Como a patricinha Poppy que leva uma vida de princesa em Malibu, em Garota Mimada (2008), o Congresso Nacional não aceita ser contrariado. Na quarta-feira (13), o Senado aprovou o texto-base do projeto de lei com novas regras para o uso de emendas parlamentares, que são recursos indicados por deputados e senadores e utilizados para a realização de obras e projetos em seus redutos eleitorais. A matéria concede R$ 11,5 bilhões para as emendas de comissão, herdeiras do orçamento secreto. O projeto é uma tentativa dos parlamentares de destravar as emendas, cujo pagamento está suspenso desde agosto pelo Supremo Tribunal Federal (STF). No papel de pai de Poppy, que “pune” a filha rebelde ao mandá-la para um colégio interno na Inglaterra – privilégio para poucos abastados –, a Corte tenta impedir que as emendas parlamentares sejam utilizadas sem transparência e rastreabilidade, o que, convenhamos, é o mínimo que se pede na utilização do recurso público.
Sob os olhos de toda sociedade, a sanha do Congresso no controle do dinheiro público nunca foi encarada com a devida seriedade, contando, inclusive, com a permissividade do Executivo, que sempre utilizou o orçamento como moeda de troca para conquista de interesses próprios. Com o passar dos anos, contudo, fica cada vez mais evidente que se algo não for feito, as relações de força entre os Poderes ficarão cada vez mais inclinadas para o lado do Congresso, fragilizando o sistema de freios e contrapesos no qual as diferentes funções desenvolvidas pelo Estado precisam se autorregular. A questão que fica nesse momento é: existe algo que ainda possa ser feito?
O avanço do Congresso sobre o orçamento federal na forma de emendas parlamentares não é nenhuma novidade na história da política brasileira. O modelo de sistema orçamentário atualmente em vigor no Brasil está previsto na Constituição Federal de 1988. Apesar de ser de responsabilidade do Executivo, o seu processo de elaboração está baseado no equilíbrio e na coparticipação entre Executivo e Legislativo. Esse equilíbrio, contudo, vem sendo modificado e descaracterizado ano após ano, sobretudo após o escândalo de corrupção conhecido como “anões do orçamento”, de 1993, revelado pela revista Veja e que tem semelhanças com o orçamento secreto.
Em 2015, aproveitando a fragilidade da então presidente Dilma Rousseff, o Congresso aprovou as emendas individuais impositivas, que passaram a ser obrigatórias. Já em 2019, durante o mandato do presidente Jair Bolsonaro, as emendas de bancadas estaduais também se tornaram obrigatórias, seguindo as mesmas regras das individuais. Essas duas modificações já prejudicaram de forma considerável as relações políticas entre os Poderes. O maior retrocesso, entretanto, veio em 2020, quando a emenda de relator, que serviu aos “anões do Orçamento”, foi retomada, não apenas reforçando as regras quanto ao processo de emendas individuais, mas também tornando obrigatória a execução de emendas de comissões permanentes da Câmara, do Senado e mistas do Congresso, além do relator-geral do projeto orçamentário – o chamado orçamento secreto.
Manchete de O Estado de S. Paulo do dia 11/11 apontou – em letras garrafais: “Controle do Orçamento pelo Congresso no Brasil é maior do que em países da OCDE”. A reportagem principal do caderno de Política do Estadão mostrou que o porcentual dedicado às emendas no Brasil é mais que o dobro do segundo colocado, a Alemanha, e o Congresso hoje dispõe de poderes que não existem em nenhum outro lugar, segundo estudo elaborado pelo pesquisador do Insper Marcos Mendes e pelo ex-secretário do Orçamento Federal Hélio Tollini. Do começo de 2021 até agora, deputados e senadores destinaram R$ 131,7 bilhões em emendas parlamentares de todos os tipos. O montante é 87% maior do que o indicado nos quatro anos anteriores (2017-2020), de acordo com o jornal.
