Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O populismo digital do presidente bufão

(Foto: Arquivo Pessoal)

Antes da presidência, a fama de Bolsonaro se devia mais a suas opiniões polêmicas do que realmente por seus feitos políticos. Nos seus 27 anos como congressista, teve apenas dois projetos aprovados. Na carreira de militar, o ‘‘capitão’’ não teve destaque, foi um militar indisciplinado e pediu para sair. Observando sua trajetória e as atrocidades ditas pelo presidente fica difícil de entender a sua eleição em 2018 e a legião de seguidores devotos que possui, mesmo após todos os retrocessos tidos no seu governo. O engajamento dos bolsonaristas é norteado por emoções intensas que beiram o fanatismo por alguns. 

Em entrevista ao Observatório da Imprensa, a autora Yvana Fechine fala sobre seu livro ‘‘Um bufão no poder’’, onde juntamente com o autor Paulo Demuru, analisa, a partir da abordagem sociossemiótica, o papel bufônico de Bolsonaro e a ligação do presidente com seus seguidores.

Yvana Fechine é jornalista e doutora em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. É professora do Departamento de Comunicação Social e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), e pesquisadora associada ao Centro de Pesquisas Sociossemióticas, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. 

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Observatório da Imprensa – Por que você chama o presidente de bufão? O que seria ser um bufão?

Yvana Fechine – Na verdade, o termo ‘‘bufão’’ é uma categoria analítica usada pelo semioticista Eric Landowski num texto escrito em 1997, onde ele compara a Política com uma representação teatral. Nessa representação o político constrói seu papel para conquistar a popularidade, ser amado pelo povo. Landowski separa em quatro categorias de papéis (o homem de ação, o herói mediador, a vedete e o bufão). O homem de ação é o político do tipo mais tradicional que conhecemos, por assim dizer. É aquele que é mais racional, que faz, que é eficiente, que é executivo. Uma pessoa que separa a vida pessoal da vida profissional e percebo que é até um pouco como Tarcísio de Freitas (candidato a governador de São Paulo) está tentando vender sua imagem nacionalmente. O herói mediador é o tipo de político que encarna na sua pessoa um projeto coletivo. O ex-presidente Lula faz muito bem este papel, tanto que seu slogan é que ele não representa uma pessoa, mas sim uma ideia. Só é possível vender essa imagem se a pessoa também tiver um histórico de engajamento em algum tipo de movimento ou luta pessoal, do contrário não é possível ser depositário de um projeto coletivo. Os bufões e as vedetes são o que Landowski chama de ‘‘cosmeticistas da política’’, são políticos que se vendem quase como um produto. A vedete se vende justamente pelo politicamente correto, é aquele tipo de político que se transmuta um pouco para agradar a determinados nichos, o João Dória é o perfeito exemplo deste papel. 

Já o bufão é aquele que não estava destinado a chegar ao poder já que este aposta na negação da Política. Negar a Política vai além de dizer que não se é político, é negar todo o comportamento que se espera de um político, toda a liturgia do cargo, inclusive todos os protocolos da situação política. É por isso que o político bufão pode ser incoerente, mentiroso e grosseiro. Este tipo de comportamento já é esperado por todos, uma vez que essa foi a imagem construída pelo bufão. O presidente Bolsonaro é um bufão típico, que inclusive chegou à presidência e ganhou notoriedade desempenhando este papel.  Nos seus 27 anos como deputado federal agiu da mesma forma ao provocar, xingar, criar polêmicas e dizer frases absurdas. Um comportamento que quebra completamente a liturgia de qualquer cargo ou da representação política tradicional.

OI – O trabalho também foi baseado na observação dos perfis de Bolsonaro nas redes sociais, especialmente no Facebook, onde o presidente faz transmissões ao vivo (lives). Quais são os papéis dessas lives e de suas postagens?

