Não compartilhe. Não envie mensagem. Não comente. Não faça nada. Simplesmente ignore.
Essa orientação vem circulando intensamente nos grupos de militantes e simpatizantes de Lula e nas mídias sociais desde que começaram as movimentações de contestação ao resultado eleitoral, ainda na noite de domingo passado (30), com o anúncio do bloqueio das estradas pelo país afora. É uma orientação destinada ao comportamento das pessoas nas redes, mas parece ter sido adotada também pela direção das empresas jornalísticas, à exceção da Jovem Pan, que continua dando sustentação a teses golpistas.
Não é novidade: desde que as redes se organizaram, começou-se a formar uma convicção sobre essa necessidade de silenciar sobre o que o outro lado está fazendo, já que passamos a viver uma permanente guerra algorítmica – e psicológica, cuja intensidade aumenta enormemente em períodos de maior tensão como o atual – e qualquer ação, mesmo de crítica ou denúncia, serviria para impulsionar e amplificar essas mensagens. Serviria, portanto, para transformar boato em fato, concretizar balões de ensaio. Em suma: contribuiria para fazer o jogo “deles”.
Poderia fazer sentido, não fossem duas contradições. Em primeiro lugar, sempre lamentamos que não conseguimos furar nossas bolhas, que falamos apenas para nós mesmos. Nesse caso, que impacto poderiam ter nossas ações para beneficiá-los? Segundo, e talvez mais importante: se deliberadamente ignorarmos o que se passa no outro lado, como poderemos nos preparar para enfrentá-lo?
A convicção é de tal ordem que, no Facebook, mesmo em posts fechados para amigos, há quem recrimine, ao comentá-los, a simples divulgação do que se constata nas ruas – o que costuma provocar uma resposta à altura. Para quem exerce o jornalismo por conta própria, com todo o rigor que a profissão exige, o quadro é semelhante. Um exemplo: Hugo Souza, que criou o site Come Ananás e tem se empenhado exemplarmente em fornecer informações sobre as articulações golpistas desde antes do início da campanha eleitoral, vem cobrindo as manifestações na região de Resende, onde fica a Aman, e recebeu críticas de uma leitora, ao publicar, em sua página pessoal, um vídeo mostrando o bloqueio na Via Dutra, em 1º de novembro. “Não divulgo nada porque é guerra de algoritmos”, diz ela. Divulgar, isto é, noticiar: não se deve, não se pode. “Isso não faz o menor sentido”, contesta Hugo. “A guerra não é de algoritmos, a guerra é bem real”. E, a seguir: “É cansativo ter que dizer que há uma tentativa de golpe em curso que precisa ser denunciada, escancarada”. A resposta: “É público e notório, bem como a falta de apoio internacional a ela”.
Público e notório, sim, mas como seria, se ninguém tivesse publicado nada?
O papel da imprensa
Se recordarmos dos tempos pré-internet – e é preciso não esquecê-los, porque afinal de contas as coisas têm história –, o trabalho de edição jornalística sempre significou a necessidade de se fazer escolhas, destacar determinados fatos em detrimento de outros. A responsabilidade ética mandava tratar com especial cuidado informações que pudessem provocar pânico. Mas não se tratava de deixar de noticiar, e sim de calibrar a ênfase. Inversamente, o abandono da ética levava a promover balões de ensaio, lamentavelmente muito comuns. No limite, levava a ignorar a realidade, como as Organizações Globo fizeram durante a campanha das Diretas, entre 1983 e 1984. Esforço inútil, porque a campanha só fez crescer, apesar de derrotada na votação na Câmara dos Deputados.
Hoje a situação é muito distinta e o poder dessa mídia, que nunca foi absoluto, é muito menor agora. Portanto, seria apenas uma tolice adotar a mesma atitude de antes, quando se pretendia ocultar ou reduzir o alcance do que estava acontecendo. Inclusive porque essa mesma mídia, ou pelo menos parte dela, noticiou fartamente a articulação da extrema-direita no Brasil, embora não a chamasse por esse nome. Essa extrema-direita tem seus próprios canais, não precisa dessa mídia para promover o caos. Por isso, brigar com a notícia – como se ironizava antigamente nas redações – é mais que uma atitude antiprofissional, e mais que um esforço inútil: é um erro que pode ter graves consequências.
