A que democracia as eleições presidenciais e legislativas de 7 de novembro na Nicarágua se referem? Dois dias antes da ida às urnas, Jean Jacques Kourliandsky, diretor do Observatório da América Latina, destaca a progressiva desintegração das liberdades na Nicarágua e a sua aparência democrática.
4.300.000 nicaraguenses foram convidados a votar no 7 de novembro de 2021 para escolher seu Presidente da República, 90 deputados nacionais e 20 representantes ao Parlamento Centro-Americano. O que poderia ser mais normal que isso em um cenário democrático? A Nicarágua não havia restaurado suas liberdades após a queda do ditador Anastasio Somoza Debayle em 19 de julho de 1979? A consulta regular aos eleitores não é um marco histórico democrático? Os nicaraguenses não foram às urnas em 1984, 1990, 1996, 2001, 2006, 2011 e 2016?
No entanto, as eleições de 7 de novembro de 2021 estão sendo questionadas. O jogo está viciado, segundo alegam os oponentes. Ele foi manipulado pelo atual governo, o presidente Daniel Ortega e sua esposa e vice-presidente, Rosario Murillo. “Mentira”, respondem, por sua vez, o casal presidencial e alguns dos que aplaudiram a queda da “casa dos Somoza” em 1979. Tais críticas provêm, segundo eles, dos antigos imperialistas, hostis à Revolução Sandinista, supostamente encarnada pela família Ortega-Murillo.
No entanto, os defensores da democracia se encontram desafiados. A Nicarágua parece ter passado de um regime de ditadura brutal seguido de uma esperança democrática em 1979, mas se encontra agora atolada em uma autocracia camuflada. Não seria a eleição de 2021 uma frente enganosa — uma “falsa janela” — a favor de um regime que ainda carece de respeitabilidade democrática?
Respeito pelos sinais eleitorais exteriores
A eleição presidencial de 7 de novembro de 2021 na Nicarágua é uma eleição que apresenta, de uma perspectiva externa, todos os sinais democráticos necessários. Ela acontece cinco anos após a anterior, que ocorreu no dia 6 de Novembro de 2016, de acordo com a data fixada pela Constituição. Os representantes eleitos, como é costume na Nicarágua, tomarão posse no dia 10 de janeiro de 2022. Foram criadas 3.106 seções eleitorais, equipadas com urnas e cédulas com os nomes dos candidatos em disputa. Em 30 de setembro, o Conselho Supremo Eleitoral (CSE) assinou um acordo com o Gabinete de Defesa dos Direitos Humanos instruindo-o a acompanhar cada uma das seções a fim de garantir o direito de decidir livremente. Os 80.754 encarregados pela contagem dos votos, sugeridos pelas partes concorrentes, foram oficialmente nomeados em 14 de outubro de 2021. Tomaram posse em 31 de outubro e receberam um manual. 15.000 soldados foram mobilizados para assegurar a logística da votação.
No dia 1º de setembro de 2021, o Supremo Conselho Eleitoral publicou os nomes dos candidatos aprovados: Walter Espinoza (PLC – Partido Liberal Constitucionalista), Gutiérrez Gasparin (Apre – Aliança para a República), Marcelo Montiel (ALN – Aliança Liberal da Nicarágua), Mauricio Orúe (PLI – Partido Liberal Independente), Daniel Ortega (FSLN – Aliança Unida por uma Nicarágua Triunfante/ Frente Sandinista de Libertação Nacional), Guillermo Osorno (CCN – Caminho Cristão Nicaraguense), Brooklin Rivera (Yatama/ Yapti Tasba Masraka Nanih Aslatakanka/ Filhos da Mãe Terra). As cédulas oferecidas aos eleitores com os nomes de todos os candidatos validados pelo CSE foram entregues no dia 14 de outubro aos partidos políticos habilitados a participarem da consulta. A campanha foi aberta em 25 de setembro e encerrada no dia 3 de novembro, valendo-se do alcance das redes sociais em razão da crise sanitária.
Uma eleição à la Potemkin?
