Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Eleições legislativas em Portugal: que sentido atribuir à vitória do PS?

(Foto: PS/Fotos Públicas)

Na eleição antecipada do legislativo em Portugal, ocorrida em 30 de janeiro, vimos acontecer algo raro hoje em dia na Europa, o Partido Socialista português e o Primeiro-ministro, em final de mandato, António Costa, serem reconduzidos ao poder com uma maioria absoluta de assentos no parlamento. Jean-Jacques Kourliandsky, diretor do Observatório da América Latina da Fundação Jean-Jaurés, analisa as razões e as consequências desses resultados.

Os eleitores portugueses votaram no dia 30 de janeiro de 2022 para eleger os seus 230 deputados. Esta eleição foi desconcertante em muitos aspectos. Não estava agendada para essa data, e o seu resultado foi uma surpresa. A Assembleia da República eleita em 2019 foi de fato renovada em 2022, na sequência de uma dissolução surpresa. O governo em exercício, do socialista António Costa, que até então pertencia à minoria na Câmara, ganhou 119 lugares e obteve assim uma maioria absoluta de representação.

Esta cascata de acontecimentos pegou de surpresa a classe política e os seus observadores, os meios de comunicação social e as pesquisas de intenções de voto. O resultado inesperado ocupou a primeira página e as manchetes da imprensa portuguesa e internacional. Socialistas ocupando majoritariamente a assembleia legislativa é sem dúvida um resultado bastante incomum no mundo de hoje. Governam sempre, em pequena escala, com outros: a direita na Alemanha, a esquerda e os nacionalistas na Espanha. Os partidos punidos eleitoralmente em Portugal nestas eleições, à direita o PDS (Partido Social Democrata, nome aliás equivocado), e o Bloco de Esquerda, a CDU (Coligação Democrática Unitária), a coligação do PCP (Partido Comunista Português) e o Partido Ecologista, conhecidos como os “Verdes”, estão em melhor situação em outros lugares. A esquerda alternativa assume a presidência do Chile, no dia 11 de março de 2022. A direita liberal ganhou as eleições no Equador, em 2021. Além disso, o socialismo português, que raramente tem recebido muita atenção da imprensa, dos círculos e formações progressistas, bem como dos seus homólogos, é relativamente desconhecido internacionalmente.

Que mensagem quiseram os eleitores portugueses transmitir em 30 de janeiro de 2022? Qual é o significado do seu voto? Por que, a essa altura em que o país se recupera da pandemia e das suas consequências econômicas e sociais, esses eleitores não “balançaram a árvore” e derrubaram o governo socialista que presidia o poder? Esse voto, que surpreendeu os microcosmos partidários, dos meios de comunicação e das pesquisas eleitorais, foi um voto de ruptura?

Situação eleitoral e parlamentar

Antes de mais nada, comecemos por recordar os resultados obtidos por todas as famílias do partido em 30 de janeiro de 2022: o PSP (Partido Socialista Português) obteve 119 das 230 cadeiras. Tem, portanto, uma maioria por si só. O seu principal adversário, o PSD (de centro-direita) ganhou 73 postos. Em terceiro lugar ficou o Chega (de extrema-direita), com 12 cadeiras; depois o IL (Iniciativa Liberal, da ultradireita liberal) com 8 lugares; a CDU (coligação do PCP com os Verdes) com 6 cadeiras; o BE (Bloco de Esquerda) com 5 representantes; e finalmente o PAN (Partido Animalista) com 1 eleito. 

O balanço de ganhos e perdas para ambos os lados é o seguinte:

PSP: +11 / PSD: -6 / Chega: +11 / IL: +7 / CDU: -6 / BE: -14 / PAN: -3.

Estes resultados devem ser lidos tendo em mente as tendências a longo prazo do sismógrafo eleitoral. A câmara eleita em 2019, no final do seu mandato, tinha confirmado a onda socialista de 2015 e consolidado, sem mais, a situação do PCP e a emergência do Bloco de Esquerda.

2022 marcou assim uma continuidade para o PSP e uma estacionada para as outras duas tendências da esquerda. A sequência que se viu foi a de uma perpetuação, de uma eleição para a outra, de uma maioria de esquerda. Uma maioria em termos de lugares e de votos expressos. Mas a última votação, a de 2022, mostrou uma redistribuição de votos que de fato não foram favoráveis à esquerda, apenas ao PSP. A coligação PCP e Verdes, e especialmente o Bloco de Esquerda, perderam uma proporção significativa da sua representação parlamentar.

