Wednesday, 25 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A pergunta que a imprensa não fez aos defensores do golpe militar

(Foto: Lívia Braz/Brasil 61)

Há uma pergunta que os jornalistas ainda não fizeram às pessoas que estão acampadas na frente dos quartéis, defendendo a tomada do poder pelas Forças Armadas. E aos pequenos grupos de militares simpáticos à ideia. É a seguinte: “Se houver reação da população civil ao golpe, eles defenderão que as tropas bombardeiem as cidades brasileiras?” É necessário fazer essa pergunta porque a maneira como esse assunto vem sendo noticiado dá a impressão que a população não reagiria a um golpe militar. Não é isso que as pesquisas dizem. Em julho foi publicada uma pesquisa do Datafolha mostrando que 75% dos brasileiros apoiam a democracia e que 78% dizem que o regime militar (1964 a 1985) foi uma ditadura. Vamos à vida real. Alguém em sã consciência acredita que as gerações nascidas na era da democracia aceitariam alguém dizendo o que podem ler, a que espetáculo podem assistir, a roupa que podem vestir, os sites que podem navegar na internet e outras barbaridades que fazem parte de uma ditadura? A maioria das matérias que temos publicado sobre aqueles que estão na frente dos quartéis pedindo um golpe militar parte do princípio de que todos sabem do que se trata. Não sabem. É sobre isso que vamos conversar.

Antes de começar a conversa vou fazer algumas observações que julgo necessárias. Começo lembrando os colegas repórteres que, em 2016, quando a inflação voltou a incomodar os brasileiros, nós precisamos fazer matérias explicando para as novas gerações do que se tratava. A maioria dos jovens nunca tinha ouvido falar na tal da inflação. Muito menos no perigo de uma hiperinflação, como aconteceu entre 1980 e 1990, quando a alta dos preços chegou a 1.000%. Lembro que na ocasião aconteceram acalorados debates nas redações entre editores e repórteres especializados em economia, que escreviam seus textos partindo do princípio de que todos sabiam do que se tratava. Esse é um erro muito comum cometido por jornalistas especializados. Eu sei disso porque sou especializado em conflitos agrários, migrações e crime organizado nas fronteiras. E não foram uma nem duas, mas muitas as vezes que redigi meus textos acreditando que todos os leitores eram profundos conhecedores do assunto sobre o qual eu estava falando. Claro que não eram. Pude comprovar isso pelas ligações telefônicas e as mensagens que recebia. Por conta disso, tenho conversado muito com a turma dos 30 e poucos anos sobre a história do golpe de estado. E posso resumir assim as minhas conversas: essa geração tem tal volume de informações na cabeça que não existe espaço para coisas do passado. A não ser que essas coisas, de alguma maneira, possam vir a influenciar o seu dia a dia atual. Voltando a nossa conversa. Essa história do retorno dos militares ao poder é coisa dos tempos da Guerra Fria, o confronto ideológico entre os Estados Unidos, capitalistas, e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, comunista, que durou de 1947 a 1991. Os dois lados usaram os militares dos países aliados, que na época se chamavam satélites, para manter a fidelidade da população aos seus interesses políticos. O Brasil era satélite dos Estados Unidos, que estimulou os militares brasileiros, aliados a partidos políticos locais e parte da população, a deram o golpe de 1964.

Foi nessa época, em 11 de setembro de 1973, que as Forças Armadas do Chile bombardearam o Palácio da La Moneda, sede do governo, onde estavam entrincheirados o então presidente Salvador Allende e um punhado de patriotas – há documentários sobre o assunto. A Guerra Fria acabou em 1991, com a dissolução da União Soviética, simbolizada pela queda do Muro de Berlim – há matérias na internet. E com a redemocratização dos países satélites, no Brasil se iniciou em 1985 um ciclo de liberdades políticas que se consolidou em 1988, com publicação de uma nova Constituição, e se aprofundou nos anos seguintes com a globalização da economia. A Constituição é muito clara. A função das Forças Armadas é proteger os brasileiros de um ataque a nossas fronteiras. Não é por outro motivo que os soldados do Exército, os marinheiros da Marinha de Guerra e os pilotos da Força Aérea Brasileira (FAB) são treinados para matar, como todos os outros integrantes de forças armadas ao redor do mundo. Lembro que desde que assumiu o seu mandato, em 2019, o presidente Jair Bolsonaro (PL), sempre que tem uma oportunidade, usa a ameaça da volta dos militares ao poder para pressionar os seus adversários políticos. Em 23 de julho de 2021, escrevi o post Até quando a ameaça de golpe militar vai ser uma barganha na política no Brasil? Ali escrevi que a volta dos militares ao poder seria como ressuscitar os dinossauros, como no filme Jurassic Park, do diretor Steven Spielberg. Bolsonaro começou essa história de acampamentos na frente dos quartéis. E vai mantê-la para sustentar o seu blefe do golpe militar. Ele e seus generais sabem que as Forças Armadas, mesmo que usassem as polícias militares, não têm efetivos e equipamentos para tomar o controle de um país como o Brasil, de dimensões continentais, industrializado e com a maioria da população vivendo em áreas urbanas.

A única maneira de desmontar o blefe de Bolsonaro sobre as Forças Armadas é explicando, de maneira simples, direta e elegante, ao nosso leitor, o absurdo dessa história, Vou citar dois exemplos: o primeiro é que uma grande parte da população não aceitaria e haveria muita confusão pelas ruas e avenidas do país. O segundo: nesses últimos 30 anos surgiu uma geração nova de comandantes militares, com um alto grau de profissionalização e seguidores da Constituição. Ter grupos de oficiais delirantes com o poder não é exclusividade do Brasil, acontece nas melhores democracias. O que mantém essa turma na linha é a imprensa livre. E a contribuição dos repórteres para desmascarar blefes e colocar os fatos corretos na corrente de informações que alimenta os noticiários. Claro que garimpar os fatos não é fácil. Mas sabemos como fazer. Afinal de contas, fazemos isso desde que iniciamos a nossa jornada em busca de uma história para contar.

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Carlos Wagner é
repórter, graduado em Comunicação Social — habilitação em Jornalismo, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul — Ufrgs. Trabalhou como repórter investigativo no jornal Zero Hora (RS, Brasil) de 1983 a 2014. Recebeu 38 prêmios de Jornalismo, entre eles, sete Prêmios Esso regionais. Tem 17 livros publicados, como “País Bandido”. Aos 67 anos, foi homenageado no 12º encontro da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI), em 2017, SP.