Saturday, 21 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

2023: um novo “ciclo” eleitoral na América Latina?

Fala-se frequentemente em ciclos eleitorais regulares, entre esquerda e direita, na América Latina. No entanto, em que consistiriam esses ciclos? São de fato uma realidade? Jean-Jacques Kourliandsky, Diretor do Observatório da América Latina da Fundação Jean Jaurès, decifra a natureza desses chamados ciclos e propõe uma análise crítica da relevância do conceito de ciclos.

Os eleitores latino-americanos votaram em 2023 na Argentina, Chile, Equador, Guatemala e Paraguai. Os resultados dessas eleições, para a presidência, na Argentina, Equador, Guatemala e Paraguai e para o referendo, no Chile, foram todos favoráveis à direita. O Chile, após quatro anos de debate, voltou à estaca zero, ou seja, à Lei Fundamental de Augusto Pinochet, à constituição herdada de sua ditadura. Três dos quatro países que puderam em 2023 escolher seu Chefe de Estado o fizeram optando por candidatos liberais-conservadores: Argentina, Equador e Paraguai. Será que, depois de uma onda de eleições de esquerda, a América Latina está experimentando agora uma onda crescente de conservadorismo?

A eleição presidencial na Argentina no final de 2023 foi a mais coberta e a mais debatida. Isso se deveu, sem dúvida, ao perfil incomum do vencedor, Javier Milei, um autoritário ultraliberal. Também se deveu ao caráter pendular da votação na Argentina. Há muito tempo, cada consulta eleitoral censura o titular na presidência ou seu campo e coroa um oponente. Assim, a Argentina oferece uma imagem exemplar do que vimos nos últimos anos na América Latina: alternâncias quase automáticas nas presidências desses países, ainda que não tenham sido tão explícitas como na Argentina.

Uma breve análise das eleições argentinas pode nos ajudar a entender melhor o contexto das mudanças que ocorreram nos últimos tempos, da Argentina ao Uruguai, passando pelo Brasil, Colômbia e Equador.

Em 19 de novembro de 2023, a Argentina elegeu seu presidente. O vencedor, Javier Milei, concorreu com as cores do grupo extremista de direita ‘A Liberdade Avança’. No segundo turno da votação, ele derrotou um oponente do Partido Justicialista (peronista), Sergio Massa, Ministro da Economia do então presidente Alberto Fernandez. Em 2019, Alberto Fernandez, um justicialista, havia derrotado Mauricio Macri, então presidente do Partido ‘Frente Cambiemos’, de orientação liberal. Em 2015, Macri havia derrotado um candidato peronista, Daniel Scioli.

O referendo de novembro de 2023 tinha um caráter democrático “histórico” especial. Ele estava sendo realizado quarenta anos após a vitória presidencial de Raúl Alfonsin (Partido União Cívica Radical) em 30 de outubro de 1983, depois de sete anos de ditadura militar. Tal como ocorre desde 1983, não houve grandes incidentes em 19 de novembro de 2023. Apesar do caráter especial desse contexto, isso não interferiu na campanha, mesmo diante do perfil democraticamente atípico do candidato Milei.

A excepcionalidade não estava na data de uma eleição, reconhecidamente histórica em termos democráticos. Tampouco estava na loucura atribuída ao futuro presidente ou no semelhança de Milei com Trump. “Milei, Trump de la pampa” foi, de fato, uma manchete adotada por vários meios de comunicação em língua francesa em 20 e 21 de novembro de 2023, por imitação do mainstream.

O resultado da eleição presidencial argentina adquire um significado totalmente novo quando o ritmo metronômico das alternâncias locais é comparado ao contexto eleitoral e político da América Latina nos últimos meses. Sem dúvida, ele perde parte de seu impacto na mídia, mas ganha em perspectiva e compreensão, desde que forneça respostas a várias perguntas.

Como devemos interpretar a alternância da Argentina entre o peronismo e a extrema-direita? Ela se encaixa na estrutura geralmente aceita dos ciclos eleitorais? Após a eleição de uma Assembleia Constituinte conservadora no Chile e a confirmação da Lei Fundamental Pinochetista em 17 de dezembro de 2023, a vitória de um liberal-conservador no Paraguai, Santiago Peña, em 15 de agosto de 2023, e a de um liberal independente no Equador, Daniel Noboa, em 15 de outubro de 2023, estamos testemunhando o retorno de um ciclo de direita, após um ciclo de eleições favoráveis à esquerda?