Primeiro elemento de compreensão: a sanção dos responsáveis por dissoluções políticas

Esta inflexão cruzada reflete provavelmente a interpretação dada pelos eleitores à decisão tomada pelas duas formações aliadas ao PSP, o Bloco de Esquerda e a coligação PCP-Verdes, de se recusarem, em 27 de outubro de 2021, a votar a favor do orçamento de 2022 apresentado pelo governo de António Costa. No dia 4 de novembro, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, declarou a dissolução e apelou à realização de novas eleições. A sua decisão foi justificada pela necessidade de se ter uma maioria capaz de gerir os 16 bilhões de euros de fundos de estímulo concedidos pela União Europeia. O Bloco de Esquerda e o PCP rejeitaram subsequentemente qualquer responsabilidade pela crise. Em vez disso, culparam o PSP e o Primeiro-ministro. O eleitorado tirou uma conclusão esmagadoramente diferente destes acontecimentos, e puniu nas urnas as duas partes que decidiram não aprovar o orçamento em 27 de outubro de 2021.

Resta saber por que razão estas duas formações rejeitaram o orçamento apresentado por um governo que antes seus membros vinham apoiando desde 2015. Havia certamente diferenças fundamentais. Para o PCP, o último partido comunista estalinista da Europa, e o Bloco de Esquerda, fundado em 1999 por vários grupos trotskistas [1], o PSP não era um parceiro a longo prazo. Demasiado reformista, não suficientemente esquerdista [2], suspeito de procurar outros aliados mais de direita, e porque o Partido Socialista, como escreveu o deputado Jorge Costa (BE), em 10 de novembro de 2021, “obedeça às ordens de Bruxelas” [3]. A decisão tomada pela aliança PCP-Verdes e pelo Bloco de Esquerda foi sem dúvida ou talvez um cálculo eleitoral para virar a mesa, na esperança de lucrar com isso. As eleições municipais de 26 de setembro de 2021 não trouxeram os resultados esperados. Esses dois grupos justificaram então a sua decisão em função da falta de ambições sociais e salariais no orçamento apresentado pelo governo do PSP. Os dois grupos solicitaram uma revisão do código do trabalho, a revalorização das horas extras, um aumento das férias pagas e um aumento dos subsídios de desemprego.

Estes argumentos são sem dúvida válidos para um eleitor de esquerda, mas não foram convincentes o bastante, ou foram considerados inadequados, pelos demais eleitores. O contexto desempenhou, de fato, um papel decisivo. A vitória da esquerda em 2015 foi uma resposta a uma expectativa de ruptura com as políticas de austeridade neoliberais dos governos de direita entre 2011 e 2015.

A renovação desta maioria em 2019 tinha materializado o respeito por esta expectativa. Portugal reestruturou as condicionalidades impostas pela Troika (BCE/Banco Mundial/FMI), em troca de um pacote de ajuda de 78 bilhões de euros. Sem quebrar o equilíbrio orçamentário, saiu então da recessão e da dívida e regressou ao crescimento enquanto implementava uma série de leis e medidas voltadas para a melhoria e avanço no plano social e societal. Funcionários públicos com contratos temporários foram efetivados, trabalhadores independentes tiveram acesso à segurança social, foi aprovada uma lei progressista de saúde pública, bem como outra de despenalização do direito à morte assistida, as mensalidades universitárias foram reduzidas e o salário-mínimo foi aumentado de 505 euros, em 2015, para 705 euros, em 2021. Embora a crise do coronavírus tenha interrompido o crescimento e impactado o mercado de trabalho, o governo foi capaz de tomar as medidas sociais e sanitárias que ajudaram a conter a pandemia. Em 2021, Portugal era o país com a maior taxa de vacinação da Europa, 90%. Isto impulsionou a economia e o emprego. De acordo com o Instituto Nacional de Estatística português, a taxa de crescimento em 2021 foi de 4,9%, a taxa de desemprego foi de 6,4% em outubro de 2021, e 5,9% em dezembro.

Segundo elemento: “é melhor um pássaro na mão do que dois voando”

Neste clima difícil e incerto, o Primeiro-ministro, António Costa, foi capaz de oferecer uma perspectiva com base no que já havia sido feito, e que considerado insuficiente pelos opositores, ainda assim funcionou como uma garantia. A sua experiência governamental e municipal e o seu caráter “bem temperado” davam consistência à hipótese de uma continuidade de seu governo, em prol do social, mas sem radicalismos, tal como empreendido desde 2015.

