Pouca gente tinha pensado mas agora ficou evidente: é a religião que vai decidir qual será o candidato da direita francesa na eleição presidencial, marcada para abril/maio do próximo ano.
A França vive nesta semana o segundo turno ou a reta de chegada nas primárias que, no domingo, dirão qual será o candidato da direita, escolhido para enfrentar o candidato da esquerda, ainda não definido, e o da extrema direita, a representante da Frente Nacional, partido de extrema-direita, Marine Le Pen.
Os dois finalistas são François Fillon, ex-primeiro-ministro do ex-presidente Nicolas Sarkozy, conservador neoliberal; e Alain Juppé, ex-primeiro-ministro de Jacques Chirac, representante da direita clássica mais próxima do centro e do pensamento do general De Gaulle.
Nas eleições de domingo, François Fillon foi a grande surpresa do primeiro turno das primárias obtendo 44% dos votos, enquanto Alain Juppé obteve apenas 28%. Era caso de Juppé desistir e entregar os pontos, mas o antigo ministro de Chirac decidiu continuar esperando provocar uma nova surpresa, no próximo domingo, com sua vitória.
Para provocar a surpresa, Juppé tirou da gaveta e revelou o fator determinante da vitória de Fillon no primeiro turno: a religião.
Juppé não saiu brandindo um catecismo e dizendo ser o seu adversário Fillon um carola católico da linha conservadora, mas mostrou uma ponta da veste do provavelmente antigo coroinha: François Fillon é contra o aborto, o chamado IVG (sigla para Interrupção Voluntária da Gravidez), legalizado pelo Parlamento por proposta da ministra da Saúde em 1975, Simone Veil.
Isso me lembra quando estive no Brasil em 2010 e vi na televisão a então candidata Dilma Rousseff à sucessão de Lula, dar a entender ser favorável à legalização do aborto, medida pleiteada pelos movimentos femininos e pela esquerda.
Imediatamente, os evangélicos se mobilizaram e ameaçaram desfechar um movimento contra a candidata que, horas depois, negava ser pela legalização do aborto, dando o dito como não dito.
Na manhã do dia seguinte, caminhando por uma rua de Higienópolis com Alípio Freire, comentei meu desagrado pela retratação de Dilma, que abandonava essa bandeira em favor das mulheres para não perder os votos dos eleitores evangélicos.
A lembrança é marcante porque foi minha primeira decepção com a ex-presidente. Logo depois, os marqueteiros petistas transferiam o controvertido e perigoso tema para o lado do adversário tucano, cuja esposa teria abortado quando jovem.
A legalização do aborto é um divisor de águas tanto na França como no Brasil.
Quando o candidato francês Alain Juppé revela a posição antiaborto do seu adversário François Fillon, é o argumento de um candidato republicano laico contra o ranço do catolicismo conservador. Esse é um argumento forte no país de Voltaire e do Iluminismo, cuja população é em grande parte ateia ou não praticante de religião.
Revelar a carolice de um político pode ser fatal na França laica. Ora a revelação do Fillon antiaborto, leva a outra conclusão nada abonadora: a de que Fillon apoia e é apoiado pelos milhares de manifestantes católicos homofóbicos contra o projeto transformado em lei – Casamento para Todos – da ex-ministra negra Taubira, permitindo o casamento republicano aos homossexuais.
Dilma Rousseff e o aborto
Exatamente o contrário do ocorrido no Brasil com Dilma. Se não me engano, a própria Marina Silva afirmou que colocaria a questão do aborto num plebiscito caso fosse necessário. Tanto Dilma como Marina sabem que se declarar favorável ao aborto no Brasil equivale a um suicídio político (na época do deputado Nelson Carneiro, era também suicídio se declarar favorável ao divórcio) porque provoca a mobilização contrária e união dos católicos praticantes com os evangélicos emergentes.
Enquanto isso, as mulheres brasileiras pobres continuarão tendo filhos indesejados ou se ferindo e mesmo se matando com agulhas de tricô, enquanto as jovens de classe média poderão se beneficiar de um aborto clandestino.
Qual o peso, em número de eleitores de direita laicos e favoráveis ao aborto na decisão entre Juppé e o católico praticante Fillon?
Qual foi o peso dos eleitores evangélicos antiaborto e homofóbicos na eleição de Trump?
Não tinha pensado nisso? Ora, a crença religiosa se tornou um importante componente político e se integra perfeitamente no retorno atual do nacionalismo com populismo e conservadorismo. As castas religiosas logo se acomodam junto ao poder. Não escolhem os reis como na Idade Média, mas com seus mitos religiosos e pretensa divindade servem de reforço às vocações autocráticas.
***
Rui Martins é jornalista e escritor, residente na Suíça.