A imprensa não está dando voz para o andar debaixo na transição do governo de Jair Bolsonaro (PL) para o do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT). A cobertura está focada nos grandes temas nacionais e como as forças políticas estão se articulando no cenário nacional. Não tem como ser diferente. Mas é preciso também mostrar que existe um batalhão de mais de 30 milhões de pessoas passando fome. E que os garimpeiros que invadiram as terras indígenas e os madeireiros clandestinos que estão devastando a Floresta Amazônica estão trabalhando freneticamente para retirar o máximo que puderem de ouro e toras de madeiras antes do novo governo assumir. E que organizações criminosas, como o Primeiro Comando da Capital (PCC), de São Paulo, estão instaladas na fronteira com o Paraguai e trabalham para transformar o território nacional em passagem para a cocaína dos cartéis produtores da Colômbia para os mercados consumidores dos Estados Unidos e da Europa. Esse processo já aconteceu no México e resultou no surgimento de cartéis de distribuição de drogas que tornaram o país um dos lugares mais violentos do mundo. Citei esses casos. Mas podia ficar aqui escrevendo sobre o assunto por muito tempo. É sobre isso que vamos conversar.
Antes de começar a nossa conversa julgo necessário mostrar as minhas credenciais sobre esse assunto para os colegas e leitores. Tenho 72 anos, 40 e tantos na lida de repórter investigativo, sendo uns 30 em redação, e foquei a minha carreira em conflitos agrários, migrações e crime organizado nas fronteiras. Portanto, viajo muito em busca de histórias para contar. Vamos à nossa conversa. Em 1985, os militares que haviam derrubado, em 1964, o presidente João Goulart, o Jango, entregaram para os civis um país mergulhado na hiperinflação – matérias na internet. O capitão reformado do Exército Bolsonaro foi eleito em 2018 e entregará o governo para o seu sucessor, Lula, com um rombo de R$ 400 bilhões, dinheiro usado para tentar se reeleger.
Oficialmente, as Forças Armadas não participaram do governo Bolsonaro. Mas um grupo de generais (ativa, reserva e reformados) e outros mais de 6 mil militares de várias patentes integraram a administração federal por sua conta e risco. Com essa participação eles reforçaram na opinião pública a ideia de que as Forças Armadas estavam no poder. Não é por outro motivo que o vice-presidente eleito em 2018 foi o general Hamilton Mourão. E o vice na chapa de reeleição era o general da reserva Braga Netto. Os outros dois pilares políticos do governo eram os parlamentares do Centrão e os pastores evangélicos neopentecostais. Ninguém apoiou o governo por ideologia, fé ou outro motivo qualquer que não fosse o dinheiro.
Esse contexto que contei resultou em um dos governos mais confusos da história do Brasil. Parte dessa história é contada no documento de 1,3 mil páginas do relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado da Covid-19, CPI da Covid, como ficou conhecida. Ali estão as digitais no governo Bolsonaro na morte de 670 mil brasileiros pelo vírus – há matérias na internet. Dentro dessa confusão precisamos mostrar para o nosso leitor as pessoas que são diretamente atingidas pelos problemas. Não adianta escrever que essa é uma transmissão de governo diferente de todas as outras. É preciso mostrar isso. Claro, não temos como pendurar em cada notícia uma tese sobre o assunto. Mas podemos começar a colocar pessoas atingidas pelo problema e dirigentes que os representem nos movimentos populares. Vou lembrar um detalhe aqui. Temos publicado estatísticas mostrando que houve uma queda nos homicídios e outros tipos de crimes no Brasil.
A maioria das estatísticas é feita por órgãos oficiais. Podemos confiar nas estatísticas distribuídas pelo governo? O manual do bom jornalismo recomenda que pelo menos o leitor seja informado sobre quem fez a pesquisa. Outro assunto que ficou boiando e precisa ser lembrado nesse momento. Parlamentares foram eleitos com o dinheiro sujo da venda do ouro extraído das terras indígenas e da madeira contrabandeada para o estrangeiro. Quem são eles? Esse é o momento de mostrar a sujeira que está debaixo do tapete. Lembram que, ao assumir, Bolsonaro demonizou as organizações não governamentais, especialmente as da área ambiental? As que sobreviveram têm uma história para contar.
Claro que para robustecer as matérias é necessário ter repórter na estrada. O que significa gastar dinheiro. As grandes empresas de comunicação estão operando com um número escasso de repórteres e sem recursos para viagens. Mas estão investindo em outros setores da comunicação, como o entretenimento. São duas coisas diferentes. Apesar de alguns editores tentarem vender para os jovens repórteres que jornalismo e entretenimento são a mesma coisa. Não são. Todos sabem disso, incluindo os editores. Até agora, a cobertura das confusões do governo Bolsonaro tem sido feita de maneira muito competente pela imprensa. Em parte, graças ao trabalho dos repórteres. A cobertura da transição é a cereja desse bolo. Imagine a cena.
As negociações entre os políticos na transição do governo estão sendo assistidas por enorme contingente de interessados. Claro, as pessoas que estão discutindo foram eleitas pelo voto popular para fazer justamente isso. Mas nada impede que os jornalistas deem visibilidade para os interessados no assunto. Uma lembrança aos colegas. O momento que vivemos é histórico por todos os motivos que conhecemos. Portanto, o que for escrito fará parte da história. Nada é mais importante para um repórter do que ter uma matéria sua citada por um historiador. Isso é maior que qualquer prêmio de jornalismo. Podem acreditar.
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Carlos Wagner é repórter, graduado em Comunicação Social — habilitação em Jornalismo, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul — Ufrgs. Trabalhou como repórter investigativo no jornal Zero Hora (RS, Brasil) de 1983 a 2014. Recebeu 38 prêmios de Jornalismo, entre eles, sete Prêmios Esso regionais. Tem 17 livros publicados, como “País Bandido”. Aos 67 anos, foi homenageado no 12º encontro da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI), em 2017, SP.