Pertinência do conceito de ciclos eleitorais

Há alguns anos, a América Latina vinha passando por um período eleitoral que poderia ser descrito como um “ciclo progressista”. Pelo menos, era isso que muitos jornais diziam antes do segundo turno da eleição presidencial da Argentina. Mas a América Latina está prestes a entrar em um “ciclo de direita” [1]. A expressão é usada por jornalistas, acadêmicos e atores políticos e sociais. A existência de ciclos políticos na América Latina adquiriu uma espécie de verdade por consentimento universal, pois é abundantemente transmitida pela mídia e pelas redes sociais.

Resta saber até que ponto o conceito é demonstrativo e descritivo. A política pode ser comparada a uma bicicleta, às vezes andando pela esquerda, às vezes pela direita

Além dos fatos, além do “instantâneo” dos resultados eleitorais que parecem validar a relevância de um conceito que articula a vida política de forma cíclica, ainda precisamos entender as razões para essas alternâncias. Os vencedores da direita e/ou da esquerda apresentam suas vitórias como resultado de forças impulsionadas pela necessidade histórica. Mas como devemos interpretar uma necessidade histórica, cíclica e, portanto, conjuntural, que é, em última análise, indiferente à ideologia e à fidelidade partidária, na medida em que o ciclo implica uma alternância quase automática de uma consulta para a outra?

Vários pré-requisitos metodológicos precisam ser esclarecidos para permitir uma leitura inequívoca.

O primeiro pré-requisito é semântico e necessário antes de iniciarmos uma análise crítica do conceito de ciclos eleitorais na América Latina. Quando falamos de América Latina, o que queremos dizer? Sem ignorar os debates contraditórios entre os atores políticos, sociais e acadêmicos sobre esse assunto, a América Latina a que nos referimos aqui é o termo de uso comum. Os países que compõem o subcontinente latino-americano a que aqui nos referimos são os 20 Estados seguintes: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Cuba, República Dominicana, Equador, El Salvador, Guatemala, Haiti, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela.

O segundo pré-requisito diz respeito aos limites ideológicos. As definições partidárias escolhidas foram arbitrárias para facilitar a reflexão comparativa. A única esquerda considerada aqui é a esquerda eleitoral. Ela abrange uma área diversificada, que vai desde o comunismo chileno, por exemplo, até variantes progressistas de partidos abrangentes, como, em determinados momentos de sua vida política e eleitoral, o justicialismo argentino ou o PLN (Partido da Libertação Nacional) da Costa Rica. A direita inclui formações circunstanciais, como a Ação Democrática Nacional do Equador, e formações estruturadas, como o Partido Conservador da Colômbia e o Partido Revolucionário Institucional do México, apesar de seus vínculos progressistas durante a Guerra Fria.

2019-2022: evidência de um ciclo eleitoral progressista

Os resultados das eleições latino-americanas da década de 2020 validam a observação de um ciclo progressista – o termo “progressista” sendo considerado, como mencionado acima, em sua expressão mais ampla, incluindo partidos de centro-esquerda (independentemente de sua orientação política, como de esquerda moderada-radical, social-democrata, socialista ou outras sub-apelações locais) como o Partido da Revolução Democrática (PRD) do Panamá, o Partido Revolucionário Moderno (PRM) da República Dominicana, o Partido dos Trabalhadores (PT) do Brasil; e os partidos de uma esquerda separatista, como o Frente Ampla, do Chile, o Movimento para o Socialismo (MAS), da Bolívia, o Movimento de Regeneração Nacional (MORENA), do México; por fim, os partidos genéricos, como o Justicialismo, da Argentina, em suas versões “Kirchneristas”. Assim definido, entre 2019 e 2022, o campo progressista ganhou, como que por efeito dominó, as seguintes consultas, apresentadas em ordem cronológica:

  • Laurentino Cortizo, candidato do PRD do Panamá, ocupa o Palacio de las Garzas, a presidência de seu país, desde 1º de julho de 2019;
  • Na Bolívia, o candidato do MAS (Movimiento al Socialismo), Evo Morales, venceu a eleição presidencial em 20 de outubro de 2019;
  • Na Argentina, em 28 de outubro de 2019, Alberto Fernandez, candidato do Partido Justicialista, venceu a consulta presidencial;
  • Em 16 de agosto de 2020, Luis Abinader, do Partido Revolucionário Moderno (PRM), ganhou a entrada no Palácio Nacional da República Dominicana;
  • Luis Arce, do MAS, venceu em 18 de outubro de 2020 na Bolívia;
  • Pedro Castillo, no Peru, do Partido Peru Livre, eleito presidente em 6 de junho de 2021, entrou na Casa de Pizarro em 28 de julho de 2021;
  • O Palácio José Cecilio del Valle, a sede presidencial de Honduras, tem sido a residência de Xiomara Castro, do partido Libertad y Refundación, desde 27 de janeiro de 2022;
  • Gabriel Boric, candidato da coalizão Frente Amplio no Chile, eleito presidente em 19 de dezembro de 2021, é hóspede do Palacio de la Moneda desde 11 de março de 2022;
  • Gustavo Petro entrou no Palácio de Nariño, a sede da Presidência, em 7 de agosto de 2022, pelo Partido Colômbia Humana;
  • O Palácio do Planalto está ocupado por Luiz Inácio Lula da Silva, eleito pelo Partido dos Trabalhadores, desde 1º de janeiro de 2023;
  • Finalmente, em 14 de janeiro de 2024, Bernardo Arévalo de León, candidato do Movimiento Semilla, eleito Presidente da Guatemala em 20 de agosto de 2023, mudou-se para a Casa Crema.

Assim, entre 2019 e 2023, 11 chefes de Estado eleitos são, de acordo com os critérios mencionados acima, presidentes de “esquerda”.

Esse ciclo progressista pode ser aumentado para 15 se incluirmos o México, onde um presidente de esquerda foi eleito em 1º de julho de 2018, Andrés Manuel Lopez Obrador (MORENA), e três outros presidentes que se autodenominam “de esquerda”, em Cuba, Nicarágua e Venezuela, mas que não chegaram ao poder por meio de uma eleição competitiva. Quinze líderes latino-americanos de um total de 20 países são progressistas, portanto, o atual momento político-eleitoral latino-americano justificaria chamá-lo de ciclo progressista.

Evidência lógica de um ciclo anterior de direita

Confirmando a aparente relevância do conceito, os resultados das consultas anteriores a esse “ciclo” de esquerda validam a sua evidência enquanto tendo sido um ciclo liberal-conservador:

  • 2012, 1º de dezembro, México, Enrique Peña Nieto (Partido Revolucionário Institucional – PRI) assume o poder;
  • 2014, Honduras, 27 de janeiro, Juan Orlando Hernández (Partido Nacional);
  • 2014, 7 de agosto, Colômbia, Juan Manuel Santos (Partido da U) assume o poder;
  • 2015, Guatemala, 6 de setembro, Alejandro Maldonado Aguirre;
  • 2015, Argentina, 10 de dezembro, Mauricio Macri (Proposta Republicana);
  • 2015, Venezuela, 6 de dezembro, partidos de direita vencem as eleições legislativas;
  • 2016, Guatemala, Jimmy Morales (Frente Convergência Nacional);
  • 2016, Peru, 28 de julho, Pedro Pablo Kuczynski (Peruanos Por el Kambio);
  • 2018, Chile, 11 de março, Sebastián Piñera (Chile Vamos);
  • 2018, Honduras, 27 de janeiro, Juan Orlando Hernández (Partido Nacional);
  • 2018, Paraguai, 15 de agosto, Mario Abdo Benitez (Partido Colorado);
  • 2018, Colômbia, 7 de agosto, Ivan Duque (Centro Democrático).

Exceções que relativizam a validade científica do conceito desses ciclos eleitorais ideológicos

As muitas exceções à convergência ideológica e partidária dos resultados permitem questionar a relevância de se considerar esse conceito de “ciclo” como um conceito universal e científico.