A julgar pelas aparências, nada parece destoar da tradicional ordem democrática. Mas se a cena em questão for tão bem montada quanto aquela oferecida à imperatriz da Rússia, Catarina II, por seu protegido, Grigory Aleksandrovich Potemkin, durante a viagem à Criméia, tanto na Nicarágua quanto na Criméia um certo número de atores decisivos parece não haver comparecido. As regras do jogo, tal como o conhecemos, foram alteradas em Manágua visando a interdição de candidatos adversários.
A Lei 1.055, chamada oficialmente de “defesa dos direitos dos povos à independência, soberania e autodeterminação”, foi aprovada em 21 de dezembro de 2020. Ela permite que os “traidores da pátria”, ou melhor, que aqueles que encorajam a “interferência estrangeira” sejam processados. Uma subsequente reforma do Código Penal permitiu que a custódia policial de 48 horas se estendesse agora a 90 dias. Com base nesse texto, em 18 de maio de 2021, o CSE retirou a personalidade jurídica do Partido Conservador (PC), do Partido da Restauração Democrática (PRD) e, em 6 de agosto, do Partido dos Cidadãos pela Liberdade (CxL). Ao todo, 24 associações foram privadas de seu estatuto legal, no final de julho de 2021.
A lei eleitoral foi objeto de emenda, em maio de 2021, poucos meses antes da eleição. Essa modificação essencial confirmou o espírito da lei posta em voga em dezembro de 2020: lei que proíbe todo financiamento estrangeiro, bem como qualquer contribuição financeira de ONGs aos partidos políticos nicaraguenses. Vários candidatos de direita foram encarcerados ou colocados em prisão domiciliar em decorrência de tais decisões legislativas: Cristiana Chamorro (Aliança Cidadã pela Liberdade), suspeita de ter recebido dinheiro estrangeiro por meio de sua fundação, Juan Sebastián Chamorro (Aliança Cívica pela Justiça e Democracia), Alvaro Cruz (Aliança Cidadã pela Liberdade), Felix Madariaga (Unidade Nacional Azul Branco), Miguel Mora (PRD), Medardo Mairena (Movimento Camponês), Noel José Vidaure (Conservador). A pré-candidata da Aliança Cívica, Maria Asuncion Moreno, foi forçada a deixar o país.
Ao final desta subtração, apenas seis partidos menores foram autorizados a participar: o ALN (Aliança Liberal da Nicarágua), APRE (Aliança pela República), o CCN (Caminho Cristão da Nicarágua), o PLC (Partido Liberal Constitucionalista), o PLI (Partido Liberal Independente) e Yatama (Filhos da Mãe Terra), todos estes partidos liberais, com um histórico de alianças com o FSLN. Tendo em vista o desempenho deles nas eleições anteriores, cada qual inferior a 4% dos votos válidos, tais partidos oferecem a Daniel Ortega a vantagem de um caminho livre de maiores obstruções já no primeiro turno.
A liberdade de imprensa é contestada desde o final de 2018. O jornal diário La Prensa sofreu embargo por 500 dias, o Confidencial e o Notícias 100% foram invadidos pela polícia que apreendeu diversos materiais. Os jornalistas Maria Lili Delgado (Univision), Carlos Herrera (El País), Wilfredo Miranda (El País), Miguel Mora (100% Notícias) e Lucia Pineda Ubau (Canal 15) foram encarcerados, bem como o cientista político José Antonio Peraza.
Ao mesmo tempo, lideranças empresariais sofreram agressões verbais, e alguns foram submetidos ao cárcere. Luis Anduray, presidente do Banco de Produção (Banpro) e José Adan Aguerri, ex-presidente patronal (Cosep), foram presos. José Antonio Baltodano Cabrera e Jaime Javier Montealegre Lacayo, diretores de empresas, estão proibidos de sair do país.
A oposição de esquerda, composta por ex-integrantes da Frente Sandinista, também foi vítima dessa política de abafamento eleitoral. O funeral de Ernesto Cardenal, histórico apoiador sandinista e crítico da situação, ocorreu no dia 4 de março de 2020 sob estrita vigilância policial e militar. Desde então, dois ex-guerrilheiros(as), Doria Maria Téllez e Hugo Torres, o ex-vice-ministro das Relações Exteriores, Víctor Hugo Tinoco, assim como Ana Margarita Vijil, Suyén Barahona, integrantes do movimento de renovação Unamos-Sandinista, foram detidos “por violação da independência, soberania e autodeterminação, e incitamento à ingerência estrangeira”. Sergio Ramírez, histórico apoiador sandinista, ex-vice-presidente da República, escritor, foi processado e forçado ao exílio. A safra eleitoral de 2021 preparada pelo presidente Daniel Ortega ao fim de seu mandato, valendo-se de falsas janelas democráticas e tendo anulado as possibilidades de oposição mais robustas, é de fato uma votação à la Potemkin.
