Tuesday, 17 de September de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1305

As dificuldades do jornalismo na cobertura da eleição municipal em São Paulo

(Imagem de Florian Pircher por Pixabay)

Pablo Marçal é a materialização no campo da política institucional da videopolítica digital. Um indivíduo que desliza entre as posições do coach, do líder religioso, do empreendedor. Tudo junto e misturado. Era questão de tempo surgir esse tipo de discurso. Ainda assim sua presença é reveladora do quanto os formatos midiáticos tradicionais analógicos não estão preparados para o jogo que se apresenta. Fenômeno particularmente perceptível no jornalismo. O debate da TV Gazeta (01/09) e o Roda Viva no dia seguinte (02/09) foram momentos que revelaram algo além do constrangimento, um mal-estar do jornalismo para lidar com a situação.

É uma variável da extrema direita que sinaliza o que está por vir, por isso não deve ser visto como fenômeno individual. A imagem que se vende é do sujeito corajoso, portador de verdades e não comprometido com o sistema. A audiência dos debates aumenta quando proliferam os ataques pessoais. Esqueçam a discussão de ideias, projetos e problemas da cidade, tudo o que se quer é produzir cortes lacradores para serem disseminados nas redes.

A mudança impacta as estratégias do marketing político. A comunicação das campanhas, mais ágil do que o telejornalismo, reage, como demonstra reportagem de Daniel Bergamasco publicada no site da piaui. Tabata Amaral mudou sua performance e teve vídeos viralizados que mimetizam “a estética sombria” do concorrente. A equipe incluiu uma psicanalista que estuda a linguagem corporal de Marçal, o que o deixa mais irritado. Pedro Simões, o jornalista que cuida da campanha de Tabata, observa que os conteúdos com propostas têm baixo engajamento. Os algoritmos das redes sociais têm lógica mais temática do que geográfica, discutir a cidade importa menos do que incluir na pauta temas acalorados dos debates públicos.

No telejornalismo, o ritmo é outro. A ascensão de Pablo Marçal expõe um dilema do jornalismo: ceder à lógica dos cortes lacradores ou buscar uma inovação de práticas e linguagens para fortalecer um espaço de mediação de um debate público cidadão? Há quanto tempo as regras e a mise-en-scène dos debates eleitorais permanece a mesma, com pequenas variações? No debate da Gazeta, Pablo Marçal ficou um longo tempo na tela dividida com Datena (que estava com a palavra) gesticulando. Era quase impossível ouvir a fala de Datena, diante do ruído do gestual de seu adversário. Difícil saber se foi uma opção da direção de imagens para produzir cortes ou uma falha técnica.

O mesmo mal-estar estava no ar no Roda Viva do dia 2 de setembro, em que Pablo Marçal foi entrevistado. Os argumentos racionais, as tentativas de expor a contradição do candidato tinham seu efeito reduzido diante da reação agressiva de Marçal. Como atualizar as práticas, a linguagem jornalística, a própria televisão diante do risco do rompimento de um já esgarçado tecido social, a defesa da democracia, a política como espaço de debate de ideias?

A questão é muito mais complexa do que o espaço que dispomos aqui. Arrisco respostas pontuais, diante do que a TV exibiu nos últimos dias. Um ponto nevrálgico nos debates é o direito de resposta, geralmente concedido nos casos de ofensas pessoais, quando se passa do campo político para aspectos da vida privada, por exemplo. No debate da Gazeta, foram muitos os pedidos de resposta motivados por Marçal. É como se ele desse o tom da agressividade, contaminando também a maioria de seus concorrentes. O instrumento de poder dos jornalistas nos debates é o tempo, a exposição que cada um tem para defender suas ideias (ou ausência delas). Seria saudável penalizar os candidatos que provoquem direitos de resposta, reduzindo tempo deles em outros momentos.

O Roda Viva, por sua vez, tem limitado o espaço do seu púlpito para jornalistas. Em outros tempos, havia uma mistura maior de profissionais da imprensa com especialistas na área debatida. A presença de cientistas políticos, estudiosos de mídia e linguagem –psicanalistas, por exemplo – poderia criar um contexto um pouco mais crítico, qualificar o debate. Não considero esse argumento como desvalorização do jornalismo. Jornalistas são treinados para sintetizar ideias, traduzir a linguagem especializada para um entendimento comum, olhos e ouvidos atentos para identificar pontos importantes. Essas habilidades são fundamentais, quando se tem uma diversidade de ideias e pontos de vista que estudiosos podem trazer.

A sutil diferença entre opinião e análise poderia melhorar inclusive os debates vespertinos da GloboNews.  A ideia do jornalista como especialista em generalidades talvez não seja a mais apropriada para o contexto atual, uma vez que há sempre estudiosos sérios e aprofundados em qualquer assunto e a sociedade se tornou mais complexa. Ao contrário, se o jornalista refinasse a verve da mediação, da interpretação das ideias nos debates, haveria ganhos significativos.

A presença de Celso Rocha de Barros no podcast Foro de Teresina é um exemplo positivo, não só pela fundamentação de suas análises, quanto pela interação com os jornalistas Fernando de Barros e Silva e Ana Clara Costa. Há um equilíbrio entre o conhecimento especializado e a linguagem acessível. Aliás, o crescimento dos podcasts pode indicar um interessante retorno à palavra, diante da ubiquidade das imagens que constituíram a videopolítica na televisão e hoje nas redes sociais. A passagem de uma tradição retórica, argumentativa, presente na imprensa e no rádio para a televisão e as redes sociais é tema de um interessante artigo do professor da Universidade de Buenos Aires, Mariano Dagatti, Imagens da Política, política das imagens: sobre comunicação, retórica e estética.

Há uma tradição racionalista que luta para qualificar o debate público – espaço potencial para o bom jornalismo – e outra força que obscurece o debate, na repetição dos mantras da extrema direita, limitando a linguagem e o pensamento. Nessa cobertura das eleições em São Paulo, a segunda força tem dominado. A sua desconstrução requer estratégia, razão e alguma ousadia. Como um clichê da linguagem coach, é preciso sair da zona de conforto, até porque outras surpresas podem surgir.

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Pedro Varoni é jornalista, Professor do Departamento de Letras de Universidade Federal de São Carlos e da Pós-Graduação em Linguística e também no Mestrado Profissional em Conteúdo Multiplataforma, ambos da UFSCar.