Os resultados das pré-convenções (caucus em inglês) para a escolha dos candidatos presidenciais do Partido Democrata e do Partido Republicano no estado de Iowa, nos Estados Unidos, parecem-me anunciar a morte do establishment. Eu já fizera uma descrição do que entendia por establishment em agosto de 2014.
Quais foram as prioridades do establishment que alicerçaram de maneira inexorável os governos republicanos e democratas? No caso do primeiro, foi uma política externa sólida e agressiva. Como escreveu Stephen Kinzer sobre os governantes da década de 50, “a excepcionalidade , ou seja convicção de que os Estados Unidos têm o direito de impor sua vontade porque sabem mais, veem mais longe e vivem num plano moral acima do das outras nações, não era uma banalidade, e sim, o princípio que organizava a vida quotidiana e a política global”.
O segundo princípio do establishment foi “o que é bom para Wall Street (Bolsa de Valores) é bom para os Estados Unidos”. Apesar dos esforços dos democratas para pintar o Partido Republicano como o partido de Wall Street, basta acompanhar as trajetórias dos secretários do Tesouro (equivalente ao cargo de ministro da Fazenda, no Brasil) Rubin e Summers, do governo Clinton (especificamente, seus esforços para por fim à lei Glass-Steagal 1 e desregular os grandes bancos e os mercados de commodities) para constatar que ambos os partidos são culpados de uma relação preferencial com dinheiro; aparentemente, quem governa é o establishment, independentemente de quem está no poder.
Durante os últimos anos, tenho argumentado que vivemos num interregno. O filósofo italiano Antonio Gramsci definiu bem esse conceito: “O velho está morrendo e o novo ainda não nasceu; nesse interregno surgem muitos sintomas mórbidos.” É possível detectar essa sensação de ficar preso entre um establishment que morre e uma nova ordem que não acabou de se formar em quatro áreas. Em nossa política interna, vemos uma batalha populista sem fim em que o país mais velho e mais branco investe suas esperanças em Donald Trump e Ted Cruz para evitar um Estado multicultural onde a nova maioria será formada por por imigrantes e jovens .
Nos negócios, vemos os gigantes da economia do carbono (a Exxon Mobil, as Koch Industries e a Peabody Coal) lutando para preservar seus negócios num mundo em transição para uma economia de energia limpa. Os gigantes de Wall Street e do Vale do Silício, por sua vez, também lutam contra uma regulação concreta de seus negócios e uma tributação pesada de seus bilhões em capital lucrativo. E, por fim, no mundo dos assuntos internacionais, vemos as forças do complexo militar-industrial batalhando por um orçamento militar de 800 bilhões de dólares [cerca de R$ 3,1 trilhões] para preservar o status de único país hegemônico dos Estados Unidos, ainda que compreendam que o mundo futuro é multipolar.
Redistribuir como é gasto o dinheiro do povo
Apesar do aparente caos de nossa atual campanha política, temos que encarar esta situação como uma transitória e não como uma condição permanente. A ironia profunda é que só uma pessoa sem perspectiva alguma de futuro seria capaz de acreditar que dentro de 30 anos estaremos vivendo num país em que brancos não-hispânicos ainda formem a maioria da população (a instituição Brookings diz que os brancos anglo-saxões se tornarão uma minoria em 2044), onde o carvão e o petróleo ainda serão as fontes predominantes de energia e Wall Street ainda tenha o controle da economia.
Em outras palavras, nós sabemos que a mudança vai chegar. O que está em jogo é se a resistência à mudança será muito ou pouco amarga. É por isso que as campanhas de Trump e de Cruz são tão fascinantes e por que uma perspectiva histórica é tão importante. No início da década de 1850, muita gente do Partido Whig (antecessor do Partido Republicano) começou a adotar uma posição muito nacionalista.
Acreditavam que as ondas de imigrantes católicos que vinham da Irlanda, da Alemanha e da Itália representavam uma ameaça enorme e que estavam sob o controle de um soberano estrangeiro: o papa. Acabaram rompendo com o Partido Whig e formaram o Native American Party (também conhecido como Os Ignorantes).
Abraham Lincoln foi muito lúcido em relação à ameaça que via nos Ignorantes. Se Os Ignorantes tomarem o poder, o texto da Declaração de Independência será “todos os homens são criados iguais, exceto os negros, os estrangeiros e os católicos”, disse ele. “Se isso ocorrer, prefiro emigrar para algum país onde não finjam amar a liberdade – para a Rússia, por exemplo, onde o despotismo é puro, sem uma mistura à base da hipocrisia.”
