É legítimo falar de kremlinologia chilena? A palavra é, em efeito, muito datada. Por falta de informações, cada festa patriótica soviética dava lugar na imprensa e nas chancelarias “ocidentais” a uma minuciosa atualização diária, por observadores especializados, os “kremlinologistas”, dos presentes e dos ausentes na vitrine do poder. Nada comparável com a cerimônia de posse do presidente Gabriel Boric Font, na cena do parlamento chileno na sexta-feira de 11 de março de 2022.
O Chile, como todo estado democrático, é um país transparente. Nós sabemos quem é quem no Palácio de la Moneda. E após cada eleição, nesse dia da festa nacional, e sem necessidade de fotografias que o comprovem, é possível observar o perímetro de influência no governo dadas as lideranças de todo o mundo ali presentes. A análise das personalidades presentes e ausentes no dia da posse do novo presidente chileno, não é, portanto, um exercício inútil. A leitura dos programas de campanha permite ter uma ideia sobre o que pode acontecer após a vitória de um candidato, assim como também as primeiras declarações do chefe de Estado tão logo eleito, mesmo antes de assumir a função. No entanto, o perfil dos convidados, estrangeiros, oficiais e pessoais para essa cerimônia de posse permitem com certeza adiantar alguns julgamentos.
É preciso convir que Gabriel Boric é um presidente “surpresa”. A sua vitória rompeu com a tradição das alternâncias precedentes entre centro-direita e centro-esquerda no Chile. Embalado pela onda popular de protestos no país, sua eleição abalou as urnas, e com elas os partidos tradicionais e talvez até mesmo a política antiga. O primeiro magistrado, jovem, barbudo e sem gravata, “vestia” a mudança. A qualidade das personalidades estrangeiras presentes, como daquelas que poderiam ter ido e não foram, e cuja ausência se fez sentir, dá uma primeira amostra das relações do Chile com o mundo com a eleição de Boric. Quem então estava presente? Da América Latina, da América do Norte, da África, da Ásia e da Europa?
Os países mais próximos, praticamente todos, responderam positivamente ao convite, quaisquer que sejam suas bandeiras ideológicas. O presidente argentino, judicialista, Alberto Fernandez, estava lado a lado, com o boliviano Luis Arce e o peruano Pedro Castilho, ambos de esquerda, e o equatoriano Guilherme Lasso, o paraguaio Mario Abdo Benitez, e o uruguaio Luis Lacalle Pou, todos de direita. Um chefe de estado das Antilhas estava também lá, o dominicano centrista Luis Abinader. Uma posição abaixo, encontramos os três primeiros-ministros caribenhos, o sem partido, Ariel Henry do Haiti, Gilmar Pisas, independentista, de Curaçao, que representava também os Países Baixos, e de esquerda, Mark Phillips, da Guiana. Três vice-presidentes também estavam na festa, o brasileiro Hamilton Mourão, de direita, o hondurenho Salvador Nasralla, de esquerda, e o centrista do Panamá, José Gabriel Carrizo. A Guatemala, governada pela centro-direita, enviou o seu ministro de Relações Exteriores. É de se notar o nível no escalão político relativamente modesto dos enviados da Colômbia, governada pela direita e representada pela ministra dos Transportes, e a pequena comitiva vinda de Cuba, de esquerda, representada pelo ministro das Relações Exteriores, e a representação enviada pelo México, a esposa do presidente (e sem mandato eleitoral), assim como os representantes da Nicarágua e da Venezuela, ambos os embaixadores residentes no Chile.
As outras regiões do mundo se encontram nas fileiras de baixo do ato de posse. Da Europa, a delegação espanhola era a mais importante, com a presença do Rei, Felipe VI, da segunda vice presidenta, de uma ministra e do presidente do Senado. A Irlanda enviou o seu vice primeiro-ministro, e a Itália a sua vice-ministra de Relações Exteriores. Portugal enviou o seu ministro das Relações Exteriores. O Reino Unido, que não é membro da União Europeia, enviou a ministra parlamentar delegada da África e da América Latina. A presidência da União Europeia, a França, não teve representação governamental. Da América do Norte, o Canadá enviou uma secretária de Estado, e no dia seguinte, Justin Trudeau, primeiro-ministro liberal, telefonou para Gabriel Boric. Os Estados Unidos enviaram a diretora da agência federal de pequenas empresas, acompanhada do secretário adjunto de Estado, encarregado da América Latina. A África estava representada pelo presidente da Câmara dos deputados do Marrocos. Do Oriente Médio, veio o vice-ministro das Relações Exteriores da Arábia Saudita e o ministro palestino do Turismo e da Arqueologia. O Japão delegou um ministro de Estado, encarregado das Relações Exteriores.
Uma tomada de posse presidencial na América Latina não tem nada de protocolar ou ideológico. É a ocasião, em um subcontinente sem instituições intergovernamentais universais, para encontrar seus colegas. Isso ocorreu em Valparaiso e Santiago em 11 de março. Todos os governantes que mantém alguma relação contínua com o Chile estavam presentes. Os representantes do Cone Sul, a maioria deles presidentes e em um caso, o vice-presidente, estiveram presentes. A América Central e o Caribe também enviaram um presidente, vários vice-presidentes e primeiros-ministros. Ambos foram acompanhados por seus ministros das Relações Exteriores. Além da economia, as questões migratórias explicam, por exemplo, o nível elevado de representação do Haiti.
