Não parece ser coincidência a decisão do deputado federal condenado por ameaçar ministros do STF e indultado por Bolsonaro, Daniel Silveira (PTB/RJ), de discursar, em ato desse 1º de maio, e se deixar fotografar ao lado de um sósia do viking do Capitólio. O apoiador fantasiado ficou em silêncio, foi colocado ali para sinalizar o recado aos apoiadores mais fanáticos, reproduzir, em uma versão tupiniquim com chifres e cara pintada com as cores da nossa bandeira, a imagem de ‘Jake Angeli’ preso e condenado como um dos invasores do Congresso americano no episódio de 6 de janeiro do ano passado, em que apoiadores de Donald Trump foram incitados a não aceitar o resultado das eleições. Também não parece coincidência o fato de o deputado Silveira ter sido tratado como a estrela dos atos convocados pelo presidente Bolsonaro para o dia do trabalho, em uma tentativa de fazer frente às tradicionais comemorações de grupos da esquerda.
O indulto da pena de Daniel Silveira é simbólico para Bolsonaro porque representa a concretização da promessa golpista de 7 de setembro de 2021, quando o presidente esbravejou que não mais cumpriria decisões do ministro Alexandre de Moraes, chamado por ele de canalha. Nesse discurso de 7 de setembro, que durou menos de 20 minutos, do alto de um carro de som na avenida Paulista, em São Paulo, Jair Bolsonaro falou a palavra ‘liberdade’ nove vezes. A defesa da liberdade com a própria vida tem sido a senha para instigar a coragem dos apoiadores mais fanáticos a também se revoltarem contra uma possível derrota na tentativa de reeleição de Bolsonaro e lutarem, colocando a própria vida em risco, por não aceitar o resultado das urnas por aqui. Essa senha tem sido repetida com mais frequência pelo presidente e por seus aliados nos últimos meses.
Bolsonaro repete as mesmas frases, esse comportamento é o objeto de estudo da minha pesquisa de mestrado em que construí um banco de dados com 700 falas checadas do presidente e analisei as sete mais repetidas para avaliar se reproduzem os traços do ‘Fascismo Eterno’ de Umberto Eco. Ficou muito claro que o padrão é esse, ele repete as mesmas ideias à exaustão, um pouco por limitação cognitiva mesmo e também porque parece estar seguindo um formulário escrito por algum sujeito oculto inspirado em regimes autoritários. A estratégia de comunicação do presidente segue o mesmo padrão nas redes sociais, discursos ou entrevistas. Desde o discurso em 7 de setembro, uma dessas declarações têm ficado mais frequente, “Eu prefiro morrer do que perder a minha liberdade”. Parece um apelo claro aos apoiadores mais fanáticos para que tenham coragem de correr risco de perder a vida, como correram os apoiadores de Trump na invasão do Capitólio que terminou com a morte de cinco pessoas, uma das vítimas era um policial que foi espancado pelos invasores.
Daniel Silveira, ao lado do viking do capitólio na versão verde amarelo, antes de agradecer aos que o apoiaram quando esteve preso, afirmou do alto do carro de som em Niterói: “O presidente disse: a liberdade vale mais que a própria vida, o que é um homem, o que é uma mulher, sem liberdade, não vive, tão somente existe. Nós não vamos existir, nós vamos viver e vamos sim colocar o Brasil na liberdade que o presidente tanto sonha”, declarou Silveira.
Outros aliados do presidente repetiram a mesma ideia, sobre morrer pela própria liberdade, só que em um contexto diferente, que agora parece superado. Antes do 7 de setembro, essa frase era usada por Bolsonaro para justificar a revolta contra as medidas de controle da pandemia, em uma campanha de ataque ao Supremo que deu a palavra final a prefeitos e governadores sobre o lockdown. Bolsonaro tentou vender que o ‘fica em casa que a economia a gente vê depois’ era uma decisão irresponsável, e, contrariando especialistas do mundo todo, não protegeria vidas porque as pessoas morreriam de fome. Defendeu que o lockdown era uma afronta ao direito constitucional de ir e vir e que as pessoas não deveriam temer o vírus, e sim lutar pela sua liberdade de voltar ao trabalho.
Em dezembro do ano passado, o ministro da saúde, Marcelo Queiroga, que é médico, justificou que não exigiria o passaporte da vacina contra a covid de quem entrasse no Brasil porque não seria possível discriminar as pessoas não vacinadas, e parafraseou o presidente: “Às vezes é melhor perder a vida do que perder a liberdade”, disse Queiroga. Também em guerra contra as medidas de controle da pandemia, o então advogado-geral da União, agora ministro do STF, André Mendonça, chegou a defender durante uma sessão do Supremo que missas e cultos presenciais não poderiam ser proibidos porque “cristãos estão sempre dispostos a morrer para garantir a liberdade de religião e de culto”, defendeu Mendonça.