Fechine. – A transmissão ao vivo foi uma forma que o presidente encontrou de fazer essa comunicação ‘‘direta’’ com o povo. Essa é uma característica do que alguns autores chamam de populismo digital, que é este simulacro de que não tem mediação, de que  o líder político tem uma relação ‘‘direta’’ com o seu povo, com os seus eleitores e que é feita a partir das redes sociais. De fato, é um efeito que é muito bem construído, sobretudo com essas lives que ele faz pelo Facebook e que agora são transmitidas por outros canais também.

Algo bem marcante é o modo que a equipe de comunicação do presidente (já que não é ele pessoalmente que atua no seu perfil do Facebook) consegue construir o sentimento de pertencimento nos seguidores. Os comentários no perfil mostram este laço, este vínculo pessoal com os vários papéis que o presidente assume. É como se houvesse um Bolsonaro para cada bolsonarista. Existe tanto o Bolsonaro religioso, como também o ‘‘cabra macho’’. O Bolsonaro messiânico e o Bolsonaro homem comum. O homem comum é aquele que está lá usando camisa de time falsificada, comendo o famoso pão com leite Moça, sendo estourado e falando palavrão.

Agora, no programa eleitoral do Bolsonaro, estão querendo mostrar ele como uma figura sensível, onde ele aparece chorando ao falar de como foi difícil o momento que levou a facada e pensou que sua filha Laura poderia ficar órfã. Eles estão no processo de construir uma imagem de não-misógino, e ao falar de sua relação com Laura querem se contrapor à fala onde Bolsonaro disse que ela foi uma ‘fraquejada’. No programa eleitoral também aparece o depoimento da primeira-dama Michelle Bolsonaro falando de como Bolsonaro é um bom pai e marido e que em casa ele escuta umas broncas dela.  

Então, o Bolsonaro faz este jogo. Ora, ele é o cara comum que come farofa, ora é o messias, ora é o presidente, ora é o não presidente, ora é o militar, o Capitão, mas que na verdade é também este homem frágil e sensível. Então ele se acomoda em muitos papéis, e isso é próprio do bufão, porque este político bufão não tem compromisso com a coerência. Ele pode assumir qualquer papel, pode mentir e se desmentir.

Bolsonaro constrói com seus seguidores também a ideia de ‘‘se sentir junto’’, se sentir junto do presidente e de se sentir junto com os outros, já que todos fazem parte do mesmo grupo. No livro, trazemos vários destes exemplos que eu peguei do Facebook, como comentários do tipo: ‘‘Nunca pensei que poderia mandar bom dia para um Presidente do Brasil’’. A pessoa se sente importante ao pensar que o presidente dá bom dia a ela, como se o presidente fosse acessível e estivesse sempre presente.

OI – Como as mídias sociais consolidaram-se como terrenos férteis para o crescimento dos populismos de ultradireita?

Fechine – Os meios de comunicação sempre foram aliados de primeira ordem dos populistas, como os grandes populistas da era do rádio, como Perón, por exemplo. É importante notar como há um investimento nas redes sociais por políticos adeptos do populismo digital, como Bolsonaro, por exemplo. Podemos dizer que boa parte do trabalho de Bolsonaro é estar nas redes sociais ou produzir eventos para as redes sociais. Eu não tenho dúvidas que a única ocupação que ele teve na pandemia foi produzir lives.

Mesmo quando ele ia para rua sob pretexto de falar com o povo, na verdade o intuito era produzir as lives que circulavam pelo Facebook. Este modo de comunicação destitui os canais tradicionais de comunicação da política, como as coletivas de imprensa, onde aconteciam os pronunciamentos do presidente e existia uma organização das instituições e da própria mídia. Estes canais foram substituídos pelo ‘‘cercadinho’’, onde os jornalistas eram acuados e agredidos pelos apoiadores dele. Assim ele falava o que queria e ninguém questionava, de forma que a grande mídia virou caixa de ressonância.

