Tuesday, 03 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

Em busca do axé perdido

(Foto: Reprodução “Uma Noite no Rio”)

Axé é uma palavra que quase todo brasileiro reconhece, e sua origem iorubá está associada a energia, poder e força de realização presentes nos seres e nas coisas. Diz respeito também às tradições das religiões de matriz africana, como a força mágica que sustenta os terreiros e os rituais. O neurocientista Sidarta Ribeiro, na Folha de S.Paulo (17/05), escolheu a palavra para indicar a necessidade de um projeto de reconstrução à luz da ciência, da educação e da cultura. Numa época em que os símbolos da brasilidade foram sequestrados pelo nacionalismo tacanho dos grupos de apoiadores de Bolsonaro, é necessário encontrar um outro desenho de nação que está, justamente, nos elementos negados pelo governo atual: ciência, educação e a arte.

O filósofo italiano Giorgio Agamben afirma que o poeta é o contemporâneo e encontra sua fonte numa dissociação com o presente, para ver nele não as luzes mas as trevas. É pela memória que acessamos uma linguagem nova para dar sentido a um outro real. Axé é uma palavra que não está no vocabulário neofascista desses tempos e aponta, com o significado amplo da proposta de Sidarta, o caminho de uma nova linguagem que, paradoxalmente, pode estar nos fios do passado, obscurecidos nessa bruma triste dos dias atuais. Os anos 1960 — e não só — foram um período de linguagens potentes para expressar nossos dilemas, contradições e esperanças. O tropicalismo, o teatro oficina, o cinema novo, o cinema marginal, a poesia concreta, o jornalismo de tom coloquial do Pasquim e outras experiências da imprensa alternativa e expressões culturais, são modelos de resistência que definiram nossa singularidade como brasileiros. Alguns dos artistas desse período nos deixaram recentemente e legaram obras que seguem alimentando nosso espírito.

Não é difícil enxergar as trevas no tempo presente. O tom de Sidarta está longe de um otimismo ingênuo, mas parte da constatação de que os que sobreviverem terão de ir em frente. O neurocientista usa a imagem de um carro em alta velocidade e em pleno capotamento como metáfora para o atual contexto brasileiro. Estamos no meio do acidente, sem saber ao certo o alcance de suas graves consequências. Depois de cinco séculos de capitalismo predatório, a conta veio para todo o planeta.“Nossos instintos ancestrais de acumulação e opressão precisam simplesmente desaparecer, sob pena de prejudicar irremediavelmente todos os que vieram depois de nós”, escreve Sidarta. Ele enumera algumas verdades factuais. A União Europeia lançou uma iniciativa internacional para financiar o desenvolvimento de vacinas e tratamentos contra o coronavírus e o Brasil, até agora, ficou de fora. Faltam EPIs, enfermeiros adoecem e morrem. Negacionistas e sabotadores roubam a cena e as mortes só aumentam. “Nosso 7 a 1 é sanitário, intelectual, moral, emocional e — por que não dizer — espiritual”, conclui.

O cientista lembra que a saída desse atoleiro demanda “o resgate da alma brasileira”, numa dimensão amorosa, solidária e criativa. “O mundo precisa do nosso axé.” Faz lembrar Darcy Ribeiro e a esperança na brasilidade cultural, como um soft power perdido. Impossível não lembrar de Gil cantando com Kofi Annan no plenário da ONU, em 2003 e 2009. Entre aquela promessa de um lugar para o Brasil como experimento criativo e colaborativo para um novo arranjo mundial de eixo pós colonial que nos fizesse revisitar nossa própria violência por um outro prisma, fomos impactados por um real avassalador, colocando no poder um governante que é um pária. Estamos em pleno capotamento e nos perguntando se faltou revisão no carro, se o motorista é um sem noção ou todas essas coisas juntas.

A metáfora do carro nos faz olhar para o retrovisor, reconstituindo os momentos anteriores ao acidente. Na piauí, Fernando de Barros e Silva volta ao papel do jornalismo nas eleições de 2018.

