Wednesday, 25 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Está havendo uma islamização da esquerda?

Neste quase fim de dezembro, talvez valha fazer um balanço retrospectivo dos meus textos publicados aqui no Observatório da Imprensa, não só neste 2023 como nestes últimos cinco anos. É o caso do comentário publicado em 15 de janeiro de 2019, sob o título “Charlie Hebdo e a volta do obscurantismo”.

Os jornalistas sobreviventes do massacre da redação satírica da revista no 7 de janeiro de 2015, por dois jihadistas islâmicos fanatizados, fizeram um número especial em memória dos onze caricaturistas e redatores assassinados por rajadas de kalashnikov. E eu comentava a capa da edição especial do Charlie Hebdo, na qual um cardeal e um imã muçulmano sopram na chama de uma vela para permitir o retorno ao obscurantismo. E lembro que, por uma coincidência, no mesmo dia do massacre dos caricaturistas por terem publicado uma capa com Maomé, tinha sido lançado em Paris um livro do escritor Michel Houellebecq com o título “Submissão”.

Submissão é a palavra mais ouvida na igreja e nos minaretes e significa a sujeição completa do fiel crente a Deus, Jesus ou Alá. O livro, hoje com nove anos, é bastante atual na sua maneira de contar a islamização francesa: na eleição presidencial de um político muçulmano carismático nas periferias, onde há uma predominância de descendentes da imigração muçulmana, que chega ao segundo turno. É algo já conhecido no Brasil, o populismo político-religioso que elegeu Bolsonaro.

Na ficção política do escritor francês, o líder carismático dirige um novo partido “a Irmandade Muçulmana” e deve enfrentar, no segundo turno, a candidata da Frente Nacional, Marine Le Pen. Diante do risco Le Pen, o partido do centro e os socialistas ajudam a eleger o muçulmano que, logo depois, muda a Constituição francesa, introduz a teocracia islâmica, reduz as liberdades femininas com o patriarcado e introduz a poligamia. O livro foi sucesso de livraria e na Amazon em 2015, com tradução brasileira pela colega jornalista Rosa Freire de Aguiar. E foi logo taxado pela esquerda como islamofóbico -ou seria premonitório?

Há cinco anos, eu contava que todos os anos, no Conselho de Direitos Humanos, os representantes dos países árabes tentam criar o delito de ofensa ou desrespeito à religião, uma espécie de censura oficial para proteger todos os símbolos religiosos. E, um dia desses, é provável, o clero católico e evangélico darão apoio aos muçulmanos acabando com a liberdade de expressão e restabelecendo a censura e o retorno aos mitos religiosos.

Não é preciso ir ao Oriente Médio para ver isso – os EUA estão divididos, sendo cada vez maior a força dos evangélicos fundamentalistas, mudando inclusive leis em favor das mulheres e homossexuais. A temida vitória de Trump será a sacralização do populismo religioso. No Brasil, a quebra dos princípios básicos da laicidade pode ocorrer numa reaproximação política com os evangélicos, defendida de novo junto ao PT por Lula que, no passado, favoreceu a multiplicação das congregações evangélicas e criou a Marcha para Cristo.

O tema da atual perda gradativa da importância do princípio da laicidade, mesmo dentro da esquerda, é vasto. Alguns sintomas são evidentes – o parlamento dinamarquês decidindo punir quem queimar livros religiosos, no caso o Corão, em atenção aos protestos dos países muçulmanos. Ou a pressão sobre o governo belga, pelas comunidades muçulmanas, para anular a obrigatoriedade do curso de educação sexual nas escolas secundárias.

Mas não é só isso: na França, o atentado do Hamas contra civis desarmados dividiu os partidos de esquerda, pois alguns líderes como Jean-Luc Mélenchon não queriam qualificar o ato como terrorista, para não contrariar os eleitores de origem muçulmana, vindos com a imigração. O conceito de laicidade já não tem o mesmo apoio nem na própria França.

Uma parte da esquerda, brasileira inclusive, deixa a dúvida se apoia o povo palestino ou a organização islâmica Hamas, esquecendo-se dos antigos refrões tipo “religião é o ópio do povo” para não ofender seus novos aderentes recrutados na luta contra o imperialismo. Esquecendo-se também de que o islamismo é tão opressor ou mais opressor que o cristianismo na Idade Média, com sua teocracia, seu patriarcado que inferioriza as mulheres, suas duras leis contra o homossexualismo.

Ainda há duas semanas, num dos canais de prestígio da esquerda, um professor de sociologia, citava com entusiasmo a República do Irã como exemplo de luta contra o imperialismo. Nas centenas de mensagens de apoio ao professor, não vi nenhuma se lembrando do assassinato pela polícia iraniana das jovens Mahsa Amini, Asra Panahi por não terem colocado direito o véu na cabeça, símbolo da submissão das mulheres. Ninguém também se lembrou de Narges Mohammadi, prêmio Nobel da Paz, militante pelos direitos humanos contra a opressão das mulheres no Irã.

O professor, sociólogo de esquerda e entusiasta iraniano, também não fez comentários sobre a teocracia islâmica, deixando evidente sua aplaudida islamofilia.

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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro sujo da corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, A rebelião romântica da Jovem Guarda, em 1966. Foi colaborador do Pasquim. Estudou no IRFED, l’Institut International de Recherche et de Formation Éducation et Développement, fez mestrado no Institut Français de Presse, em Paris, e Direito na USP. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.