O México, como bem sabemos, exerce de modo constante uma diplomacia em prol da não intervenção. Entretanto, no início deste ano, o que se observa é uma mudança dessa sua tradição diplomática, devido à crise ucraniana. Membro do G20 – potência econômica, energética e comercial regional –, o país ganhou uma cadeira no Conselho de Segurança da ONU impulsionado pelo bloco latino-americano, na condição de membro não permanente, de 1º de janeiro de 2021 a 31 de dezembro de 2022.
Fiel à sua tradição, o México, presidindo o Conselho de Segurança no mês de novembro de 2021, incluiu na pauta da reunião do dia 9 de novembro um tema inusitado: uma conferência acerca do impacto da “desigualdade, exclusão e corrupção” nos conflitos globais. Em seguida, convidou o Conselho para uma outra reunião, uma semana mais tarde, para tratar do tráfico e desvio de armas pequenas e leves e os subsequentes impactos disto para a segurança internacional.
Excepcionalmente, o Chefe de Estado mexicano, Andrés Manuel López Obrador (AMLO), até então indiferente ao resto do mundo e sem ter visitado país estrangeiro algum, foi a Nova York no dia 9 de novembro de 2021, até a sede da ONU, no intuito de validar sua proposta de paz universal, apresentada sob a forma de um plano de “fraternidade e bem-estar”. A corrupção gera desigualdade e conflito, defendeu ele. “Seria hipocrisia”, explicou “ignorar que o maior problema do planeta é a corrupção”. António Guterres, secretário-geral da ONU, congratulou AMLO. Os membros permanentes, tradicionalmente mobilizados pela urgência das crises e pelas ameaças de conflitos, da Síria à Ucrânia, reservaram seu julgamento.
AMLO perseverou no tema e reapresentou o projeto por ocasião da conferência virtual da América Latina-Caribe e União Europeia, realizada no dia 2 de dezembro de 2021. Nessa data, convidou os países europeus a aderirem a seu Plano Mundial de Bem-Estar e Fraternidade para acabar com a pobreza e promover a paz, que havia apresentado ao Conselho de Segurança. Desde então e em várias ocasiões AMLO e seu Secretário de Estado das Relações Exteriores, para se fazerem ouvir, repetem os termos contidos no artigo 89 da Constituição Mexicana acerca das relações exteriores: “autodeterminação dos povos, não intervenção, solução pacífica de controvérsias, recusa do uso da força nas relações internacionais, igualdade jurídica dos Estados, cooperação internacional para o desenvolvimento, respeito e proteção dos direitos humanos, luta pela paz e segurança internacionais”.
Esse ponto de vista reflete as lições aprendidas pelo México à luz de seu passado de intervenções estrangeiras, norte-americanas, francesas, que, para além de conflitos duradouros, resultaram na perda de metade de seu território. Ao longo desta história turbulenta, o México desenvolveu em resposta uma moral e uma prática diplomática de tipo defensiva. Para o México, a defesa da soberania alheia é a melhor garantia de proteção de sua própria soberania. Como AMLO enfatiza desde sua campanha eleitoral, o México defende os direitos humanos e a não interferência estrangeira, sendo um exemplo quanto a isso.
As notícias da recente escalada da crise ucraniana abalaram a cautela mexicana. Membro não permanente do Conselho de Segurança, assim como em 2003, no quadro da crise iraquiana, o México se viu forçado a sair de cima do muro. O embaixador Juan Ramón de la Fuente foi compelido a se posicionar. O México não podia mais propor a resolução da crise sugerindo medidas econômicas de longo prazo. No dia 31 de janeiro de 2022, o México apoiou o pedido norte-americano, britânico e francês para que uma reunião do Conselho fosse dedicada especificamente à crise ucraniana, votando de maneira distinta de três outros membros não permanentes, Índia, Gabão e Quênia – que se abstiveram –, e China e Rússia – que votaram contra.
Na declaração dada pelo representante do México, ele lembrou os fundamentos da diplomacia de seu país do compromisso de “evitar qualquer ato hostil de uma ou outra parte envolvida”. Ele também “reiterou a importância de respeitar a soberania da Ucrânia” e enfatizou “que não havia razão para uma solução militar”. “Os argumentos apresentados pela Rússia não nos convenceram”. Essa declaração trouxe à tona preocupações acerca do impacto que o posicionamento pró-americano do México poderia trazer para a importação de gás – e o aumento no custo dessa fatura. AMLO e México – hoje com a Ucrânia, tal como ontem em relação ao Iraque –, navegam agora entre o incontornável Caríbdis norte-americano, de um lado, e o Cila das alianças arriscadas, de outro [1].
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Notas
Texto publicado originalmente em francês, em 18 de fevereiro de 2022, na seção ‘Analyses’ do Institut de Relations Internationales et Stratégiques – IRIS, Paris/França, com o título original “Le Mexique: entre la faucille russe et le marteau américain”. Disponível em: https://www.iris-france.org/165101-le-mexique-entre-la-faucille-russe-et-le-marteau-americain/. Tradução: Thiago Augusto Carlos Pereira e Luzmara Curcino.
[1] Segundo a mitologia grega, Caríbdis e Cila foram dois monstros marinhos que ocuparam, um de cada lado, o estreito de Messina, sendo os responsáveis pelos naufrágios de embarcações nesse estreito.
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Jean-Jacques Kourliandsky é diretor do Observatório da América Latina junto ao IRIS – Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas, com sede em Paris, e responsável pela cobertura e análise conjuntural geopolítica da América Latina e Caribe. É formado em Ciências Políticas pelo Instituto de Estudos Políticos de Bordeaux e Doutor em História Contemporânea pela Universidade de Bordeaux III. Atua como observador internacional junto às fundações Friedrich Ebert e Jean Jaurès. É autor, entre outros, do livro “Amérique Latine: Insubordinations émergentes” (2014), e colabora frequentemente com o Observatório da Imprensa, em parceria com o LIRE (Laboratório de Estudos da Leitura) e com o LABOR (Laboratório de Estudos do Discurso) ambos com sede na UFSCar (Universidade Federal de São Carlos).