Dois dias depois, na quarta-feira (13/11), uma das chamadas de capa de O Globo apontou que o impasse entre os Poderes criado a partir da falta de transparência e do mau uso de emendas parlamentares se acentuou, na terça-feira (12/11), com a divulgação de conclusões da Controladoria-Geral da União (CGU) sobre o emprego desses recursos. A CGU identificou que sete organizações não governamentais (ONGs) beneficiadas com R$ 482,3 milhões em emendas parlamentares, entre 2020 e 2024, não têm capacidade técnica para executar os projetos para os quais receberam os recursos. No mesmo dia, o ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal (STF), manteve a decisão de suspender a execução dos repasses.
O ministro, aliás, vem exercendo um papel importante nesse caso. Desde que assumiu a relatoria da ação do orçamento secreto, em abril, após a aposentadoria da ministra Rosa Weber, Dino vem tomando medidas na tentativa de assegurar o cumprimento da decisão do STF que derrubou o orçamento secreto, no fim de 2022. Em abril mesmo, o ministro intimou o presidente Lula e os presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSDMG), a se manifestarem sobre um possível descumprimento da decisão da Corte. A intimação foi feita a partir de manifestações da Associação Contas Abertas e da Transparência Internacional Brasil, partes interessadas no processo. As entidades pediram, ainda, uma manifestação célere do Supremo sobre o tema, em decorrência das eleições municipais deste ano. Para ambas, a proximidade do pleito aumentaria os riscos de que recursos capturados do orçamento público seriam destinados para beneficiar candidaturas específicas apoiadas por parlamentares federais, violando o direito de livre escolha pelos eleitores e eleitoras.
Em agosto, após realizar uma audiência de conciliação com o Congresso Nacional, o governo federal, o Tribunal de Contas da União (TCU) e o Ministério Público Federal, na qual determinou mais transparência nos gastos federais com emendas parlamentares, o ministro Flávio Dino suspendeu todas as emendas impositivas apresentadas por deputados e senadores até que o Congresso edite novas regras para que a liberação dos recursos seja transparente e rastreável.
Ainda assim, os dias subsequentes às eleições trouxeram várias reportagens que comprovaram que a preocupação das entidades fazia sentido. No dia 29 de outubro, três dias após o 2º turno, O Globo disse: “Emendas Pix irrigam reeleição em 105 das 112 cidades com mais verbas.” Segundo o jornal, o resultado do segundo turno das eleições municipais confirmou o impacto das emendas Pix, questionadas no STF, no pleito. Dos 112 municípios que mais receberam recursos desse tipo e onde o prefeito tentou a reeleição, 105 se sagraram vitoriosos, um índice de 93,7%. Como o projeto de autoria do deputado Rubens Pereira Jr. (PT-MA) aprovado no Senado, na quarta-feira (13), sofreu alterações, ele voltará para a Câmara depois que os senadores tiverem analisado o projeto de forma definitiva. Dino será responsável por avaliar se as exigências foram cumpridas.
Em seminário que discutiu o combate a corrupção, realizado no início deste mês, o jurista Miguel Reale Jr. afirmou que o Legislativo sequestrou do Orçamento do país por meio das emendas parlamentares. Para o ex-ministro da Justiça, se já é difícil para o Executivo cumprir seu papel com as despesas obrigatórias, com esse sequestro de receita por parte do Legislativo, o Executivo fica com as mãos atadas. Agora, seus colegas de profissão, além do próprio ministro Flávio Dino, precisam fazer algo para que o orçamento volte a ser instrumento de ação política e administrativa do Executivo. O Legislativo seguirá com amplos poderes, mas é preciso impor limites maiores do que os impostos pelo pai de Poppy à patricinha de Malibu.
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João Pedro Fragoso Schleder é Pós-graduado em Ciência Política pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) e jornalista com 15 anos de experiência.