Assim, não se compreende por que, depois de noticiar o bloqueio das estradas pelos caminhoneiros – que talvez não fossem exatamente isso, como mostrou Alceu Castilho, outro incansável jornalista que atua à margem da mídia hegemônica, em seu De Olho nos Ruralistas, identificando a atuação do agronegócio nesse “levante contra a democracia” (ver aqui e aqui) –, não se compreende por que, depois de desmobilizado o bloqueio, a pauta se voltou para os detalhes da transição e para especulações sobre o que Lula fará (ou deve fazer, de acordo com o programa que essa mesma mídia, de modo geral, defende). Como se o perigo já tivesse passado, como se agora tudo voltasse aos velhos bons tempos dos acordos de gabinete.
A jornalista Ana Lagoa, aposentada mas sempre muito alerta aos acontecimentos e com larga experiência na cobertura política, apontou em sua página no Facebook o que essa imprensa deveria estar fazendo num momento desses:
“Deviam estar com as equipes na rua para apurar coisas básicas: de onde saem as ordens para irem para a rua ao mesmo tempo em 24 estados? de onde veio a ordem para cercar os quartéis? de onde vem a grana pra isso tudo? quem está transportando os ‘civis’ para os pontos marcados com os motoristas de caminhões? quem está no comando de cada grupo de PRF que fica assistindo ao – e assistindo o – espetáculo fascista? o que os filhotes do verme estão fazendo nas redes sociais desde sei lá quando e principalmente na noite de segunda para terça? enfiar a cabeça na areia não é uma boa estratégia neste momento. Corre-se o risco de ficar com a cabeça lá para sempre.”
Sobre a infraestrutura, digamos assim, gastronômica dessas manifestações, Marcos Nogueira deu sua contribuição em sua coluna “Cozinha bruta”, na Folha de S.Paulo, ao perguntar quem pagava a “churrascada dos golpistas”.
Mudanças de tática
Sobre o mais, ficamos em compasso de espera, a depender das informações que, apesar das recomendações em contrário, conseguimos obter marginalmente. Só assim podemos perceber as mudanças de discurso e tática, na tentativa de dar continuidade ao movimento golpista.
Tentemos puxar esse fio.
Primeiro, o longo silêncio de Bolsonaro após a proclamação da vitória de Lula, um silêncio que funcionou como estímulo aos bloqueios nas estradas. Depois, seu pronunciamento dúbio – que certa imprensa, sabe-se lá por quê, resolveu considerar como reconhecimento da derrota –, com o mesmo efeito. Mais tarde, o segundo pronunciamento – agora já no modelito Zelensky, como bem observou Reinaldo Azevedo, com os inequívocos sinais de vitimização e disposição à resistência próprios a essa representação –, que recomendava o fim dos bloqueios mas incentivava as demais “manifestações democráticas”. Finalmente, a sucessiva mudança de discurso, que os “patriotas” repetiam invariavelmente: primeiro o apelo à intervenção militar, depois à intervenção federal, depois exclusivamente às Forças Armadas, num progressivo movimento de afastar Bolsonaro de qualquer reivindicação, conforme os itens da cartilha distribuída para esses grupos.
O segundo discurso, que tem aparentemente prevalecido, é o que reconhece a derrota mas não a aceita, porque rejeita que o país seja governado por um “ladrão”, um “descondenado”, que não poderia sequer ter concorrido. É o argumento decorrente da declaração do ainda vice-presidente e futuro senador, general Hamilton Mourão, com a diferença de que ele não defende, pelo menos explicitamente, a possibilidade de se virar a mesa: “não adianta mais chorar”.
Diante do evidente isolamento internacional e interno de Bolsonaro, no campo da política institucional, é provável que todos esses movimentos sirvam apenas para uma demonstração de força que o beneficie, de modo a não ser sequer julgado pelos muitos crimes de que é acusado, e que possa continuar a transitar livremente para liderar essa massa de gente nessa “guerra espiritual” por “Deus, pátria, família e liberdade”. Por isso mesmo é necessário o acompanhamento jornalístico dessas manifestações: porque, antes de mais nada, elas são essencialmente golpistas – como a Folha, por sinal, ousou classificar, embora apenas por um dia –, ao apelarem às Forças Armadas para uma intervenção que contesta um resultado eleitoral legítimo. E, por isso, essas pessoas precisariam ser identificadas e punidas, para que não se sintam à vontade para prosseguir em sua escalada.
Mas, principalmente, porque não podemos nos fechar numa bolha, à semelhança do Show de Truman, famoso filme de mais de duas décadas atrás, do qual os mais novos provavelmente jamais ouviram falar. Podemos e devemos comemorar a vitória, como tão bem resumiu Gregório Duvivier na reestreia do Greg News, podemos e devemos nos divertir com os memes do patético “patriota” atracado ao caminhão, mas não podemos ignorar o que eles andam tramando. Porque, enquanto dormimos na ignorância, eles continuam a agir.
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Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora aposentada da UFF e pesquisadora do Objethos.