Lula venceu as eleições presidenciais brasileiras em 30 de outubro. O Brasil, em breve, passará por este processo de transição política. A mudança esperada é multifacetada. Essa mudança é democrática e, sem dúvida, social. Mas será ela também diplomática?
A política externa nunca está no centro das campanhas eleitorais, seja na do Brasil, da França ou de qualquer outro país do mundo. Apesar de sua importância, ela aparece sempre em poucas linhas e no rodapé dos programas, ao final dos debates políticos ou de maneira alusiva e aleatória em publicações dedicadas a outros assuntos. No que concerne ao Brasil, o tema merece atenção especial. Lula, de 2003 a 2010, ao longo de seus dois mandatos presidenciais, soube chamar a atenção da mídia e das chancelarias de too o mundo graças a seu ativismo internacional. Seu ex-ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, deu o tom e a definição da postura de Lula, como representante do Brasil, nessa esfera da política internacional. Ele a definiu como “uma política externa ativa e altiva”, o que também poderia ser designado como “uma política ativa e ambiciosa” [1].
A fórmula foi novamente reivindicada durante esta campanha à presidência, tanto por Celso Amorim quanto por Lula. Em sua “Carta para o Brasil do amanhã” [2], publicada em 27 de outubro de 2022, três dias antes do segundo turno das eleições, o petista reafirma, no item 12 da lista de compromissos, a necessidade do Brasil “de redescobrir uma política externa soberana, altiva e ativa”.
É difícil interpretar a partir daqui a direção que a política externa brasileira pode tomar. Este item 12 da carta enviada por Lula aos eleitores que votariam no segundo turno apresenta-se em termos muitos genéricos. O Brasil, tal como se afirma nesta carta, promoverá um diálogo “democrático”, “respeitando a autodeterminação dos povos” restituindo as políticas de “integração regional” com o Mercosul bem como com “os BRICS [3], com os países da África, com a União Europeia e com os Estados Unidos”. Em seguida, são referidos compromissos gerais relativos a “comércio exterior, cooperação tecnológica, relações mais justas e democráticas entre os países” assim como fortalecimento de “nossos pactos internacionais relativos ao desenvolvimento sustentável, em especial, no marco da Convenção do Clima”.
Seu assessor diplomático e ex-ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, em entrevista forneceu algumas explicações sobre o texto, de modo a alimentar com mais precisão este item 12 dos compromissos assumidos nessa “Carta para o Brasil do amanhã”.
À pergunta de “Quais serão as linhas mestras da política externa de Lula? ”, feita por um jornalista espanhol [4] no dia seguinte à vitória apertada do candidato petista, a resposta do diplomata foi a seguinte: “Não será muito diferente do que foi no passado, defesa do multilateralismo, boas relações com os Estados Unidos e também com a União Europeia, com a China, com os BRICS, que são as principais economias emergentes, assim como com a África, tão importante para o Brasil, […] e principalmente no processo de integração sul-americana, de modo a restabelecer as boas relações com nossos vizinhos. A luta contra as alterações climáticas será um aspecto fundamental dessas relações de cooperação internacional, assim como temas que nos afetam, a todos indistintamente, como a pandemia, os direitos humanos e a justiça social internacional”.
Em resposta a outras perguntas e a outros pedidos, o ex-ministro forneceu algumas informações adicionais, em especial sobre os BRICS e em relação à invasão da Ucrânia pela Rússia. Esses adendos completam um pouco as observações feitas por Lula em 5 de maio de 2022. “Esse cara”, disse ele sobre Zelensky, “é tão responsável quanto o Putin […], assim como Saddam Hussein foi tão responsável quanto Bush”. Os BRICS, segundo Celso Amorim, podem desempenhar um papel positivo na solução do conflito Rússia e Ucrânia. Especialmente com os BRICS fortalecidos com a entrada da Argentina. A invasão, ele explicou, deve ser condenada porque viola os princípios fundamentais da Carta da ONU. Dito isso, a Rússia “tem motivos sérios que permitem que compreendamos a sua posição e o seu incômodo”. É por isso que os BRICS podem desempenhar um papel positivo, pois a Rússia, que faz parte desse grupo, é uma das partes implicada no conflito, e a China, que tem forte influência nesse grupo, pode juntamente com os europeus e o Brasil atuar decisivamente na busca pela paz.