António Costa combina um perfil político pragmático com a capacidade de tomar decisões de forma rápida e assertiva [4], no espírito do socialismo do possível, indiferente às proibições dogmáticas, desejadas por seu partido. O PSP foi refundado em 1972 em Bad Münstereifel, perto de Bona, com o apoio do SPD [5] alemão, tendo rompido com uma herança marxista, ainda muito presente no SFIO francês ou no PSOE espanhol naquela época. Adotou os seus princípios humanistas e reformistas. “O socialismo democrático”, escreveu um dos seus secretários-gerais, Jorge Sampaio, “não é um modelo pré-estabelecido […] é adaptável e circunstancial […] [longe] do modelo estatista falido do Leste, bem como do modelo neoliberal do Ocidente” [6]. Isto nunca impediu António Costa de se misturar com outras famílias políticas, tanto à sua direita como à sua esquerda. Parafraseando o título de uma das suas publicações, pode se dizer que para ele “todos os caminhos estão abertos” [7]. Ele sabe como articular a plasticidade teórica do PSP com uma capacidade de negociação sem preconceitos. Criticado em 2015 pela direita, mas também pela ala moderada do PSP, pelo seu pacto governamental com o Bloco de Esquerda e com a coligação PCP-Verde, retomou a alcunha dada a este arranjo à época, de geringonça.

Durante a campanha para as eleições legislativas de 30 de janeiro de 2022, demonstrou mais uma vez a sua capacidade de lutar em todas as frentes de comunicação social para defender a sua linha tática e o seu desejo de permanecer no Palacete de São Bento (residência dos primeiros-ministros portugueses). Participou de um grande número de debates com os seus vários adversários. E isto, como o diário espanhol El País [8] assinalou, foi um feito sem precedentes. Nunca antes um Primeiro-ministro concordou em debater com os seus oponentes, tanto individualmente como em um formato coletivo. Durante estes debates, António Costa pediu aos eleitores que lhe dessem os meios para continuar o caminho que tinha traçado, em termos econômicos, sociais e de saúde. A mensagem, vista por mais de 20 milhões de espectadores de televisão, foi ouvida. Os seus aliados de esquerda foram punidos por, nestas circunstâncias excepcionalmente difíceis, terem assumido o risco de abrir uma crise incerta ao rejeitarem o orçamento. A alternativa tradicional de direita, o PSD, não parecia estar em condições de governar sozinho. As duas formações que poderiam fornecer o complemento parlamentar necessário, a extrema-direita para os Liberais e a direita radical para o Chega, foram vistas como portadoras de regressão social e de instabilidade democrática.

Terceiro elemento: um eleitorado social popular sem radicalismo

Outra explicação, mais estrutural do que conjuntural, permite sem dúvida compreender a escolha majoritária feita pelos eleitores portugueses. António Costa e o seu partido se voltaram sensivelmente para um eleitorado popular, e se mostraram preocupados em manter as melhorias sociais e salariais, que foram conquistadas sem grandes tumultos.

De acordo com uma equipe de investigadores da École des Hautes Études en Sciences Sociales, Portugal é o último país da Europa onde podemos observar a perpetuação de um equilíbrio entre o eleitorado “popular” e a esquerda tradicional [9]. Os eleitores mais pobres e menos instruídos votam a favor do OS, em sua maioria. De fato, de acordo com o inquérito, 43% dos portugueses com rendimentos mais baixos e cuja educação parou na escola primária confiam no PSP. Por outro lado, 54% dos 10% mais ricos votaram pela direita, tal como 52% dos mais instruídos. Esta descoberta, que também preocuparia o Bloco de Esquerda, “permanece” demasiado fraca para provocar um realinhamento do sistema partidário português em direção à “esquerda Brahmin” (a esquerda que se tornou o partido da elite intelectual). Este alinhamento sociológico atrás de um partido de esquerda moderada é tanto mais importante quanto, ao contrário de outros países, particularmente na Europa, os “conflitos socioculturais” (conflitos ligados a questões migratórias ou contradições territoriais internas) que “têm permanecido relativamente fracos, sendo a dimensão econômica ainda o principal fator” [10].

Algumas lições em forma de conclusão

António Costa, o Primeiro-ministro que estava em fim de mandato, e o PSP obtiveram maioria absoluta nas eleições parlamentares portuguesas de 30 de janeiro de 2022. Este resultado é a consequência de uma combinação de fatores ligados a uma situação particular: as classes trabalhadoras portuguesas, as categorias mais pobres e menos instruídas, permanecem leais à essa esquerda “possível”. Mais do que uma mudança radical do modelo econômico e político, essas camadas da população querem uma melhoria dos seus salários, de sua proteção social e, mais globalmente, dos serviços públicos.

O PSP encarna esta aspiração desde 1972, quando foi fundado, e tem sido, e continua a ser criticado pela ala à sua esquerda, devido a sua moderação e a sua incapacidade de questionar as imposições europeias e internacionais. O Bloco de Esquerda, o Partido Comunista e o seu aliado Verde, lamentando a falta de ambição social no orçamento de 2022 apresentado por António Costa, provocaram uma crise política em 27 de outubro de 2021 e apostaram que seriam compreendidos pelos mais modestos.

