Independentemente de como for escrito o epílogo da história da inelegibilidade do ex-presidente da República Jair Bolsonaro (PL), o conjunto de malfeitos cometidos durante o seu governo o expulsou da história política do Brasil para a policial. Nos segundos seguintes ao assumir o seu mandato, em 2019, ao contrário do que fazem todos os eleitos, que é começar a trabalhar pela sua reeleição, ele começou a articular um golpe de estado. É essa a história que conta o voto a favor da inelegibilidade do ex-presidente dado pelo ministro relator do processo, Benedito Gonçalves, do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). O presidente do partido do ex-presidente, Valdemar Costa Neto, acredita que seja qual for a situação de Bolsonaro ele tem bala na agulha para influenciar nas eleições municipais de 2024. Será?
Só o tempo responderá a essa pergunta. Não vou especular sobre esse assunto. Se fosse bom em adivinhação já tinha ganhado a Mega-Sena. A minha preocupação como repórter é outra. É saber como as coisas aconteciam entre as quatro paredes do governo Bolsonaro. Vou começar pelo episódio que gerou o processo de inelegibilidade no TSE. No dia 18 de julho de 2022, embaixadores de 72 países foram convocados para uma reunião com o então presidente Bolsonaro. Na reunião, ele denunciou, sem provas, a existência de fraude nas urnas eletrônicas e na Justiça Eleitoral. De quem foi a ideia dessa reunião? Saiu da cabeça do presidente? Olha, o presidente da República é cercado por uma série de assessores, incluindo advogados. Nenhum o avisou que estava cometendo um crime? O general da reserva Braga Netto era ministro da Casa Civil e fazia parte do círculo íntimo de líderes que rodeavam o presidente. Nas entrelinhas das matérias que temos publicado está lá com todas as letras a suspeita de que a ideia desse encontro tenha sido do general, que foi vice na chapa de reeleição de Bolsonaro. Tenho dito e escrito que todos esses crimes que são atribuídos ao ex-presidente não são só dele. Os seus ministros também são responsáveis. Até agora o único ex-ministro que se enrolou com a Justiça Federal foi o delegado da Polícia Federal (PF) Anderson Torres, que era titular da Justiça e Segurança Pública. Torres está em liberdade vigiada. Lembro aos colegas que o governo Bolsonaro montou um esquema para dar a impressão de que as Forças Armadas estavam governando o país. Colocou 6 mil militares da ativa, reserva e inativos na máquina administrativa federal. Baixou um decreto permitindo que o teto dos funcionários públicos federais, em torno de R$ 40 mil, pudesse ser furado ao somar o soldo dos militares nas Forças Armadas com o salário que recebiam no exercício do seu trabalho no governo. Essa gambiarra abriu caminho para que fossem erguidos acampamentos por bolsonaristas radicalizados na frente dos quartéis das Forças Armadas – há matérias na internet. Foi de um desses acampamentos, na frente do quartel-general do Exército em Brasília (DF), que partiram os radicais que em 8 de janeiro quebraram tudo que encontraram pela frente nos prédios do Congresso, do Palácio do Planalto e do Supremo Tribunal Federal (STF).
As Forças Armadas nunca estiveram no governo. A construção perante a opinião pública da ideia de que os militares estavam no governo aconteceu ao acaso ou foi planejada para ter o apoio da população em um golpe de estado? Repetindo o que aconteceu em 1964, quando os militares deram um golpe e ficaram no governo até 1985. Pelo que tenho lido, salvo se algum colega publicou e não vi, pouco sabemos sobre a construção dessa farsa de que os militares haviam voltado ao poder. A construção dessa imagem foi importante porque serviu para manter mobilizados os bolsonaristas raiz depois da derrota do ex-presidente para Luiz Inácio Lula da Silva. E até hoje ainda existe a pregação de bolsonaristas de que as Forças Armadas pretendem dar um golpe de estado. Há outra história que precisamos olhar de perto. Trata-se da privatização da Eletrobras. O presidente Lula vive reclamando que o governo ficou com a maioria das ações, mas não tem direito a voto decisório. Para não ficar o dito pelo não dito é preciso lançar luzes nesse processo de privatização. Um dos especialistas nesse assunto é o ex-ministro de Bolsonaro e hoje governador de São Paulo (SP) Tarcísio de Freitas, Ele deu opinião ou participou do processo de privatização da Eletrobras? Insisto que o ex-presidente não fez todos os malfeitos sozinho. As pessoas que participaram do seu governo também têm a sua parcela nesses episódios, especialmente no Ministério da Saúde. Há um documento de 1,3 mil páginas com as conclusões da Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado sobre a Covid-19 (CPI da Covid) que coloca as digitais de Bolsonaro e do Ministério da Saúde na morte de mais de 700 mil brasileiros pelo vírus.
É mais fácil analisar o que aconteceu no governo Bolsonaro como estivéssemos redigindo uma matéria sobre assuntos policiais. E facilita a vida do leitor. A relação do ex-presidente com os militares que estiveram no seu governo não tem nada a ver com ideologia, camaradagem ou qualquer outra coisa que não fosse dinheiro. Foi o orçamento secreto que manteve a fidelidade dos deputados, especialmente os do Centrão, ao governo de Bolsonaro. Seja lá para qual lado se olhar, vamos encontrar o dinheiro sendo o principal motivo das alianças, como no caso das pautas de costume, como o aborto.
Publicado originalmente em “Histórias Mal Contadas”.
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Carlos Wagner é repórter, graduado em Comunicação Social — habilitação em Jornalismo, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul — Ufrgs. Trabalhou como repórter investigativo no jornal Zero Hora (RS, Brasil) de 1983 a 2014. Recebeu 38 prêmios de Jornalismo, entre eles, sete Prêmios Esso regionais. Tem 17 livros publicados, como “País Bandido”. Aos 67 anos, foi homenageado no 12º encontro da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI), em 2017, SP.