Mas Os Ignorantes acabaram fracassando porque os Estados Unidos rejeitaram o nativismo (política de proteger os interesses dos cidadãos que nasceram no país). Hoje, no entanto, são gastas enormes quantias de dinheiro pela plutocracia norte-americana (vide o livro de Jane Mayer sobre os irmãos Koch, Dark Money 2) para preservar um mundo à beira da morte. Utilizam-se cinicamente do nativismo para atrair a classe operária apesar dos sindicatos norte-americanos não simpatizarem muito com os interesses vinculados à manutenção do status quo da economia nas finanças, no petróleo e nos negócios militares.
Mas também há um establishment do Partido Democrata – e que também protege as necessidades de Wall Street e do complexo militar-industrial. E é por isso que o empate virtual no encontro para a escolha dos candidatos democratas em Iowa me parece tão importante. A mensagem de Bernie Sanders me parece muito simples: devemos redistribuir a maneira pela qual gastamos o dinheiro do povo. Veja abaixo o gráfico de nosso orçamento discricionário (gastos autorizados por decisão do Congresso).
As forças da intolerância não são tão fortes
Este gráfico não leva em consideração 150 bilhões de dólares [cerca de R$ 580 bilhões] suplementares com gastos de guerra no Oriente Médio. Eu acho que o que Sanders está tentando fazer é levar-nos a imaginar um país que deixe de gastar quase 1 trilhão de dólares (R$ 3,9 trilhões) por ano em sua defesa e, em vez disso, redistribua parte desse dinheiro em saúde e bolsas universitárias para estudantes necessitados.
Mas esse tipo de opinião audaciosa é rejeitada pelo establishment democrata, que não a considera realista. Estão dizendo que a revolução de Sanders é impossível e que as mudanças graduais são a única esperança para os progressistas. Recentemente, Paul Krugman examinou a natureza dessa revolução.
Se tudo, ou quase tudo, o que é feito na política norte-americana está relacionado à influência de muito dinheiro, então os eleitores da classe operária são vítimas de uma falsa consciência. E seria possível um candidato defensor do populismo econômico penetrar nessa falsa consciência e lograr uma reestruturação revolucionária do panorama político atual ao tornar suficientemente forte o argumento de que está do lado dos sindicatos norte-americanos.
Se as divisões na política norte-americana, por seu lado, não são unicamente sobre dinheiro, mas refletem preconceitos profundos com os quais os progressistas não conseguem se reconciliar, essas opiniões de uma mudança radical são ingênuas. E eu acho que são.
Mas acho que Krugman está enganado. As forças da intolerância não são tão fortes quanto ele acredita. Pense na oposição à ideia de um casamento homossexual há cinco anos. O fato de que a batalha entre os opositores ao casamento homossexual e uma geração mais jovem nem faça parte da atual e encarniçada campanha política é um tributo à nossa capacidade de nos adaptarmos. A velha posição morreu e uma nova nasceu. Atravessamos o interregno muito rapidamente.
Tarde demais para uma política e uma economia do establishment
O uso que Paul Krugman faz do termo “falsa consciência” me parece adequado. De acordo com o Centro para Estudos do Eleitorado Norte-americano, 93 milhões de cidadãos elegíveis não votaram na eleição presidencial de 2012. Somente a teoria de que os cidadãos comuns são incapazes de realmente compreender como são manipulados pelos plutocratas poderia justificar essa extraordinária passividade por parte do público norte-americano.
É claro que o livro de Jane Mayer, Dark Money, desmascara como os tão apregoados esforços por uma reforma da justiça penal dos irmãos Koch eram, na verdade, dirigidos a proteger criminosos de colarinho branco, como eles próprios. Somente a falsa consciência poderia explicar o grande número de sindicalistas que apoiam Donald Trump.
No período que ficou conhecido como Era Progressista, quando Teddy Roosevelt e Woodrow Wilson enfrentavam a riqueza entrincheirada de John D. Rockefeller e J.P. Morgan, o ensaísta liberal Walter Lippman lamentou um público “que demora a ser acordado e é rapidamente desviado… e só se interessa quando os acontecimentos já foram melodramatizados na forma de um conflito”. O que Bernie Sanders vem tentando fazer é ir além do cinismo de Lippman e Krugman e ver a classe média branca pelo que ela é, ou seja, como ela está decepcionada com as estratégias tanto dos democratas como dos republicanos.