Exceções de governos de esquerda em ciclo considerado de direita

  • 2014, El Salvador, 1º de junho, Santiago Sanchez Ceren (FMLN, Frente Farabundo Marti de Libertação Nacional) toma posse;
  • 2015, Brasil, 1º de janeiro, Dilma Rousseff (PT) assume o cargo;
  • 2015, Bolívia, 12 de outubro, presidência de Evo Morales (MAS);
  • 2015, Uruguai, 1º de março, Tabaré Vazquez (Frente Ampla);
  • 2017, Equador, 24 de maio, Lenin Moreno (Alianza País);
  • 2018, México, 1º de dezembro, Andrès Manuel López Obrador (MORENA).

Exceções de governos de direita em ciclo considerado de esquerda

  • 2019, Brasil, 1º de janeiro, Jair Bolsonaro (Partido Liberal);
  • 2019, El Salvador, 1º de junho, Nayib Bukele (GANA, Grande Aliança para a Unidade Nacional);
  • 2019, Bolívia, 12 de novembro, Jeanine Alves (Unidad Demócrata);
  • 2020, Guatemala, 14 de janeiro, Alejandro Giammatei (Vamos);
  • 2020, Uruguai, 1º de março, Luis Lacalle Pou (Partido Nacional);
  • 2021, Equador, 24 de maio, Guillermo Lasso (Movimiento CREO);
  • 2023, Chile, 7 de maio, eleição de uma assembleia constituinte de direita e extrema-direita;
  • 2023, Paraguai, 15 de agosto, Santiago Peña (Partido Colorado);
  • 2023, Equador, 1º de dezembro, Daniel Noboa (Ação Democrática Nacional);
  • 2023, Argentina, 10 de dezembro, Javier Milei (La Libertad Avance);
  • 2023, Chile, 17 de dezembro, rejeição do projeto de reforma constitucional, confirmação da Lei Fundamental da ditadura de Augusto Pinochet.

Hipóteses interpretativas para esses ciclos imperfeitos

O primeiro ponto a ser observado é que as inúmeras discrepâncias observadas nos diferentes ciclos aos quais se refere constantemente a mídia, ou seja, ciclos de direita e de esquerda, demonstram que esse termo não tem valor explicativo. O que simplesmente ele nomeia são essas tendências eleitorais dominantes em diferentes períodos da vida política latino-americana. O ciclo eleitoral é, portanto, uma conveniência descritiva que permite identificar, em um primeiro momento, a cor principal de uma temporada eleitoral no subcontinente.

A segunda observação é consequência do desafio interpretativo apresentado pela descrição de convergências ideológicas indiscutíveis, mas imperfeitas. Os ciclos podem estar incompletos, mas, ainda assim, apontam para fases partidárias convergentes alternadas. Como podemos entender essas convergências? Como podemos interpretar sua alternância?

O primeiro denominador comum desses ciclos eleitorais ideologicamente opostos é sua alternância, introduzindo uma espécie de pêndulo eleitoral. Isso nos levaria a aceitar a natureza automática das vitórias da direita após as das forças de esquerda e, inversamente, dos sucessos progressistas após os dos conservadores e/ou liberais. O cientista político argentino Enrique Zuleta Puceiro resume essa dinâmica de alternância política e eleitoral nos seguintes termos: “Uma coalizão que vence na época das eleições rapidamente se choca com a dura realidade dos fatos. O processo é vertiginosamente rápido. O mecanismo que vai dos louros às punições é cada vez mais implacável”[2].

O sistema eleitoral da Argentina é um exemplo dessa verdade incontestável de alternância entre partidos com perímetros ideológicos opostos. Na eleição presidencial de 2015, um candidato de direita, Mauricio Macri, venceu Daniel Scioli, um justicialista (peronista), que foi patrocinado pela presidente cessante, Cristina Kirchner, também membro do partido justicialista (peronista). Portanto, houve uma mudança em 2015. Nas eleições presidenciais seguintes, em 2019, os peronistas voltaram ao poder com Alberto Fernandez. O perdedor, da direita, foi o chefe de Estado que estava saindo, Mauricio Macri. Portanto, também houve uma mudança no referendo de 2019. Em 13 de agosto de 2023, os argentinos colocaram um candidato de extrema-direita praticamente desconhecido, Javier Milei, à frente das primárias obrigatórias. Ele venceu sem contestação no dia 19 de novembro seguinte, destituindo seu oponente peronista Sergio Massa, que foi apoiado pelo vencedor de 2019, Alberto Fernandez. Portanto, nova alternância.