A política de integração, tal como ele confirmou, é aquela visada com a América do Sul. Ela pode ser acelerada com o fortalecimento do Mercosul e com sua expansão e inclusão da Bolívia, especialmente agora, quando muitos governos dos países da região são de esquerda. Será mais fácil hoje, por exemplo, dialogar com a Colômbia de Gustavo Petro, do que ontem com a de Álvaro Uribe. Por outro lado, como consequência da guerra na Ucrânia, os Estados Unidos e a Europa precisam do petróleo venezuelano. Isso vai “abrir caminho para a retomada de negociações com a Venezuela, seja ela qual for” levando esses países a “não mais insistir em estratégias de reconhecimento de qualquer novo Juan Guaidó [6] ”.
A música, no entanto, ainda precisa de registro em partitura. Celso Amorim diz estar pronto para repetir sua postura mediadora de 2011, relativa ao episódio nuclear iraniano, agora em relação ao episódio da crise russo-ucraniana. No entanto, hoje em dia, o cenário apresenta vários outros desafios. Os desafios internos, primeiramente, políticos, parlamentares, bem como econômicos e sociais, e que vão, com certeza, monopolizar a agenda do governo. Os desafios externos, e não menos importantes, já que europeus e norte-americanos até agora ignoraram a hipótese de vir dos BRICs uma possível solução do conflito.
Além desse desafio, há outro, aquele da pressão vinda de vários países relativa à preservação da floresta tropical amazônica. O representante americano na COP 27, Al Gore, por exemplo, referindo-se à vitória de Lula, saudou-a dizendo que “o povo brasileiro optou por impedir a destruição da Amazônia”. Zelensky e Putin, por sua vez, enviaram telegramas de felicitações ao vencedor, imediatamente. Em termos de integração latino-americana, as coisas precisam ser mais bem decantadas. Andrés Manuel López Obrador (AMLO), do México, convidou Lula, como fez no dia seguinte à eleição do chileno Gabriel Boric, para entrar na zona de livre comércio da Aliança do Pacífico, enquanto o Uruguai, ignorando a solidariedade prevista pelo Mercosul, está negociando um acordo comercial bilateral com a China.
Notas
Texto publicado originalmente em francês, no dia 12 de novembro de 2022, na seção ‘Analyses’ no site Nouveaux Espaces Latinos, Paris/França, com o título original “Lula 2023-2027, quelle politique étrangère?”. Disponível em: https://www.espaces-latinos.org/archives/108911. Tradução de Jeniffer Aparecida Pereira da Silva e Luzmara Curcino.
[1] Celso Amorim, “Teerã, Ramalá e Doha, memórias da política externa ativa e altiva”, São Paulo: Benvira, 2015.
[2] Carta para o Brasil do Amanhã.
[3] O que significa: Rússia, Índia, China e África do Sul.
[4] Sebastián Fest, “El futuro de Brasil, la entrevista”, El Mundo, 1 de novembro de 2022, p 22.
[5] Flavia Marreiro; Brad Haynes “Amorim defende Argentina nos BRICS”, Reuters, 19 de outubro de 2022.
[6] Publicado em: Nueva Sociedad, n. 301, setembro-outubro de 2022.
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Jean-Jacques Kourliandsky é diretor do Observatório da América Latina junto ao IRIS – Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas, com sede em Paris, e responsável pela cobertura e análise conjuntural geopolítica da América Latina e Caribe. É formado em Ciências Políticas pelo Instituto de Estudos Políticos de Bordeaux e Doutor em História Contemporânea pela Universidade de Bordeaux III. Atua como observador internacional junto às fundações Friedrich Ebert e Jean Jaurès. É autor, entre outros, do livro “Amérique Latine: Insubordinations émergentes” (2014), e colabora frequentemente com o Observatório da Imprensa, em parceria com o LABOR – Laboratório de Estudos do Discurso e com o LIRE – Laboratório de Estudos da Leitura, ambos da UFSCar – Universidade Federal de São Carlos.