O que é chocante – e crucial para se compreender nosso momento populista – é o fato de que as lideranças de ambos os partidos não estão apenas insensíveis a esta angustia da classe média. Elas a incorporaram ao seu discurso político.
A intelligentsia da esquerda raramente deixa passar um momento sem nos lembrar o eclipse demográfico dos eleitores brancos de classe média. Às vezes, esses eleitores são descritos como racistas, ou ridicularizados como pretensiosos moradores de subúrbios ricos que não têm a vivacidade da nova “classe criativa” urbana. O recado é o seguinte: os norte-americanos brancos de classe média não são apenas irrelevantes, são um estorvo.
Os conservadores não são menos cruéis. A previsão de mau agouro dos especialistas é de que os “inovadores” estão em vias de serem esmagados por uma praga de “aproveitadores” . O recado é o seguinte: se não fosse por conta de pessoas bem-sucedidas como nós, as pessoas de classe média como vocês estariam fadadas ao fracasso. E se você não é um “produtor” de empreendimentos, você é um estorvo. O que há de surpreendente, então, na rebelião dos eleitores brancos de classe média?
Então, vejamos onde isso nos deixa em relação à eleição de 2016. Minha aposta é que Donald Trump irá perder o embalo nas próximas seis semanas. Do ponto de vista do establishment republicano, é óbvio que pessoas como os irmãos Koch ficariam muito felizes com Ted Cruz ou Marco Rubio. Ambos se comprometeram a baixar os impostos e lutar contra quaisquer tentativas de tornar as mudanças climáticas uma prioridade. Ambos estão brigando para ser o super-falcão.
Do lado democrata, o cálculo do interregno é mais sutil. Tanto Hillary Clinton quanto Bernie Sanders acreditam nas mudanças demográficas que farão dos Estados Unidos um autêntico país multicultural. Ambos adotam a ciência das mudanças climáticas e a consideram uma prioridade absoluta. Mas há dois outros elementos que me preocupam em relação a Hillary Clinton.
Ela não é menos falcão que Rubio ou Cruz. A possibilidade de uma reavaliação radical do por que gastamos quase 60% de nosso orçamento discricionário com o complexo militar-industrial não irá acontecer numa gestão dela. E também há a questão de Wall Street. Não há coisa alguma nos 25 anos de história dos Clintons que me leve a acreditar que eles prejudicariam o grupo financeiro Goldman Sachs ou o Citigroup. Bill e Hillary podem ter um discurso populista, mas apoiam consistentemente o lado dos plutocratas.
Isso deixa as autênticas reformas progressistas com Bernie Sanders. Ele não é um líder perfeito, mas às vezes você tem que jogar com as cartas que tem na mão. É evidente que os Clintons passaram o ano de 2015 torcendo para que Elizabeth Warren e Deval Patrick não se candidatassem. E também é evidente que eles não pensaram que um obscuro socialista democrático de Vermont, de 74 anos de idade, pudesse representar um desafio concreto. E é isso que ele faz.
Pode ser que 2016 seja o último suspiro para o establishment de ambos os lados do corredor e que nós vejamos, em novembro, uma eleição entre Hillary Clinton e Marco Rubio. Mas também pode ser que Sanders tenha razão e que já seja “tarde demais para uma política do establishment e uma economia do establishment”. E então, se ele conseguir Elizabeth Warren como sua companheira de chapa, talvez saiamos deste interregno mais cedo do que imaginávamos.
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Jonathan Taplin é diretor do Laboratório de Inovação , na Universidade do Sul da California (Annenberg) , um espaço onde estudantes, professores e empresários discutem novos projetos de impacto social.
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1) Lei promulgada por Franklin Roosevelt para evitar um colapso financeiro no pós guerra nos EUA. Esta lei propiciou condições para alavancar as necessidades das corporações industriais ligadas ao setor não-monetário da economia.
2) O livro conta a história da família Koch , um clã de milionários norte-americanos cuja fortuna foi iniciada com um financiamento de Joseph Stalin para construir refinarias na antiga URSS. O patriarca Fred Koch teve também prósperos negócios com Hitler, antes da II Guerra Mundial. Os irmãos Charles e David Koch são ultraconservadores, prometeram doar 900 milhões de dólares para a campanha eleitoral do candidato republicano à sucessão do presidente Barack Obama.