Significado de uma falsa janela eleitoral
O “como” dessa votação desequilibrada, “feito um patê de cotovia ao qual se misturou até mesmo carne de cavalo, mas que apesar disso é vendido como patê de cotovia”, é uma metáfora da eleição de Ortega e dos demais candidatos e componentes partidários nesta eleição, o que leva a suscitar muitas interrogações. Em primeiro lugar, essa do “porquê” ou, mais diretamente, do “para quem”. Quem seria(m) o(s) beneficiário(s) de tais manipulações que tão seriamente alteram a ordem democrática? E, depois, resta ainda a questão de como avaliar um regime que é tudo, menos democrático — e social —, mas que, no entanto, utiliza o vocabulário revolucionário, anti-imperialista, progressista e democrático, proveniente do tempo da luta contra o ditador Somoza.
Quem é/são o(s) beneficiário(s) desta eleição viciada de 7 de novembro de 2021? A eleição falsificada de 7 de novembro de 2021 não é senão a concretização de um mecanismo que, a partir de 1990, tem deliberadamente minado a democracia nicaraguense em benefício de alguns. 1990 é o ano da transição da FSLN que havia chegado ao poder após a queda do ditador Somoza em 1979 e sua entrada na oposição. Ratificada pelas urnas em 1984, a FSLN perdeu as eleições seguintes, no ano de 1990. Mas antes de entregarem o poder institucional à Violeta Barrios de Chamorro e à ‘União Nacional da Oposição’, as autoridades sandinistas organizaram, por via parlamentar, a transferência de bens do Estado para diversos responsáveis do partido FSLN. Essa apropriação partidária e individualizada é conhecida como a Piñata (um objeto festivo e colorido, feito de papelão, cheio de doces que as crianças, com os olhos vendados, rompem com um bastão). Em 1990, Daniel Ortega e a sua comitiva partidária entraram na oligarquia financeira e social do seu país. Esta inserção foi consolidada em distintas etapas.
A primeira delas foi a assinatura, em 1999, de um acordo com José Arnaldo Alemán Lacayo, líder do principal partido de direita, o PLC. A FSLN e o PLC, de comum acordo, alteraram a Constituição em 2000. A nota mínima para o êxito nas eleições presidenciais teria então sido reduzida para a marca de 40%, ou mesmo de 35%, caso a diferença entre o candidato mais bem pontuado e o seguinte fosse de pelo menos 5%. Arnaldo Alemán e Daniel Ortega estavam sob a ameaça de terem a sua imunidade parlamentar suspensa, um deles por corrupção e o outro por questões pertinentes à moralidade, mas um jeitinho lhes beneficiou de modo a evitar essa possibilidade.
A etapa seguinte foi construir uma relação positiva com a Igreja Católica na Nicarágua, que era, há muito tempo, hostil à FSLN. Em 2007, o direito ao aborto, que tinha sido legalizado em certos casos desde 1837, 1879 e 1893, foi, por fim, abolido. Mais tarde, a possibilidade de as mulheres espancadas apresentarem queixa numa delegacia de polícia foi substituída, em 2014, por um processo de mediação.
Uma terceira fase bloqueou progressivamente as possibilidades de alternância. A partir de 2007, após o seu regresso ao poder, Daniel Ortega abalou a ordem constitucional e eleitoral. Os controles e contrapesos foram todos ignorados. Os tribunais, apesar das disposições constitucionais ditarem o contrário, deram-lhe autorização para se candidatar à reeleição em 2011. A Constituição assim alterada em 2014 concedeu a subsequente oportunidade ao Chefe de Estado, e isso ainda no fim de seu mandato. Sua esposa, Rosario Murillo, tornou-se vice-presidente em 10 de janeiro de 2017. Os direitos de manifestar-se, de expressar opiniões livremente, foram severamente afetados em 2018. Mais de 300 pessoas perderam a vida entre abril e dezembro de 2018, segundo observações feitas por várias organizações de direitos humanos.
