Talvez seja a hora de se começar a debater o papel dos evangélicos nos quatro anos de governo Bolsonaro e na tentativa de deformar nossa democracia, insuflando num terço da população brasileira o germe de um golpe de extrema direita.
Às vésperas do terceiro mandato de Lula, no qual sociólogos petistas e de esquerda voltarão a ser ouvidos, será preciso definir e deixar bem delimitadas as relações laicas do novo governo com as chamadas lideranças evangélicas. Porque, diante da má experiência vivida da infiltração da máquina governamental por um populismo religioso reacionário e perigoso, é preciso reafirmar a incompatibilidade de um Estado democrático laico com seitas religiosas.
Esse é um tema ao qual desejo me dedicar nos próximos comentários, embora já tenha sido um dos pioneiros a denunciar a relação espúria entre o governo Bolsonaro com o que aqui qualifiquei, em julho de 2019, de “evangelho de supermercado”, uma versão populista, distorcida do que representou no passado, no século XVI, a Reforma de Lutero e Calvino.
Comemorando, aqui no Observatório da Imprensa, os 500 anos da Reforma, dizia há cinco anos, “Quinhentos anos depois, a Reforma foi a detonadora, junto com a Renascença e a tipografia de Gutenberg, de um movimento mais vasto que, a princípio tirou de Roma o monopólio das Escrituras, consideradas como a revelação divina, mas a livre interpretação acabou por abrir o caminho ao racionalismo, ao Iluminismo e ao laicismo.
Por isso, não são só os protestantes que comemoram, mas todos que, mesmo ateus, são os herdeiros do movimento que levaria, com o passar dos séculos, à liberdade de expressão e ao desenvolvimento da cultura em todo mundo ocidental.
A Reforma foi muito além da religião que, neste começo de milênio, como previa Malraux, tenta retomar o controle da liberdade do pensar, num retorno ao fundamentalismo. O surgimento no Brasil do evangelismo vindo dos Estados Unidos, é bem a mostra desse retrocesso cultural com a revalorização dos velhos tabus, a condenação das conquistas laicas, como divórcio, aborto, homossexualismo, e a tentativa de se apossar do poder político para censurar o ensino, a cultura, agora nos museus, mas logo nos teatros, nos livros e cinema”.
Fica isso apenas como introdução, porque vou tratar agora de um tema de atualidade, embora ligado indiretamente à religião, porém, se algum lulista ou petista me lê, seria bom levar ao presidente Lula meu alerta – que não se inclua na plataforma do governo concessões e agrados aos líderes evangélicos.
Sempre achei errada e temerária a política da ex-presidente Dilma de aproximação com o auto ungido bispo da Igreja Universal, Edir Macedo, comparecendo também na inauguração religiosa de um templo e se esquecendo do seu respeito ao Estado laico. Ele a traiu na primeira oportunidade e nem poderia ser diferente, quando se trata de acordo com líder reacionário e fundamentalista.
No nosso Estado de Direito laico não deve haver lugar para concessões e ligações com Reinos ou Estados Espirituais, existentes ou imaginários, porque podem gerar distorções, desvios e custar caro, como nos custaram nestes quatro anos. Admirei a coragem e o posicionamento do pastor Henrique Vieira, que citei aqui diversas vezes. Admirei sua declaração de ser contra a criação de bancadas evangélicas ou religiosas, licenciando-se mesmo do pastorado para se dedicar à sua nova função de deputado federal eleito. Mas, me desculpem, lamento a inclusão de canto gospel na posse de Lula: religião é na igreja! Além disso, gospel é cultura religiosa de importação, criado durante a escravidão negra nos EUA. Nossa cultura é outra, devemos salvar nossa música dessa invasão religiosa, para que continue sendo profana e mantenha nossa brasilidade de povo quente e tropical.
A denúncia do colega Jamil Chade
Decidi mudar meu texto, ao ler no UOL a denúncia formulada, no começo desta semana, pelo colega Jamil Chade, sobre o clima criado dentro do Itamaraty, contra quem questionasse a política externa bolsonarista iniciada pelo ex-chanceler Ernesto Araújo. O que não impediu a criação de uma rede de resistência clandestina para conter prejuízos provocados pelo governo Bolsonaro à política externa do Brasil.
Porém, não é esse meu tema, e sim um texto do colega Chade, publicado em 6 de outubro de 2020, justamente o que provocou a instauração de uma sindicância no Itamaraty sobre vazamento de informações para o jornalista. E qual era o assunto da informação publicada no UOL?
O título “Brasil se alinha aos islâmicos e ignora projeto da ONU para proteger mulheres” falava da estranha posição do Brasil que ignorava uma resolução proposta pelo Canadá, Suécia e Uruguai, já assinada por 51 países, sugerindo proteção a mulheres e meninas em situações de crise humanitária. E lembrava que o Brasil acumulava posições polêmicas quanto aos direitos das mulheres.
É esse meu interesse neste comentário – além de não se alinhar com os outros países europeus e latino-americanos sobre a proteção das mulheres, o Brasil projetava se alinhar com os países islâmicos, nos quais as mulheres geralmente não têm direitos, para tentar mudar e esvaziar o texto da resolução. Por que o ex-chanceler Ernesto Araújo era contra a resolução da ONU? Porque temia que a abordagem desse tipo de proteção acabasse por levar ao reconhecimento do aborto e da igualdade de gênero.
Isso me levou ao site evangélico Gospel, onde o ex-chanceler definiu, na época, suas principais premissas no Itamaraty para os estudantes do Instituto Rio Branco – a fé cristã! É verdade, o ex-chanceler se notabilizou no Itamaraty também por sua defesa da fé cristã! Mas não era o único: a ministra evangélica Damares Alves levou o Brasil a participar do chamado Consenso de Genebra, onde 36 países conservadores se uniram contra o aborto.
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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu “Dinheiro sujo da corrupção”, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, “A rebelião romântica da Jovem Guarda”, em 1966. Foi colaborador do Pasquim. Estudou no IRFED, l’Institut International de Recherche et de Formation Éducation et Développement, fez mestrado no Institut Français de Presse, em Paris, e Direito na USP. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.