Redação de jornal foi, é e vai continuar sendo um lugar onde as novas gerações de jornalistas chegam e já encontram circulando frases que ninguém nunca parou para pensar o que realmente elas significam. E as usam em seus textos. Quando a minha geração entrou na redação, em 1979, era recorrente a frase: “O preço da liberdade é a eterna vigilância”. O que significava na época? Era o seguinte. O mundo vivia a Guerra Fria (1947 a 1991), um conflito ideológico entre os capitalistas, Estados Unidos e seus aliados, e os socialistas, a União Soviética e seus parceiros. Os dois lados tinham um arsenal nuclear com a capacidade de destruir o mundo várias vezes. Por conta desse poderio, eles se vigiavam 24 horas por dia. A vigilância era feita por tropas militares, agências de espionagem e satélites que espreitavam terra, mar e ar. A frase se encaixava nesse contexto. Com o término da Guerra Fria, acordos foram feitos, muitas armas nucleares foram desativadas e o mundo entrou em uma nova era, em que vários países aderiram à democracia, entre eles o Brasil, que era aliado dos Estados Unidos e governado por uma ditadura militar (1964 a 1985). Nessa nova era, a frase “o preço da liberdade é a eterna vigilância” desapareceu dos textos jornalísticos.
Depois de uma longa ausência, a frase voltou a ser usada nas entrelinhas dos textos jornalísticos. Para quem não é jornalista, “entrelinhas” é uma maneira dos repórteres descreverem uma situação utilizando palavras que não dizem explicitamente o que elas significam. Uma técnica que foi muito usada para escapar da censura nos tempos do regime militar. Voltando ao nosso assunto. No início de setembro, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden (democrata), durante um discurso, acusou o seu antecessor, Donald Trump (republicano), de estar conspirando contra a democracia. No meio da sua fala, Biden alertou que, apesar da democracia americana estar consolidada, ela precisa ser vigiada contra a ação de conspiradores. Citou a invasão do Congresso por apoiadores de Trump em janeiro de 2021 – há matérias na internet. Trump não inventou a técnica de corroer a democracia por dentro. O cartão de apresentação dessa técnica ao mundo foi na década de 30, na Alemanha, por Adolph Hitler, um dos criadores do nazismo. O ex-presidente americano, com ajuda do seu então assessor Steve Bannon, aperfeiçoou a técnica de corroer a democracia por dentro usando fake news e explorando pontos frágeis do sistema democrático. O presidente do Brasil, Jair Bolsonaro (PL), é seguidor de Trump e não é por outro motivo que sempre que tem oportunidade ataca a democracia brasileira. Aqui quero fazer uma reflexão com os meus colegas. Nós estamos simplesmente atirando na cara do leitor a história de corroer a democracia por dentro sem maiores explicações partindo do principio que tudo mundo sabe o que é. Não sabe, por ser um assunto complexo. Aos jovens repórteres lembro que para ajudá-los a entender o assunto existe uma enormidade de trabalhos – livros, documentários, pesquisas e outros – disponíveis sobre o processo de corroer uma democracia por dentro.
Fiz a recomendação da leitura aos colegas. Mas, por ter trabalhando mais de três décadas em redação, sei que o repórter está na linha de frente do noticiário e não tem tempo para longas leituras. Tal é a correria do dia a dia. Mas insisto que é importar dominar o assunto. E ficar atento à história de corroer a democracia por dentro porque um dos instrumentos que os conspiradores usam é o desconhecimento do assunto por parte do jornalista, que é acossado pelo bafo na nunca da concorrência e acaba publicando as coisas sem saber como elas chegam às suas mãos. Lembro o caso da Operação Lava Jato, em que o então juiz federal Sergio Moro e seu aliado, o ex-procurador da República Deltan Dallagnol, vazavam informações para os seus escolhidos na imprensa sobre os casos de corrupção e, com isso, conseguiram construir uma narrativa na opinião pública a favor dos seus interesses políticos. Os quais não têm nada a ver com a justiça. É consenso entre os pesquisadores que a Lava Jato aplainou o caminho para a eleição de Bolsonaro em 2018. Tanto que Moro abandonou a carreira de magistrado para ser ministro da Justiça e Segurança Pública. Ele depois brigou com o presidente e abandonou o governo – há matérias na internet.
Para arrematar a nossa conversa. Hoje a frase “o preço da liberdade é a eterna vigilância” se encaixa nesse contexto de conspiradores tentando corroer a democracia por dentro. Não lembro de ter usado alguma vez essa frase em minhas matérias. Não gosto dela porque me lembra a ditadura militar. Como todo velho repórter estradeiro, eu tenho as minhas manias. Muitas delas irracionais. Encontrei na internet a explicação de que a frase foi criada pelo orador irlandês John Philpot (1750 a 1817) e que teria sido usada por Thomas Jefferson, um dos autores da Declaração da Independência dos Estados Unidos (1776). Usei a história da frase para refletirmos sobre o que vem por aí. Baseado nas informações que temos, podemos arriscar um perfil das dificuldades que serão enfrentadas por aqueles que forem eleitos no próximo dia 2 de outubro. Elas são enormes, como solucionar o problema dos 30 milhões de brasileiros que estão passando fome. Uma coisa é certa. A história de corroer a democracia por dentro veio para ficar. Ela não é um modismo. Mas uma nova maneira de fazer política. Cada vez mais candidatos aos parlamentos vão usar o esculacho para serem conhecidos do grande público. Lembro os colegas que assim como o celular facilitou uma enormidade a nossa vida de repórter, ao ponto de hoje a guerra entre Ucrânia e Rússia estar sendo transmitida online, ele também deu acesso às redes àqueles que têm sonhos autoritários. Como dizia um editor dos tempos das barulhentas máquinas de escrever. Nenhum jornalista vai morrer de tédio nos dias que estão vindo por aí.
Carlos Wagner é repórter, graduado em Comunicação Social — habilitação em Jornalismo, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul — Ufrgs. Trabalhou como repórter investigativo no jornal Zero Hora (RS, Brasil) de 1983 a 2014. Recebeu 38 prêmios de Jornalismo, entre eles, sete Prêmios Esso regionais. Tem 17 livros publicados, como “País Bandido”. Aos 67 anos, foi homenageado no 12º encontro da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI), em 2017, SP.