Não é nenhuma análise inédita, mas algo que está sendo deixado um pouco de lado entre os debates sobre os ataques do atual presidente é o fato de que, seja lá como se comporte, ele pode sair ganhando. Há quem diga que ele prega a sua base fiel, mais conservadora e extremista. Outras, que está desesperado com o fato de estar atrás nas pesquisas ou que pode vir a ser preso caso não tenha imunidade de um cargo político.
Há quem tenha apontado que Bolsonaro estudou Trump, que se baseia em seu ídolo. Trump perdeu nas urnas americanas e nunca reconheceu a derrota. Sustenta o discurso de que a eleição foi fraudada e mantém viva a chama do trumpismo. E ainda arrebanha uma série de fiéis seguidores. Com o passar do tempo, quando não mais adiantava chover no molhado sobre a eleição perdida, começou a falar no pleito de 2024, quando provavelmente será candidato. E haja vista que o atual presidente, Joe Biden, tem sofrido rejeição, poderia haver uma chance de vitória para o republicano. Isso, claro, se não vier a ser condenado, uma vez que as investigações em curso apontam que o ataque ao Capitólio foi algo orquestrado pelo então mandatário da Casa Branca e mais algumas pessoas próximas.
Parece óbvio que o presidente brasileiro deseja a reeleição. Está fazendo tudo que pode a seu alcance para isso. Desde requentar o discurso do voto impresso ou auditável, ataques ao Supremo Tribunal Federal ou aprovar auxílio emergencial que, do ponto de vista jurídico, é inconstitucional. Bolsonaro sabe que o povo brasileiro tem memória curta. Caso o aumento do auxílio não surta o efeito desejado, ele poderá dizer que já reclamava sobre a urna eletrônica muito antes das eleições. Mesmo tendo sido o tipo de votação que o tenha elegido por 30 anos.
Sustentando discursos de ódio, golpistas ou infundados, Bolsonaro sai ganhando em manter-se em evidência e conservando um rebanho fiel que crê em fraude, assim como há quem acredite que as eleições americanas foram manipuladas. Mantendo fiéis, terá quatro anos para aumentá-los contando outras mentiras e, assim, preparar-se para eleições futuras.
Do mesmo modo que se viu um ressurgimento da esquerda em países latino americanos após anos de mandatos conservadores ou extremistas, pode acontecer um retorno da direita. Assim como, no Brasil, muitos viraram à direita após três mandatos do Partido dos Trabalhadores e moldaram um sentimento antipetista, a cada golpe de Bolsonaro em pautas progressistas, mais a esquerda reagia. O mesmo pode acontecer com a direita derrotada. Eles não irão se conformar e farão tudo para voltar ao poder numa próxima eleição.
Isso se não tentarem algo mais radical antes, como um golpe de fato. Mas como um pretenso golpe militar de Bolsonaro corre o risco de virar uma quartelada e marmelada, ele usa e abusa da retórica golpista para, se não der certo agora, preparar o terreno para uma próxima. Isso pode acontecer com a ajuda parcial do jornalismo mainstream, que apesar de ter mudado um pouco, ainda se prende a conceitos amarrados ou mesmo ultrapassados.
A proliferação do “jornalismo de dois lados”, por exemplo, também conhecido como doisladismo – a ideia de que há dois lados em cada questão que merecem a mesma atenção e tempo no ar – ajudou e ajuda a sustentar atitudes racistas, anticientíficas e antidemocráticas no Brasil. De modo semelhante, quando, na ânsia de se manter a objetividade, o jornalismo dá peso igual a um lado democrático e outro totalitário, amarra-se num conceito – importante, diga-se – que não existe para dar palco a extremismo.
Algumas empresas do jornalismo tradicional, a exemplo da Folha de S. Paulo, Estadão e Globo, ainda que tardiamente, fizeram suas próprias declarações de apoio à democracia. Indiretamente, supõe-se, em resposta aos ataques do presidente a seus veículos, e aos próprios jornalismo e democracia.
Assim como diferentes pessoas, partidos, cientistas, teóricos, estudiosos, políticos, congressistas, etc, vêm advertindo há anos, o ombudsman da Folha alertou há meses: “Vai ter golpe. Passe a informação. Folha e a imprensa deveriam trocar de vez a presunção pela certeza do fato”. Ainda há tempo para prevenção? Eleições e história dirão. Sem golpe, o jornalismo também dirá.
***
Juliana Rosas é doutora em Jornalismo e pesquisadora associada ao objETHOS.