A agência de checagem “Aos Fatos” catalogou as declarações do presidente desde a posse, e ao selecionar as falas mais repetidas até hoje, a primeira da lista, dita mais de 200 vezes, é: “Não há corrupção no meu governo”. Sinal claro de que Bolsonaro teme perder o cargo e com o fim da imunidade parlamentar acabar sendo punido. Pelo menos duas denúncias foram reveladas e estão sendo investigadas: os escândalos envolvendo a compra da vacina covaxin e a influência de pastores que pediam propina para liberar verba do ministério da Educação.
Em segundo e terceiro lugares entre as declarações mais repetidas pelo presidente estão mentiras com fundo negacionista sobre a pandemia. Repetiu mais de 120 vezes que foi impedido de agir pelo Supremo no combate ao vírus porque as decisões ficaram a cargo apenas de governadores e prefeitos, o que não é verdade. Aqui o presidente usa o discurso de ódio para atacar inimigos, o STF e governadores, e ainda tenta se livrar da culpa pelas mais de 660 mil mortes provocadas pela doença no Brasil, segundo maior número absoluto do mundo, só perde para os Estados Unidos. A terceira declaração mais repetida por Bolsonaro, ao menos 103 vezes, foi que “sempre defendeu vidas e empregos”, para minimizar as muitas oportunidades em que desrespeitou a família das vítimas, deixando claro não estar nem aí para as mortes por coronavírus.
O presidente da República falou contra o lockdown, a vacina, a máscara e a favor de uma perigosa imunidade de rebanho que lançou muita gente para o contato com o vírus e também para a morte. Em suas declarações mais frequentes, ao dizer que o isolamento social não funcionava, por exemplo, Bolsonaro foi um dos principais vetores da desinformação que custou vidas na pandemia. O que comprova o dano que pode ser causado em todas as esferas do ecossistema da desinformação (WARDLE, 2017)[1] em que as pessoas se deixam enganar, entre outras coisas, também porque ainda não dominam ou se interessam minimamente por ferramentas de checagem dos fatos.
Chamar isso apenas de notícia falsa seria uma simplificação perigosa por corroborar com a tese antidemocrática de que o culpado, em última instância, é a imprensa. Logo, os ataques a jornalistas promovidos por políticos mal intencionados poderiam parecer justificáveis. O ecossistema da desinformação (WARDLE, 2017) é bem mais complexo que isso, leva em consideração a intenção por trás do conteúdo, que pode ser falso apenas por estar fora de contexto, ou ser, por exemplo, completamente fabricado para ludibriar.
O prazo de validade da informação fica cada dia mais perecível, como consequência de uma mudança estrutural apontada pelo jornalista e professor Eugênio Bucci: a palavra impressa nos jornais perdeu lugar para a imagem, primeiro com a televisão e o cinema e agora com a internet. O espaço público foi tomado, preenchido, inundado por imagens, e elas passaram a reinar sobre o território do que é a verdade. “O espaço comum, antes mediado pelos diários, converteu-se em um imenso parque de diversões virtual e, nessa evolução, a «instância da imagem ao vivo» passou a ocupar o seu centro, o que acarretou efeitos irreversíveis sobre as formas de relato factual. A instância da imagem ao vivo instaurou-se como o oráculo da sociedade, um oráculo massificado que se apresenta como a mais alta forma de registro da dita realidade para uma civilização que terá em seus olhos o principal critério de verificação da verdade”. (BUCCI, 2009, p.69)[2]
Em seminário promovido em abril deste ano pelo grupo de pesquisa Jornalismo Direito e Liberdade da Usp, o pesquisador David Nemer falou sobre “Desinformação, desigualdades de Comunicação e Regulação” e contou como pessoas estavam sendo pagas para criar e gerenciar desinformação em grupos de apoiadores de Bolsonaro que usavam o disparo em massa de mentiras. Nemer conseguiu provar que os filhos do presidente, Eduardo e Flávio Bolsonaro, gerenciavam muitos desses grupos em que eram compartilhado conteúdo com tom golpista, a favor do fechamento do STF e com suspeitas sobre a segurança do processo eleitoral brasileiro.
O pesquisador alertou para o risco de que esse discurso golpista seja colocado em prática por uma minoria radical que ainda se alimenta dessa bolha de desinformação, o resultado seria uma versão brasileira da invasão ao capitólio, “Uma pessoa com uma arma faz um estrago grande e esses grupos tem promovido essa radicalização”. A solução para dissipar essa nuvem de poluição do debate público passa, segundo ele, por questões técnicas e sociais, como tornar mais conhecido o trabalho de agências de checagem (Lupa, Comprova, Aos Fatos) que tem ajudado muito no combate à desinformação; e cobrar ações efetivas das plataformas que, muitas vezes, não tiram do ar perfis de super compartilhadores por entender que, apesar de danosos, eles geram lucro com o engajamento. Depois do indulto, o deputado Daniel Silveira, chegou a superar Bolsonaro em número de menções e, mesmo com o perfil suspenso, burlou a decisão da justiça e postou no Twitter a palavra “testando”.