Esse breve estudo de caso destaca a correlação entre a situação social, econômica e monetária da população e a votação na Argentina, onde as eleições são transparentes. Ele também revela outra verdade: as lealdades ideológicas e a fidelidade partidária são corroídas pela inflação, pela pobreza, pelo desemprego e pela informalidade, independentemente de o titular do cargo ser de direita ou de esquerda. De acordo com o economista Pierre Salama, “o governo de Alberto Fernandez conseguiu o oposto do que esperava […] os aumentos de preços se aceleraram, o poder de compra de quase todos os argentinos entrou em colapso […] e sua credibilidade econômica está em dúvida” [3]. No caso da Argentina, mas também do Brasil, Chile e Colômbia, por exemplo, o voto de sanção é um critério para avaliar os ciclos, o que permite ir além de uma simples observação descritiva.

Os votos de sanção acompanham a deterioração da situação econômica, independentemente da orientação ideológica do governo no poder. Também pode, quando os indicadores estão muito preocupados, incentivar a ascensão das opções mais radicais. A cientista política argentina Maria Esperanza Casullo demonstrou que na América Latina “a nova direita está engolindo a direita tradicional” [4]. Eles contam com meios de comunicação redutores – WhatsApp, redes sociais – e igrejas pentecostais que defendem uma teologia emocional da prosperidade. Ultraliberais, espetaculares, machistas e populistas, esses extremistas de direita são liderados por personalidades caricatas, usando uma linguagem simplista, emocional e brutal. Os principais beneficiários do descontentamento social quase estrutural do subcontinente são indivíduos como o argentino Javier Milei [5], o brasileiro Jair Bolsonaro, os chilenos José Antonio Kast e José Manuel Rojo Edwards e o salvadorenho Nayib Bukele. Confirmando o argumento de Maria Esperanza Casullo, o candidato de extrema-direita argentino Javier Milei recebeu, além do apoio local do ex-chefe de Estado da direita liberal, Mauricio Macri [6], o apoio público de ex-líderes latino-americanos da direita “republicana”, como Mario Vargas Llosa, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura e ex-candidato de centro-direita à presidência do Peru, e Mariano Rajoy (Partido Popular) [7]da Espanha.

Eleições “desviantes” fora da estrutura cíclica

Naturalmente, é importante levar em conta a existência de fatores que não se enquadram na estrutura normativa definida acima. Os candidatos, sejam de direita ou de esquerda, que se destacam em seu perfil como governadores experientes podem adiar a possibilidade de uma alternância. “Mas vale un mal conocido que bueno por conocer” é um adágio espanhol que expressa a resiliência desses candidatos.

O primeiro teste dessas discrepâncias é a mudança na eleição presidencial da Argentina em 2023, que tem sido considerada altamente provável desde 2021. A maioria justicialista havia sido derrotada nas eleições de meio de mandato, vítima de um voto de sanção, conforme definido acima, devido à perpetuação do desastre social sofrido pela população. As eleições primárias abertas e obrigatórias (PASO) [8] em agosto de 2023 confirmaram o prognóstico. O candidato oficial, Sergio Massa, ficou em terceiro lugar. Como Ministro da Economia em um governo que não havia conseguido controlar a inflação, criar empregos e reduzir a pobreza, ele estava condenado à derrota eleitoral. A campanha das semanas seguintes, no entanto, atrasou um impulso que parecia inevitável. É certo que, no primeiro turno, em 22 de outubro de 2023, Sergio Massa, com 36,7% dos votos, ficou muito longe dos 48,24% obtidos em 2019 por seu correligionário partidário, Alberto Fernandez. Mas o perfil, tanto pessoal quanto programático, do candidato que ficou em primeiro lugar nas primárias, Javier Milei (La Libertad Avançada), confundiu as previsões. Seu programa de mudanças radicais – anunciando a dolarização da moeda, o fim do Banco Central e o fim da “assistência” social, a autorização do porte de armas, a relativização da ditadura militar, a crítica ao Papa, a exibição de uma referência positiva a Margaret Thatcher, que reconquistou as Malvinas, e a suspensão da interrupção voluntária da gravidez (IVG) – fez com que os mais antiperonistas e as vítimas do fracasso econômico e social do presidente Alberto Fernandez e de sua equipe ministerial se encolhessem. O que poderia explicar como um candidato como Milei, com comportamento público histérico e cômico, tenha agradado aos jovens adultos do sexo masculino, parte do eleitorado feminino e em grande parte da geração mais velha. Além disso, em 12 de novembro de 2023, durante o confronto televisionado assistido por vários milhões de argentinos, Javier Milei não conseguiu forçar seu oponente a justificar o fracasso de sua política econômica. Essa incapacidade de debater temas de relevo e a natureza radical de suas propostas explicaram o relativo fracasso de Javier Milei em 22 de outubro de 2023, no primeiro turno, quando ele obteve pouco menos de 30% dos votos, o que deu a impressão de que Sergio Massa poderia vencer [9]. “Uma porcentagem dos votos de Massa no primeiro turno veio do medo de Milei […], um candidato que gera preocupações democráticas […] se o candidato (que enfrenta Massa) fosse Larreta ou Bullrich, muitos dos que dizem que […] votaram em Massa teriam votado no Juntos pela Mudança”[10].

