sua tampa política e policial mal vedada. A postura de “laissez faire” adotada pelas “lideranças” do Haiti mergulhou o país em uma encruzilhada dramática: o abandono da assistência médica em meio à pandemia de Covid-19, a perpetuação indefinida da estagnação econômica, o aumento da insegurança descontrolada, o abandono dos bairros ao crime organizado e o assassinato do Presidente Jovenel Moïse, um chefe de Estado que há muito perdeu sua legitimidade e a confiança de seus apoiadores.
A liderança exclusiva do Partido Comunista Cubano tem distribuído a escassez de forma relativamente uniforme desde 1960. Nesse cenário, a crise da Covid-19 teve duas consequências que agravaram os desequilíbrios: as receitas do turismo, uma fonte essencial da riqueza nacional, desapareceram em semanas. Estima-se que o PIB tenha caído 11% em 2020. Por falta de moeda estrangeira, as autoridades não compraram vacinas. Elas confiaram em pesquisas locais, que desenvolveram duas vacinas, Abdalla e Soberana, mas dado o atraso do processo para torná-las operacionais essas decisões não foram capazes de proteger rapidamente a população. Em 10 de julho de 2021, 6.923 pessoas foram infectadas e 47 morreram. Esse ritmo no desenvolvimento da vacina não permitiu ao país o lançamento de uma campanha de venda de vacinas para compensar a perda de moeda estrangeira por parte do setor do turismo. Enquanto isso, Cuba sofria as consequências da camisa de força imposta à economia por uma nomenklatura [burocracia ou casta dirigente] preocupada em preservar sua posição dominante, que bloqueia qualquer alternativa produtiva. Cuba tem que importar 70% de seu consumo de alimentos e 69% de seu petróleo. As reformas homeopáticas, concedidas e repetidas nos últimos anos, uma espécie de acordeão NPE [3], aumentaram o nível de descontentamento. A faísca, que começou em uma pequena localidade chamada San Antonio de los Baños, sem surpresas, espalhou-se rapidamente pelos quatro cantos da ilha.
Na história, a escassez e a penúria têm sido a causa de muitas mudanças de regime político. Os líderes de Cuba e do Haiti, apesar de seus diferentes antecedentes ideológicos, têm vivenciado isso dolorosamente nas últimas semanas. O anúncio de sanções mais drásticas pelos Estados Unidos de Joe Biden, bem como a recomendação da comunidade internacional de colocar o Haiti sob vigilância, só podem acrescentar mais desordem interna nesses países, condenados a ser ‘sem chapéu‘, segundo a feliz definição de Dany Laferrière [4], e, em última instância, alimentar a instabilidade da América Central.
Texto publicado originalmente em francês, em 29 de julho de 2021, na seção ‘L’actualité politique’, no site Nouveaux Espaces Latinos, Paris/França, com o título original “Fièvres caribéennes: Cuba, Haïti, em crises paradoxalement parallèles”. Tradução de Andrei Cezar da Silva e Maisa Ramos Pereira. Revisão de Luzmara Curcino e Pedro Varoni.
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Jean-Jacques Kourliandsky é diretor do Observatório da América Latina junto ao IRIS – Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas, com sede em Paris, e responsável pela cobertura e análise conjuntural geopolítica da América Latina e Caribe. É formado em Ciências Políticas pelo Instituto de Estudos Políticos de Bordeaux e Doutor em História Contemporânea pela Universidade de Bordeaux III. Atua como observador internacional junto às fundações Friedrich Ebert e Jean Jaurès. É autor, entre outros, do livro “Amérique Latine: Insubordinations émergentes” (2014), e colabora frequentemente com o Observatório da Imprensa, em parceria com o LABOR – Laboratório de Estudos do Discurso e com o LIRE – Laboratório de Estudos da Leitura, ambos da UFSCar – Universidade Federal de São Carlos.
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Notas
[1] Filme inspirado no romance de Henry Castillan, que tem por pano de fundo um Estado fictício da América central onde vigora um regime ditatorial, minado pela corrupção, e em cuja penitenciária se encontram aprisionados centenas de presos políticos, onde se infringem vários direitos humanos.
[2] Jean-Baptiste Schiller, Et si on envahissait les USA [E se invadíssemos os EUA]. Paris: Editora Le serpent à plumes, 2002.
[3] Nova Política Econômica implementada por Lenin em 1921, liberalizando temporariamente a economia a fim de reavivar as atividades paralisadas pela socialização dos meios de produção e pela guerra civil. Foi suspensa em 1928 por Stalin.
[4] Dany Laferrière, Pays sans chapeau [País dos sem-chapéu]. Paris: Le serpent à plumes, 2001. NT.: Os sem-chapéu, na cultura haitiana, dizem respeito aos mortos e seu país de além-mundo, que podem retornar sob a forma de zumbis.