A economia, a intensidade das relações comerciais e minerais, é o perfil dominante das delegações dos outros continentes. Em particular os da Arábia, do Canadá, do Japão e do Reino Unido. Três exceções. Aquelas da Espanha, em razão da relação privilegiada que ela pretende manter com os países da América Latina; a delegação palestina, devido à existência antiga de uma importante comunidade no Chile; e a do Marrocos, que pretende reduzir seu apoio à causa saaraui na América Latina.
Isso significa dizer que o espírito partidário estava ausente? Não. Os Estados Unidos, bem longe ideologicamente do presidente eleito, garantiram a presença, ainda que pequena, nessa cerimônia. O presidente brasileiro, de extrema-direita, enviou o seu vice-presidente. Jair Bolsonaro não manifestou seus votos de felicitação a Gabriel Boric, que é próximo de Lula da Silva, seu adversário nas eleições presidenciais de outubro de 2022, nem quis se encontrar na presença da ex-presidenta Dilma Rousseff, a quem Bolsonaro atacou violentamente durante o processo do impeachment parlamentar em abril de 2016. Seu colega colombiano, Ivan Duque, também de direita, enviou um ministro para não ter que cumprimentar Gustavo Petro, candidato às eleições na Colômbia, pela esquerda, no próximo mês de maio, e convidado pessoal de Gabriel Boric. A esquerda autoritária latino-americana também estava pouco representada. É verdade que Gabriel Boric durante a sua campanha eleitoral, cercou-se de cuidados e tomou alguma distância crítica a respeito deles, como também o fez em relação à Rússia. Foi sensível a presença de europeus mais engajados à esquerda, britânicos, espanhóis, italianos e portugueses.
Um sinal de conivência (anti-imperialista) foi tardiamente enviado por Gabriel Boric a seus amigos políticos, como também aos chefes de Estado latino-americanos, que polemizaram com Madrid nos últimos meses. Gabriel Boric, precisamente em 13 de março, criticou na rádio o Rei da Espanha. Seu atraso, apresentado por Boric como “inaceitável”, e desmentido pelo protocolo espanhol, teria perturbado o bom andamento do rito de passagem do poder, no dia 11 de março. Este gesto diplomaticamente incorreto, concernindo o monarca da antiga potência colonial, visava talvez tornar mais visíveis os convidados ativistas, colocados na segunda fila, atrás dos oficiais multicoloridos: da Argentina, a presidenta das avós da Praça de Maio, Estela de Carlotto; do Brasil, a petista Dilma Rousseff, destituída da presidência pelos amigos de Jair Bolsonaro, e Anielle Franco, diretora do Instituto Marielle Franco, vereadora eleita no Rio de Janeiro, progressista, antirracista e feminista e que foi assassinada por milicianos; da Colômbia, Gustavo Petro, de esquerda e candidato à presidência; Giaconda Belli, escritora da Nicarágua, e opositora de Daniel Ortega; Jeremy Corbyn, porta-voz da esquerda trabalhista inglesa; Veronika Mendoza, figura da esquerda peruana; Minou Tavarez, personalidade progressista e feminista da república dominicana.
Estes jogos de equilíbrio, sem dúvida, corroboram às afirmações em oxímoro de um chefe de Estado que quer dialogar com todo mundo, sem perder, no entanto, as suas marcas ideológicas.
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Texto publicado originalmente em francês, em 18 de março de 2022, na seção ‘Actualités – Amérique Latine’ no site Nouveaux espaces latinos e na seção ‘Analyses’, no site do Institut de Relations Internationales et Stratégiques – IRIS, ambos em Paris/França, com o título original “Kremlinologie chilienne: Instantané de la prise de fonction présidentielle de Gabriel Boric”. Disponível nos links: https://www.espaces-latinos.org/archives/104369 / https://www.iris-france.org/165975-kremlinologie-chilienne-instantane-de-la-prise-de-fonction-presidentielle-de-gabriel-boric/. Tradução de Edson Santos de Lima e Rafael Borges Ribeiro dos Santos, com revisão de Luzmara Curcino.
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Jean-Jacques Kourliandsky é diretor do Observatório da América Latina junto ao IRIS – Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas, com sede em Paris, e responsável pela cobertura e análise conjuntural geopolítica da América Latina e Caribe. É formado em Ciências Políticas pelo Instituto de Estudos Políticos de Bordeaux e Doutor em História Contemporânea pela Universidade de Bordeaux III. Atua como observador internacional junto às fundações Friedrich Ebert e Jean Jaurès. É autor, entre outros, do livro “Amérique Latine: Insubordinations émergentes” (2014), e colabora frequentemente com o Observatório da Imprensa, em parceria com o LABOR – Laboratório de Estudos do Discurso e com o LIRE – Laboratório de Estudos da Leitura, ambos da UFSCar – Universidade Federal de São Carlos.