No dia 13 de agosto de 2023, durante as primárias obrigatórias, o peronismo e seu candidato teriam provado sua responsabilidade, como já havia acontecido em 2006, por exemplo, após outro período difícil, como apontaram os sociólogos Julio Godio e Hugo Mancuso [11]. Esse comentário é confirmado pelo jornalista e ensaísta Horacio Verbitsky: “Não podemos ignorar a centralidade que o peronismo ainda tem e pode ter no futuro”. E, no entanto, se a mudança foi de fato adiada, o voto de sanção no segundo turno, em 19 de novembro de 2023, já foi dado.

Alguns meses antes, no Equador, o pêndulo da mudança não havia sido desacelerado, mas bloqueado pela vitória de um candidato de direita, Daniel Noboa, na eleição presidencial de 15 de outubro de 2023. Ele sucedeu Guillermo Lasso, também um chefe de Estado de direita, em 23 de novembro. Em uma tentativa de interpretar essa situação excepcional, que desmente a hipótese dos ciclos, precisamos considerar a capacidade do candidato de conduzir a política no Equador em dificuldades. A candidata de esquerda, Luisa González, tinha a credibilidade necessária? Ela apareceu como uma candidata por falta de opção, substituindo o ex-presidente Rafael Correa, proibido de concorrer por várias decisões judiciais. O vencedor em 2023, Daniel Noboa, por outro lado, embora seja de direita e filho de Alberto Noboa, um “veterano” da vida política equatoriana, conseguiu vender-se como um perfil original, geracional e técnico, rompendo com o de seu antecessor, um velho político liberal, e com a esquerda “correísta”.

O mesmo pode ser dito do México. A vitória de Andrés Manuel Lopez Obrador (AMLO) em 1º de julho de 2018 foi uma vitória de alternância. Candidato do partido MORENA, uma formação humanista de esquerda, ele sucedeu o presidente do PRI, Enrique Penã Nieto. Em 2 de junho de 2024, observadores e pesquisadores esperam que a candidata presidencial do MORENA, Claudia Sheinbaum, vença. Essa continuidade partidária pode se basear no histórico de AMLO, mas também se deve muito à incapacidade dos oponentes de diversas tradições ideológicas de apresentar um programa alternativo confiável.

Por fim, quando o jogo eleitoral não está submetido ao controle inesperado de forças econômicas poderosas e/ou por outro Estado manipulador –  como no caso da marginalização judicial da oposição na Nicarágua e na Venezuela, do impeachment parlamentar de Dilma Rousseff no Brasil, da renúncia do presidente na Bolívia em 2019 e da destituição do presidente no Peru em dezembro de 2022 – a perspectiva de alternância é muito reduzida, mesmo impossível, quando o contexto social está muito deteriorado. Nesses casos, o eleitorado discorda da estrutura institucional e rompe com ela de várias maneiras, às vezes favorecendo soluções individuais. Na América Central e na Venezuela, centenas de milhares de pessoas optaram pelo êxodo coletivo, migrando para os Estados Unidos (cubanos, guatemaltecos, hondurenhos e salvadorenhos) ou para a América do Sul (venezuelanos).