A segunda pergunta que precisa ser respondida é: o que teriam a dizer hoje todos aqueles que, constituindo o espaço democrático e progressista, celebraram a queda de Somoza em 1979? Assim como todos aqueles que, em momentos posteriores, apoiaram o novo governo, da FSLN que parecia ser portadora de valores de liberdade e de igualdade?
Por muito tempo, distintas interferências refrearam o olhar daqueles que almejavam ser amigos da experiência ainda curso em Manágua, Granada e León. Criticá-la agora não seria como acrescentar água ao moinho da direita e dos inimigos das mudanças sociais? Criticar a Nicarágua de Daniel Ortega não comprometeria também a todos aqueles que tentaram construir um mundo menos unilateral e mais interdependente?
A resposta a tais perguntas foi dada por muitos dos que acreditavam em uma nova Nicarágua, os chamados amigos da Nicarágua. Fundadores históricos da FSLN, que foram ostracizados, até mesmo presos ou forçados ao exílio pelo sandinismo empresarial, e que hoje em dia, nos palácios governamentais, nos lembram que, de fato, os valores democráticos e progressistas estão indissoluvelmente ligados.
Nenhuma razão justifica, nem de patriotismo ideológico e/ou partidário, nem cálculo internacional, para relegar ao silêncio a oposição e muito menos ainda deveria contar com a solidariedade de um povo para com um governo que traiu seus princípios. Para a escritora Gioconda Belli, que entrou em Manágua com armas nas mãos no dia 19 de julho de 1979, “Ortega e Murillo quebraram e destruíram aquilo cujo preço foi o sangue de milhares [de pessoas]”. Não há mais revolução. Já não existe esquerda na Nicarágua. Aqueles que afirmam o contrário apoiam um tirano de métodos estalinistas. Sergio Ramirez, escritor e vice-presidente (1979-1990), concorda: “Ortega e sua esposa converteram o sandinismo em uma obscena dinastia familiar. […] Eles gozam de privilégios extraordinários numa sociedade pobre, […] repetindo o modelo que tanto sangue custou e que acreditávamos estar enterrado, o modelo de Somoza”.
Questionar os ex-revolucionários nicaraguenses que agora se apegam ao poder e a seus subornos não é, no entanto, fácil para alguns dos que saudaram o gesto anti-somozista do FSLN em tempos passados. Mas podemos ainda hoje, seja “para não entristecer Billancourt” ou por outras razões como as relacionadas à geopolítica global que a enreda, fingir que Manágua ainda seria, em 2021, como disse Tomas Borge, ‘primeiro-ministro do interior’ sandinista, a Francis Pisani, “um exemplo de revolução popular”, fruto da “miséria e da repressão que estão na origem das revoluções”. Acrescentando um comentário premonitório, ainda que sem sabê-lo, ele afirmou com certa justeza que “achamos que precisamos [das eleições], porque não queremos cair na armadilha da ilegalidade revolucionária”.
Texto publicado originalmente em francês, em 5 de novembro de 2021, na seção ‘International’, no site Jean Jaurès, Paris/França, com o título original “Le Nicaragua à la veille des élections : des fausses fenêtres démocratiques ?”. Tradução de Thiago Augusto C. Pereira e Débora Cristina Ferreira Garcia. Revisão de Luzmara Curcino.
***
Jean-Jacques Kourliandsky é diretor do Observatório da América Latina junto ao IRIS – Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas, com sede em Paris, e responsável pela cobertura e análise conjuntural geopolítica da América Latina e Caribe. É formado em Ciências Políticas pelo Instituto de Estudos Políticos de Bordeaux e Doutor em História Contemporânea pela Universidade de Bordeaux III. Atua como observador internacional junto às fundações Friedrich Ebert e Jean Jaurès. É autor, entre outros, do livro “Amérique Latine: Insubordinations émergentes” (2014), e colabora frequentemente com o Observatório da Imprensa, em parceria com o LABOR – Laboratório de Estudos do Discurso e com o LIRE – Laboratório de Estudos da Leitura, ambos da UFSCar – Universidade Federal de São Carlos.