Esta iniciativa era, sem dúvida, previsível. Madrid tem desde a sua adesão à Comunidade Económica Europeia em 1986, por razões históricas e nacionais, desempenhado ou tentando desempenhar o papel de ponte entre as duas margens do Atlântico.
Como sabemos, as coisas nem sempre seguiram o cenário planejado pelo Palácio de Santa Cruz, o Quai d’Orsay Ibérico. Ano após ano, foi construída uma rede bilateral, posteriormente ampliada à Europa: as Conferências Ibero-americanas em 1991, seguidas da criação da Secretaria Geral das Conferências Ibero-americanas em 2005, o Diálogo Euro-Americano em San José desde 1984, as Conferências Euro-Latino-Americanas em 1999, e finalmente os acordos assinados pela União Europeia com vários países da América Latina ao longo do tempo. Nos anos 80, a transição democrática espanhola foi tomada como um modelo a ser seguido pelos países latino-americanos que acabavam de sair de ditaduras militares. A integração europeia tinha reavivado as esperanças perdidas da união latino-americana. Foram criadas várias estruturas intergovernamentais, tais como o CACM (Mercado Comum Centro-Americano) e o Mercosul.
Essa máquina em funcionamento emperrou com o crescimento europeu em direção à Europa Central. Então unificada, a Alemanha voltou os olhos e o seu interesse econômico para o Oriente. A França seguiu o exemplo, com alguns desvios para o cenário asiático em especial chinês. Os Estados Unidos aceleraram essa nova engrenagem, ansiosos por recuperar uma posição de liderança no Velho Continente, graças à “submissão voluntária” da Alemanha e dos novos membros orientais da UE e da OTAN.
Em 2007, após um confronto verbal entre o rei espanhol Juan Carlos I e o presidente venezuelano Hugo Chávez, em evento no Chile, as conferências ibero-americanas encontravam-se em um clima de ganhos decrescentes. Desde então, um número significativo de países da América Latina deixou de participar das conferências desde essa data. Tanto é que em 2014, as conferências passaram de anuais a bienais. As conferências da EU e América Latina também perderam rapidamente a sua relevância. Desde 2015, EUA e América Latina não se reuniram mais. A deterioração persistente das relações com a Rússia, o peso cada vez mais dominante da OTAN como bússola comum, as tendências liberais e anti-russas de vários dos novos parceiros da Europa Central afastaram durante muito tempo a América Latina da Europa.
No dia 12 de setembro de 2022, a Espanha manifestou discretamente a sua intenção de retomar as conferências euro-latino-americanas na apresentação de seu plano presidencial, até o final de 2023, da União Europeia. Pedro Sánchez, presidente do governo, tem tentado, desde 2019, reorientar os interesses e ações de seu país, lançando balões de ensaio na direção da África, do Mediterrâneo e da América Latina. O passado colonial e a primazia dada à solidariedade atlântica e europeia deixaram pouco espaço de manobra. O alto funcionário internacional da União Européia, Josep Borrell, antigo Ministro Espanhol dos Negócios Estrangeiros, relança o projeto. Mas ele também está constrangido por outras prioridades. Com grande dificuldade, conseguiu fazer uma única viagem a campo em novembro de 2021.
No lado da América Latina, a recepção foi mitigada. O México foi visitado por Pedro Sánchez em janeiro de 2019, visita que não teve grande impacto. Andrés Manuel López Obrador (AMLO), apesar de ser de ascendência asturiana, demonstrou objeções publicamente expressas e baseadas na recusa espanhola de pedir desculpas pela colonização e pela conquista de espanhola de Hernán Cortés. O presidente rotativo da CELAC (Comunidade dos Estados da América Latina e Caribe), AMLO, colocou de molho a proposta espanhola em 2020 e 2021. O Rei da Espanha, enviado em 2022 ao Chile e à Colômbia para assistir à posse dos presidentes Gabriel Boric e Gustavo Petro, foi criticado pelos protocolos desses países e duramente criticado pela imprensa.
O argentino Alberto Fernández, que assumiu a direção da CELAC no dia 8 de janeiro de 2022, estava mais otimista. Decidiu apoiar a ideia de uma conferência bilateral se Cuba, Nicarágua e Venezuela fossem convidadas. Pedro Sánchez visitou a Colômbia, Equador e Honduras em agosto de 2022. Acolhido como Presidente da República espanhola no Palácio Nariño em Bogotá, Pedro Sánchez se mostrou indulgente para com os seus anfitriões e, fotografado diante de um retrato de Simón Bolívar, para fazer esquecer os supostos fracassos do Rei da Espanha, que permaneceu sentado, no último 7 de agosto, quando a espada do “Libertador” passou. Lula da Silva, que está em campanha presidencial e curioso sobre o alfa e o ômega da reforma laboral espanhola, abordou o representante do governo de Pedro Sánchez, o Ministro da Inclusão e Segurança Social, José Luis Escrivá. Acredita-se que Pedro Sánchez pretenda concorrer à presidência da Internacional Socialista que realizará um congresso em Madrid nos dias 25 e 27 de novembro. Ele participou de uma reunião preparatória em Genebra nos dias 7 e 8 de julho de 2022 com 16 delegações de partidos latino-americanos. Não é certo que esta escolha reforçará a reunião euro-latino-americana em Bruxelas, em dezembro de 2023. Estes partidos são, na melhor das hipóteses, centristas. A Internacional Socialista foi abandonada pela maioria dos partidos socialistas democráticos europeus. Os chamados Chefes de Estado de esquerda na América Latina, agora no poder, sentem-se mais próximos do partido Podemos do que do PSOE, ambos da Espanha. Exemplo claro disso, no dia 12 de julho, os atuais presidentes da Argentina, Bolívia, Chile, México e o presidente eleito da Colômbia, Gustavo Petro, enviaram um telegrama de apoio a Pablo Iglesias, o fundador do Podemos, que tem sido alvo de notícias falsas no seu país.
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Texto publicado originalmente em francês, em 17 de setembro de 2022, na seção ‘Actualités, Amérique Latine’ do Nouveaux Espaces Latinos, Paris/França, com o título original “Espagne et Amérique latine : recoudre la relation avec l’Europe”. Disponível aqui. Tradução de Adriana Cícera Amaral Fancio e Luzmara Curcino.
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Jean-Jacques Kourliandsky É diretor do Observatório da América Latina junto ao IRIS – Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas, com sede em Paris, e responsável pela cobertura e análise conjuntural geopolítica da América Latina e Caribe. É formado em Ciências Políticas pelo Instituto de Estudos Políticos de Bordeaux e Doutor em História Contemporânea pela Universidade de Bordeaux III. Atua como observador internacional junto às fundações Friedrich Ebert e Jean Jaurès. É autor, entre outros, do livro “Amérique Latine: Insubordinations émergentes” (2014), e colabora frequentemente com o Observatório da Imprensa, em parceria com o LABOR – Laboratório de Estudos do Discurso e com o LIRE – Laboratório de Estudos da Leitura, ambos da UFSCar – Universidade Federal de São Carlos.