Esta decisão foi claramente condenada pelo povo de esquerda. Os avanços sociais realizados desde 2015 podem ser considerados, com razão, insuficientes. Mas eles têm o mérito de existir. António Costa e o PSP optaram por implementá-los enquanto navegavam em restrições externas de diferentes ordens e em um período de pandemia. Desta forma, o progresso social pôde coexistir com respeito pelos grandes equilíbrios esperados em Bruxelas e Washington. Os eleitores mais modestos sentiram que pedir mais poderia pôr em risco os ganhos obtidos, quer desequilibrando a máquina econômica portuguesa, quer abrindo a porta a partidos de direita e de extrema-direita que, sob o pretexto dos liberalismos e da recusa dos benefícios de previdência social, só poderiam devolver o país à austeridade.

É difícil tirar lições mais gerais de um pleito eleitoral que responde a uma cadeia de fatores fundamentalmente portugueses, conclusão esta a que chegaram os autores de um artigo comparativo entre Espanha e Portugal [11]. Dito isto, mais cedo ou mais tarde o PSP terá de enfrentar uma questão que não foi colocada, ou foi mal colocada, pelos homólogos europeus do PSP, e que os levou ao ostracismo ou ao quase desaparecimento, a de “reinventar a esquerda” para poder responder ao desafio colocado pela crescente contradição entre a “territorialização e a desterritorialização” dos Estados. E, portanto, em Lisboa como em Paris, ou Roma e Varsóvia, é preciso reinventar a esquerda para “resolver a questão do futuro da Europa” [12].

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Texto publicado originalmente em francês, em 18 de fevereiro de 2022, na seção ‘Europe’, no site da Fondation Jean Jaurès, Paris/França, com o título original “Élections législatives au Portugal: quel sens donner à la victoire du PS?”. Disponível em: https://www.jean-jaures.org/publication/elections-legislatives-au-portugal-quel-sens-donner-a-la-victoire-du-ps/. Tradução de Andrei Cezar da Silva e Luzmara Curcino.

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Notas

[1] Cf. Reginaldo Moraes. Bloco de Esquerda e Podemos. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2016.

[2] Cf. Mickael Correia. La face cachée du miracle portugais. Le Monde diplomatique, setembro de 2019

[3] Entrevista com Jorge Costa. A Esquerda antes das eleições em Portugal. Jacobin América Latina, 10 de novembro de 2021.

[4] Cf. Bernardo Ferrão, Cristina Figuereido. Quem disse que era fácil, os caminhos de António Costa para chegar ao poder. Lisboa: Livros d’hoje, 2015.

[5] Mario Soares. Der portugiesische Sozialismus und Willy Brandt. In: Richard Löwenthal (Hrsg), Demokratischer Sozialismus in der achtziger Jahren. Köln-Frankfurt: Europäische Verlagsanstalt, 1979 (p. 195-197).

[6] Jorge Sampaio. Les linies mestres del socialisme portugues. Barcelone: Papers de la Fundació Rafael Campalans, n°26, 9, 1991.

[7] António Costa, Caminho aberto, Lisboa, Quetzal Editores, 2012.

[8] Tereixa Constenla. Los debates de todos contra todos arrasan em Portugal. El Pais, 19 de janeiro de 2022.

[9] Cf. L. Baulus, A. Gethin, C. Martinez-Toledano, M. Morgan. Clivages politiques historiques et mutations d’après crise en Italie, en Espagne, au Portugal et en Irlande. In: Amory Gethin, Clara Martinez-Toledano, Thomas Piketty. Clivages politiques et inégalités sociales. Une étude de 50 démocraties (1948-2020). Paris: EHESS-Gallimard-Seuil, 2021, p. 213-242.

[10]  Ibid., p. 233

[11] Tereixa Constenla. Lecciones portuguesas pra España. El País, 6 de fevereiro de 2022.

[12] Boaventura de Souza Santos. A difícil democracia: reinventar as esquerdas. São Paulo: Boitempo, 2016.

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Jean-Jacques Kourliandsky é diretor do Observatório da América Latina junto ao IRIS – Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas, com sede em Paris, e responsável pela cobertura e análise conjuntural geopolítica da América Latina e Caribe. É formado em Ciências Políticas pelo Instituto de Estudos Políticos de Bordeaux e Doutor em História Contemporânea pela Universidade de Bordeaux III. Atua como observador internacional junto às fundações Friedrich Ebert e Jean Jaurès. É autor, entre outros, do livro “Amérique Latine: Insubordinations émergentes” (2014), e colabora frequentemente com o Observatório da Imprensa, em parceria com o LIRE (Laboratório de Estudos da Leitura) e LABOR (Laboratório de Estudos do Discurso) ambos com sede na UFSCar (Universidade Federal de São Carlos).