Outra opção individual é recorrer a várias formas de delinquência. Na América Latina, essa tendência é tão poderosa socialmente quanto a tendência de emigrar. A América Latina é a região com as taxas de homicídio mais altas do mundo, apesar do fato de esse subcontinente não ter guerras entre Estados. É também a região em que as redes de crime organizado mobilizam aqueles que foram deixados para trás pela sociedade, muitos deles jovens, no Brasil, na Colômbia, no México e na América Central.

Os avanços revolucionários – pegar em armas – foram importantes no final do século passado, mas agora são coisa do passado. Na Colômbia, ao longo dos anos, o M19 e as FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) assinaram acordos de paz. Apenas alguns dissidentes das FARC e o ELN (Exército de Libertação Nacional) permanecem relativamente ativos, mas em negociação com as autoridades. Em Chiapas, no México, o EZLN (Exército Zapatista de Libertação Nacional) não está mais militarmente ativo.

A rejeição às instituições se manifesta de forma mais reativa e violenta nas ruas. Os recentes acontecimentos políticos no Brasil, Chile, Colômbia e Panamá foram marcados por explosões de descontentamento social decorrentes de eventos aparentemente insignificantes, como um aumento no preço das passagens de transporte.

O fracasso social previsto para a mudança mais recente da Argentina, a de Javier Milei, aponta para uma combinação perturbadora de quatro elementos: manifestações de rua, aumento da criminalidade, migração em massa e reações repressivas das autoridades. Essa perspectiva permanece hipotética, mas aponta para o cotidiano perturbador e disruptivo de vários países: os excessos autoritários do governo de Nayib Bukele em El Salvador, os distúrbios institucionais que dissolvem a nação e o Estado no Haiti e no Peru, o poder destrutivo dos grupos mafiosos na América Central, Colômbia, Equador e México e o impacto regional desestabilizador da migração centro-americana, cubana, haitiana e venezuelana.

Explicações para a alternância eleitoral na América Latina

Dar um significado interpretativo às alternâncias eleitorais que conjunturalmente seriam vizinhas do ponto de vista político-ideológico, sob o disfarce do conceito de “ciclo”, é uma questão de “realismo mágico”, e não tem fundo explicativo. Essas alternâncias ocorrem em contextos sociais e econômicos de crise, o que possibilita a hipótese de um vínculo causal. O descontentamento das maiorias está na raiz dos votos de sanção.

Os votos sancionados afetaram todos os governos, fossem eles progressistas ou liberais-conservadores. A fidelidade partidária e ideológica perde espaço e força frente ao aumento da inflação, da pobreza, do desemprego e do subemprego. [13]

Essa situação abriu perspectivas eleitorais para a extrema-direita, que investiu em forças e candidatos que combinam redes sociais e retórica demagógica, vendendo soluções ultraliberais e antissociais incorporadas por candidatos com uma linguagem assumidamente vulgar. Como vimos anteriormente, essa extrema direita está absorvendo a direita “civilizada”.

As forças progressistas deveriam ser as principais beneficiárias da deterioração das condições sociais. Mas esse não é o caso. Pelo menos não em longo prazo. Quando estão no poder, elas são tão vítimas da rejeição eleitoral quanto as da direita, porque não conseguem atender às expectativas das vítimas do aumento dos preços e da perpetuação da pobreza e do subemprego. O fracasso da reforma constitucional do Chile, após quatro anos de debate e cinco consultas, é o fracasso de um governo progressista de alternância. Esse fracasso terá consequências eleitorais para as próximas eleições presidenciais em 2025.

De acordo com o sociólogo brasileiro José Maria Gómez, essa realidade eleitoral é consequência da diluição das diferenças entre direita e esquerda que veio com a globalização: “O mercado financeiro global é um fator de disciplinamento das políticas governamentais […] favorecendo os investidores em detrimento do bem-estar das pessoas. Dessa forma, o capital global concedeu a si mesmo um veto sobre a política pública” [14].

A dificuldade do progressismo em responder aos desafios sociais não foi compensada pela ascensão do societal em seus programas, por mais sedutores que sejam os pacotes de comunicação cada vez mais sofisticados. De acordo com o acadêmico norte-americano Mark Lilla, esse desvio está na raiz da fragilidade da esquerda, desde os Estados Unidos até a Europa e a América Latina. [15]

A única coisa que retém o voto de alternância é o medo de que a alternativa possa ser pior do que o candidato em exercício. 