Enquanto o Supremo não se pronuncia sobre a extensão do indulto concedido a Silveira, Bolsonaro age como vencedor momentâneo do jogo de estica e pausa que ele gosta de encenar, primeiro alimenta as expectativas golpistas dos apoiadores mais fanáticos e depois finge moderação com uma pausa, um período de silêncio. Mesmo quando não fala abertamente, manda recado, por exemplo, ao levantar mais de uma vez em transmissões ao vivo um copo de leite para brindar com convidados, supostamente em nome do produtor rural brasileiro, mesmo que supremacistas brancos reconheçam esse gesto como um aceno. É o que William Safari (1929-2009) explicou sobre o apito para cachorro na política, quando declarações podem ser sintonizadas em frequência inaudível para as pessoas em geral, mas que geram um enorme rumor para quem sabe o que quer ouvir no recado.
Em cerimônia de comemoração pelo dia do exército, no dia 19 de abril, véspera da condenação de Daniel Silveira pelo Supremo, o comandante Marco Antônio Freire Gomes foi o primeiro a falar. Saudou o comandante supremo das Forças Armadas, Jair Bolsonaro, e leu, com uma tensão visível, a frase que seria repetida em seguida pelo presidente em uma jogada pouco ensaiada, “O cidadão ao respeitar e valorizar seus soldados, em essência está investindo na garantia do seu bem maior, a sua liberdade”, ao que Bolsonaro completou, “as Forças Armadas não dão recado, elas estão presentes, elas sabem como proceder, sabem o que é melhor para o seu povo, o que é melhor para o seu país. Elas têm participação ativa na garantia da lei e da ordem, da nossa soberania e do regime ao qual o povo quer viver. E nós sabemos que esse regime, acima de tudo, é a nossa liberdade. Porque todos sabem que um homem ou uma mulher sem liberdade não vive”, exatamente como diria o deputado Silveira dias depois, no primeiro de maio. Bolsonaro segue apitando e, na frente do presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Luiz Fux, levanta suspeita sobre a lisura do processo eleitoral, “e todos sabem, prezado deputado Arthur Lira (presidente da Câmara), prezado senador Rodrigo Pacheco (presidente do Senado), que a alma da democracia repousa na tranquilidade e na transparência do sistema eleitoral, sistema esse que deve ser cada vez mais zelado por todos nós, e quem dá um norte para nós são as urnas, que ali fazem surgir não só o presidente da República, bem como a composição do nosso parlamento brasileiro. Não podemos jamais termos uma eleição no Brasil que sobre ela paire o manto da suspeição, e esse compromisso é de todos nós”, conclui Bolsonaro.
Quando o apito é mais alto, como lançar lemas de campanha que reproduzem slogans da Alemanha nazista, “Alemanha acima de tudo” ou “O trabalho liberta”, Bolsonaro é criticado abertamente, mas nada acontece. Quando repetidas vezes questiona a segurança das urnas ou fala qualquer absurdo habitual, parece lutar para dominar constantemente o debate na esfera pública e pautar as manchetes com suas declarações quando o momento não está muito favorável ao seu governo. Pelo menos disse uma verdade inegável em discurso depois de encontro com parlamentares no último dia 28, reclamando do ministro Barroso, disparou, “mente o ministro Barroso quando diz que [o processo contra Felipe Barros] é sigiloso. Mente. Uma vergonha. Para as Forças Armadas, se o militar mente, acabou a carreira dele, o cabo não sai sargento, o subtenente não sai tenente, o coronel não sai general, não tem prescrição para isso. E temos um chefe do Executivo que mente”, admitiu Bolsonaro.
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Notas:
[1] WARDLE, Claire; DERAKHSHAN, Hossein. Information Disorder – Toward an interdisciplinary framework for research and policy making. Disponível em: https://bit.ly/2J25r1N. Publicado em 27/09/2017. Acessado em 22/11/2020.
[2] BUCCI, Eugênio. Em torno da instância da imagem ao vivo. Revista Matrizes, vol. 3, nº 1, 2009.
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Lana Canepa, jornalista especialista em política pela Universidade de Brasília (UnB), âncora do Jornal da Band e integrante do grupo de pesquisa Jornalismo Direito e Liberdade (JDL) vinculado à Escola de Comunicações e Artes da USP.