Existe um ecossistema da mídia que envolve as redes sociais, mas a grande mídia também participa. Um exemplo disso, aconteceu recentemente no dia 17 de outubro com a visita de campanha de Tarcísio Freitas à favela de Paraisópolis e houve coincidentemente um tiroteio durante a visita. Imediatamente as redes bolsonaristas e Bolsonaro insinuaram que se tratava de um atentado contra Tarcísio. O canal de notícias Globo News passou parte do dia repetindo essa especulação de Bolsonaro, alimentando essa desinformação. Ou seja, este ambiente de desinformação que ao mesmo tempo é criado pelo bufão favorece a atuação do bufão. Um político não-bufônico, um político sério não recorreria a estas estratégias. Então estes ambientes mais gerais de desinformação são criados e até agora não foi pensado um formato diferente para enfrentar isso, nem na mídia tradicional. Um exemplo disso são os debates políticos que colocam holofotes na desinformação do bufão.  Vimos isso no debate político na Band e na Globo entre Bolsonaro e Lula, onde era sabido que o Bolsonaro iria mentir e nada foi feito. Nos preocupamos muito com as peças de campanhas desinformativas, mas na verdade também vivemos hoje num ambiente de desinformação.

OI – Como se explica a adesão do bolsonarismo pelos segmentos da sociedade brasileira que são atacados pela extrema direita e acabam negando sua condição de classe, raça ou gênero, como no caso de pobres, mulheres e negros?

Fechine – Eu não tenho como responder o porquê isso acontece, mas posso dizer que estes segmentos são conquistados através da maneira que Bolsonaro usa as redes induzindo este sentimento de pertencimento. Nos comentários das postagens no Facebook foi observada essa ideia de se sentirem irmãos, de comunhão, de fazer parte de um mesmo grupo. 

Estes grupos em redes sociais são formados por um conjunto de perdedores, ressentidos, de pessoas com frustrações, mas que ao estarem juntos se sentem parte de um todo, de um grupo coeso e se beneficiam deste grupo de alguma maneira. Nós observamos vários comentários nestes perfis, mas tem um que eu acho bem emblemático, que inclusive foi colocado no livro: ‘‘Nós eleitores de Bolsonaro não nos conhecemos pessoalmente, mas nos tornamos uma grande família’’. Ou seja, a pessoa que tem algum tipo de frustração e se sente de algum modo discriminada no seu grupo social encontra um grupo ao qual se filia, e basta botar uma camiseta amarela e uma bandeira do Brasil nas costas que este grupo aceita a pessoa. Estes grupos funcionam como grupo de reconhecimento e pertencimento.

Além disso, tem a questão identitária, porque os vários papéis que Bolsonaro assume permite assumir inclusive identidades. Então o machista se identifica pelo machismo. O evangélico se identifica pela religião. O que é grosseiro, politicamente incorreto e ignorante, se identifica pela ignorância. Este ‘‘ele é como nós’’ é muito poderoso.

OI – Mas como uma pessoa LGBTQIAP+ pode se sentir incluída e defender um governo com um presidente que diz que prefere um filho morto num acidente do que gay, por exemplo?

Fechine – No plano racional é absolutamente impossível a gente conceber isso, mas o que acontece é pelo sensível que toca a pessoa de alguma maneira, às vezes até pelo fato de você ser reconhecido naquele grupo. Como por exemplo, o Sérgio Camargo que era presidente na Fundação Palmares, que é negro, e tinha um discurso racista. Mas isso não representa a maioria, tanto que há uma rejeição maior entre as mulheres. Mas, claro, existem as mulheres, principalmente as evangélicas, que se identificam com Michelle Bolsonaro, com o papel da mulher submissa recatada e do lar. A gratificação deste tipo de mulher vem de um reconhecimento identitário, como por exemplo, se ela não tinha vínculo social com ninguém, mas de repente ao entrar num grupo de zap, um monte de gente passa a reconhecê-la. Esses grupos constroem uma partilha de valores e mais do que isso uma partilha de sentimentos, como por exemplo o ódio, e o ódio é mobilizador.

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Nicole De March é mestre e doutora em Física (UFRGS). Pós-doutoranda do LABTTS (DPCT-IG/Unicamp) e membro do Grupo de Estudos de Desinformação em Redes Sociais (EDReS).