Faltava pouco para meia-noite quando o relatório do Alto Comissariado de Direitos Humanos da ONU sobre a situação da minoritária população muçulmana uigur, na região chinesa de Xinjiang, foi distribuído para os correspondentes da imprensa internacional em Genebra. São 45 páginas que devem ter sido analisadas, linha por linha, pela alta comissária Michelle Bachelet, dada a importância dos fatos relatados. Tudo deveria estar concluído e enviado para a imprensa antes da meia-noite, quando expirava o mandato da alta comissária.
Não se imagine que Bachelet teria deixado para a última hora divulgar esse documento. Ao contrário, ela deve ter vivido um pesadelo desde o fim do mês de junho, quando deveria ter apresentado esse relatório, após sua tão criticada viagem de cinco dias à região de Xinjiang, durante a qual nada pudera ver de importante. Muitos esperavam há mais tempo esse documento, diante das denúncias que circulavam há alguns anos.
Líder da esquerda chilena, que tantas vezes denunciou crimes contra os direitos humanos cometidos no Chile e na América Latina, presidente chilena por dois mandatos, Bachelet provavelmente não esperava ter sob sua responsabilidade relatar o mesmo tipo de crimes de que era acusada a China, ao aceitar em 2018 seu mandato de alta comissária pela ONU.
Representantes da população uigur no exílio lamentam não terem recebido de Bachelet o mesmo apoio. E lembram sua ausência na questão da defesa das mulheres uigur esterilizadas, dentro do plano de controle da natalidade aplicado na região. Mesmas críticas foram feitas por ONGs de defesa dos direitos humanos, durante a demora pela publicação do relatório.
Especialistas e jornalistas afirmam que essa demora comprometeu a imagem do Alto Comissariado de Direitos Humanos da ONU. Entretanto, reconhecem que, apesar da demora e do suspense, o relatório foi publicado e constitui agora uma denúncia e uma pressão sobre a China para acabar com esse tipo de gulag contra a comunidade uigur. O reconhecimento pela ONU desses abusos e irregularidades é um importante instrumento a ser utilizado pelos outros órgãos da ONU e entidades internacionais de proteção às mulheres e mesmo em termos de proteção aos direitos de trabalho da comunidade uigur.
Depois de tratar da questão das ameaças de terrorismo e extremismo representadas por elementos da comunidade muçulmana iugur, o relatório destaca pormenorizadamente os seguintes capítulos: prisão e outras formas de privação de liberdade, encaminhamentos para “Centros de Educação e Formação Profissional”, detenção através do sistema de justiça criminal, condições e tratamento nos “Centros de Educação e Formação Profissional”, identidade e expressão religiosa, cultural e linguística, direitos à privacidade e liberdade de movimento, direitos reprodutivos, emprego e questões trabalhistas, questões de separação familiar e reintegrações de posse, separações familiares e desaparecimentos forçados, intimidação, ameaças e represálias.
“As alegações de práticas recorrentes de tortura ou maus-tratos, incluindo tratamento médico forçado e más condições prisionais são críveis, assim como alegações individuais de violência sexual e de gênero”, afirma o relatório. Apesar das denúncias de genocídio na região do Xinjiang, o relatório não utiliza nenhuma vez essa palavra.
“A extensão da detenção arbitrária e discriminatória de uigures e outros grupos predominantemente muçulmanos […] pode constituir crimes internacionais, em particular crimes contra a humanidade”, diz o relatório de pouco menos de cinquenta páginas em suas conclusões.
Por sua vez, a China denuncia a divulgação do relatório como um instrumento político a ser utilizado contra Pequim. “O Alto Comissariado da ONU de Direitos Humanos se tornou o serviçal e cúmplice dos Estados Unidos ao publicar esse relatório”, respondeu Pequim tão logo recebeu o documento, acrescentando ser desinformação e instrumento para utilizar a região do Xinjiang contra o desenvolvimento da China. Haverá uma reação mais forte da China contra o Alto Comissariado ou contra a ONU?
Bachelet, acusada de ser muito branda com Pequim, respondeu: “diálogo e tentar entender melhor não significa que sejamos tolerantes, que desviemos o olhar ou que fechemos os olhos. E menos ainda que não possamos falar com franqueza”.
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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro sujo da corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, A rebelião romântica da Jovem Guarda, em 1966. Foi colaborador do Pasquim. Estudou no IRFED, l’Institut International de Recherche et de Formation Éducation et Développement, fez mestrado no Institut Français de Presse, em Paris, e Direito na USP. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.