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Texto originalmente publicado em francês, em 06 de fevereiro de 2024, no site Fondation Jean Jaurès, Paris/França, com o título original: “L’Amérique latine en 2023: un nouveau cycle électoral?”. Disponível aqui. . Tradução de Andrei Cezar da Silva e Luzmara Curcino.

Notas

[1] Cf.: Daniel Lozano, “La Patria Grande sufre un frenazo y augura un cambio de ciclo político”, El Mundo, 22 de outubro de 2023

[2] Enrique Zuleta Puceiro, “Un sistema politico en trance de mutación”, Letras Libres, n. 298, outubro de 2023, p. 28.

[3] Pierre Salama, “Une approche économique de la crise argentine”, Contretemps, n° 58, julho de 2023, p. 52.

[4] Barbara Schijman e Natalia Augusta, “Las nuevas derechas populistas ‘se comen’ a las tradicionales”, Página 12, 19 de novembro de 2023.

[5] Flora Genoux e Angeline Montoya, “En Argentine, les marges de manoeuvre étroites de Javier Milei”, Le Monde, 21 de novembro de  2023.

[6]  ibidem.

[7] Lista dos “amigos” de Javier Milei: Felipe Calderón (México, Parti d’action nationale, PAN, ex-presidente), Ivan Duque (Colômbia, Centre démocratique, ex-presidente), Vicente Fox (Mexique, PAN, ex-presidente), Andrès Pastrana (Colômbia, conservador, ex-presidente), Sebastián Piñera (Chile, Chile Vamos, Rassemblement des droites, ex-presidente), Jorge « Tuto » Quiroga (Bolívia, ADN, ex-presidente), Mariano Rajoy (Espanha, Parti populaire, ex-presidente), Luis Fortuño (Porto Rico, PNP, ex-governador).

[8] Primárias abertas simultâneas e obrigatórias.

[9] Mariano Schuster e Pablo Stefanoni, “Argentina frena (por ahora) a la extrema derecha”, Nueva Sociedad, outubro de 2023.

[10] Maria Esperanza Casullo, “Juntos por el Cambio” era o nome da coalizão de partidos de direita da qual Patricia Bullrich era a candidata. Horacio Rodriguez Larreta, chefe do governo de Buenos Aires, era membro da mesma coalizão.

[11] Julio Godio e Hugo Mancuso, “La anomalia argentina”, Buenos Aires, Miño y Davila, 2006.

[12] Horacio Verbitsky, “Vida de perro”, Siglo XXI, 2018.

[13] Jean-Jacques Kourliandsky, “Progressisme et démocratie en Amérique latine (2000-2021)”, La Tour d’Aigues, Fondation Jean-Jaurès/L’Aube, 2022.

[14] José Maria Gómez, Política e democracia em tempos de globalização, Rio de Janeiro, Editora Vozes, 2000.

[15] Mark Lilla, La gauche identitaire, Paris, Stock, 2017.

Nota do tradutor

Após questionamentos do processo eleitoral de 2019, no qual foi eleito Evo Morales, ele renuncia ao cargo, assim como o seu vice, tendo assumido a presidente do senado do partido opositor. São convocadas novas eleições, em 2020, e vence o candidato do partido de Morales (MAS), Luis Arce.

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Jean-Jacques Kourliandsky é diretor do Observatório da América Latina junto ao IRIS – Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas, com sede em Paris, e responsável pela cobertura e análise conjuntural geopolítica da América Latina e Caribe. É formado em Ciências Políticas pelo Instituto de Estudos Políticos de Bordeaux e Doutor em História Contemporânea pela Universidade de Bordeaux III. Atua como observador internacional junto às fundações Friedrich Ebert e Jean Jaurès. É autor, entre outros, do livro “Amérique Latine: Insubordinations émergentes” (2014), e colabora frequentemente com o Observatório da Imprensa, em parceria com o LABOR – Laboratório de Estudos do Discurso e com o LIRE – Laboratório de Estudos da Leitura, ambos da UFSCar – Universidade Federal de São Carlos.