“Naquela época, a imprensa dizia — com falsa isenção, com falso espírito crítico, com uma equidistância que só ela, na sua miopia de classe, conseguia enxergar e, sim, com uma dose intolerável de cinismo — que estávamos diante de dois “extremos” igualmente perigosos, diante de uma “escolha difícil”, diante de duas ameaças à democracia. Aqui estamos hoje. Não venham agora, por favor, com a ladainha de que Bolsonaro passa e as instituições permanecem. É justamente o contrário o que está se desenhando no horizonte muito acanhado ou no horizonte nenhum que temos pela frente.”

As revisões históricas a serem feitas quando a onda passar vão se debruçar sobre essa normalização do que era absurdo por setores expressivos da imprensa. Pelo bem de nosso jornalismo, precisamos enfrentar essa crítica.

Os velhos tropicalistas com sua herança antropofágica apontam alguma esperança. José Celso Martinez Corrêa, em live na Folha de S.Paulo, assegura: o vírus é ele, enquanto lembra de textos de Nelson Rodrigues sobre os anos pós gripe espanhola. O carnaval de 1919 em que o pudor foi enterrado e celebrou-se a liberdade da vida, ao som de Carmem Miranda cantando os versos de Assis Valente: “anunciaram e garantiram que o mundo ia se acabar.” O Bruxo de Araraquara invoca as forças do axé para tirar o vírus do palácio, mesmo que sem ir às ruas. Haveremos de encontrar um caminho de mobilização popular pelas redes, desafia. Penso numa imagem do povo nas sacadas e janelas cantando os versos de “O Bêbado e a Equilibrista”, como um grande coral que saudasse a saída de Bolsonaro pelas vias institucionais, enquanto nossas forças da ciência, da arte e da filosofia encontrassem uma nova linguagem para novos tempos. E fôssemos capazes de viver o luto de todos os nossos mortos, com dignidade e reconhecimento dos erros pessoais e coletivos.

O episódio “Leveza”, do Greg News, nos conecta com essa força. O debate é sobre os grandes artistas brasileiros que nos deixaram sem uma palavra de reconhecimento do estado. Flávio Migliaccio, Aldir Blanc, Sérgio Sant’Anna, Rubem Fonseca, Moraes Moreira. Num momento em que muito da nossa sanidade mental e espiritual diante de tantos desencontros e desesperança, vem da arte, da música, da literatura que buscamos nas redes, Regina Duarte se mostra insensível ao próprio campo de onde surgiu e protagoniza cenas que ficarão como retrato cruel desses tempos. Não se trata de um obituário, como ela considerou na entrevista à CNN, mas de viver o luto, reconhecer o lugar desses artistas. Axé é também reverenciar nossa cultura e ancestralidade, reconhecer o esforço de artistas que se mobilizam nas redes para nos legar um alimento coletivo para a alma. Muitos deles sem fonte de renda e sem nenhum esboço de proteção do estado. E não se trata apenas dos famosos, mas de toda a cadeia produtiva que há em torno do teatro, da música, do cinema. A ideologia cega da extrema direita é incapaz de perceber as atividades culturais e criativas, assim como a biodiversidade da Amazônia e o desenvolvimento da ciência, são arranjos de uma nova economia para o século XXI.

Uma canção tropicalista de Tom Zé agrega lirismo ao humor informativo do Greg News. “Menina, amanhã de manhã” foi composta como crítica à ditadura militar: “Menina ela mete medo, menina ela fecha a roda, menina não têm saída, de cima, de banda ou de lado”. Mas seu sentido também indica o caminho da arte para um outro real: “Menina, amanhã de manhã, quando a gente acordar, quero te dizer que a felicidade vai, desabar sobre os homens, vai desabar sobre os homens.” Difícil vislumbrar essa esperança em pleno acidente. Mas enquanto aguardamos o carro se estabilizar, vamos nos conectando à força dos nossos dedicados profissionais da saúde, os homens da ciência, os artistas, os que trabalham para informar e educar e as associações comunitárias que tentam minimizar os efeitos da pandemia nas periferias. Haveremos de romper o silêncio cantando das nossas sacadas e janelas as canções que nos comovem. A versão de “Menina, amanhã de manhã”, por Gregório Duvivier e seus familiares, é um exemplo. Desses retalhos, começaremos a tramar, quem sabe, um outro projeto de Brasil que nos tire do fundo desse poço. E não há saída, ele passa pela ciência, pela arte e pela educação. Axé.

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Pedro Varoni é jornalista.