A refutação do “declinismo norte-americano” e o convite à superação da estrutura estratégico-mental do pós-1945 foram o núcleo da mensagem do presidente Obama em seu discurso sobre o Estado da União da terça-feira, 12 de janeiro de 2016 (ver O Globo e a Folha de S.Paulo de 14/01/2016). Teses sobre o declínio do poder dos Estados Unidos alimentam discussões nacionais e internacionais ao menos desde a década de 1960. Mesmo após o fim do conflito Leste-Oeste, elas continuaram latentes e ganhariam imensa vazão após os ataques de 11 de setembro de 2001 e durante a crise financeira de 2007-2009.
O 11 de setembro acabaria por precipitar a ascensão da China e dos demais “países monstros”, como dizia George Kennan – a saber, Brasil, Índia, Rússia. Não por acaso, nos escombros das Torres Gêmeas a financeira Goldman Sachs faria circular o acrônimo Brics para identificar os países mais favoráveis a investimentos internacionais a partir dali. A guerra ao terror do presidente Bush e os atoleiros em que acabaram se transformando as intervenções no Afeganistão e no Iraque concorreriam ainda mais para a deformação da percepção da presença norte-americana. O declinismo com base na ofensiva anti-Estados Unidos cresceu como nunca.
A crise financeira de 2007-2009 começou, por sua vez, a corroer laços políticos e sociais que talvez nem o fascismo e o nazismo tivessem totalmente destruído. Os protestos contra os símbolos de Wall Street também serviram para amplificar tese do declínio norte-americano.
A eleição para presidente do senador de Illinois em novembro de 2008 foi a demonstração interna do escárnio absoluto de parte importante da população para com essa percepção de declínio. A esperança do “Yes, we can” venceu o medo de se fazer um negro presidente. Oito anos após a sua eleição, crises internas e externas afetam até a estabilidade psicológica dos cidadãos norte-americanos. Em 2001, aviões destruíram o cartão postal de Nova York. Mas treze anos depois militantes extremistas passaram a decapitar seus concidadãos em descampados pela África e Oriente Médio. Humilhação e intimidação maiores são quase impossíveis.
O futuro segue em aberto
Os opositores do presidente Obama vêm veiculando que isso adveio de sua política de retração militar e promoção diplomática de certa coalizão global. Entendido e percebido como a quintessência da confirmação das teses declinistas, esse mal-estar coletivo acaba por lançar água nos moinhos da candidatura de Donald Trump. Por todas essas razões, em seu último Estado da União o presidente Obama fez questão de reiterar a inconsequência improcedente das teses sobre o declínio de seu país.
No plano econômico e militar, os Estados Unidos seguem imbatíveis e quase inatingíveis. A segunda maior economia mundial está sendo a China, que representa não muito mais que metade do coeficiente econômico norte-americano. O gasto militar dos Estados Unidos continua similar à soma dos orçamentos das oito principais potências mundiais seguintes depois deles. Essas condicionantes correspondem a um fato e condicionam a forte presença dos Estados Unidos mundo afora. Mas essa presença corre riscos de médio e longo prazos. Razão: os Estados Unidos seguem em grande medida afrontando o meio internacional contemporâneo com os instrumentos forjados no embate Leste-Oeste de 1917 a 1991, mais precisamente entre 1945 e 1989.
No intervalo 1989-1991, o presidente Bush começou a alardear a new world order com o pressuposto de que os Estados Unidos haviam ganhado a famigerada Guerra Fria. Tardou pouco para que fosse alardeado o fim da história e a emergência do mundo “unipolar”. Vieram o 11 de setembro de 2001 e depois o 15 de setembro de 2008, desembocando nas primaveras de 2011-2012 para indicar a revanche dos povos constantemente retirados da história e demonstrar que sim, a história continua. A história continuou após 1989-1991, mas após 2001 e 2008 deu sinais de profundas transformações em seu interior.
Uma rápida aferição do Crisis Watch do International Crisis Group demonstra que uma quantidade exasperante de crises – econômicas, sociais, políticas, institucionais, humanitárias, criminais, psicológicas, sexuais, climáticas – nacionais e internacionais passou a ocorrer de modo concomitante e progressivo nos últimos cinco anos. Nessas crises todas, a presença norte-americana suscita esperança ou receio, desdém ou medo, mas jamais indiferença. Isso leva o país a sempre ter ou dever ter algo a dizer ou a fazer. Mas neste século 21 faz pouco ou nenhum sentido continuar agindo autoritária e imperialisticamente, como se se estivéssemos em 1945, 1989, 1991, 2003 ou mesmo 2011.
A superação dessa estrutura estratégico-mental anacrônica sugerida pelo presidente Obama no discurso do Estado da União serve aos Estados Unidos e a todos os países que pretendem encontrar seu lugar ao sol neste século 21. Virou imperativo saber mais e melhor o que existe do outro lado da colina. O futuro segue em aberto para todos. Resta aos países saber o que querem ser quando o futuro chegar.
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Daniel Afonso da Silva é pesquisador no Ceri-Sciences Po de Paris