“Apesar da cobra já ter sido criada, cortar a sua cabeça não será possível nesta eleição. No entanto, impedir que ela envenene letalmente as instituições, sim. Há uma chance. Eleger Lula. Mas não apenas. Precisamos dialogar muito nos duros anos que virão. ”
“Enquanto há linguagem, há manipulação”. O filósofo Pierre Levy usou esta máxima em recente entrevista à Borja Hermoso para o El País sobre o fenômeno das fake news como instrumento do caos na cultura democrática. Esta compreensão é importante para uma distinção semântica basilar na sustentação desta tese e cujo seu uso linguístico tem regido os ataques e as defesas na atual disputa eleitoral: a diferença entre bolsonarismo e eleitores de Bolsonaro.
O primeiro trata-se de um uma ideologia da recente extrema-direita populista reacionária e anti sistêmica que se proliferou através de uma figura grotesca do submundo da política brasileira; o segundo trata-se, em grande parte, de eleitores comuns que inconformados, desiludidos ou insatisfeitos com a realidade da representação política, vê nesta figura um caminho radical viável. Com o primeiro, o enfrentamento dá-se nas trincheiras da defesa institucional e democrática, já com o segundo, devemos atenção e um cuidadoso diálogo.
O salto visível do início deste fenômeno aconteceu nas manifestações de junho de 2013, uma espécie de “evento crítico” [1] que abriu a fenda da nova extrema-direita no país. Seu conteúdo era catastrófico, embora sua forma gerava certo entusiasmo social, consistindo na aleatoriedade de reivindicações, orientada por determinada coesão e desorganizadora noção antissistema. Entusiasmados pelo abstrato combate à corrupção, posso afirmar que muitos dos participantes deste movimento foram os revoltados sem (aparente) causa (evidente). Inclusive eu que também enfileirei o caldo destas manifestações.
Alguns anos depois ao “Vem Pra Rua”, organizei uma programação sobre diversidade sexual na minha pequena cidade do interior. Durante a sessão na Câmara de Vereadores, obedecendo a crescente agenda do fundamentalismo religioso, um grupo de pastores tentou barrar parte desta programação, lotando a planária com pessoas simples, mas amedrontadas por um pânico moral ameaçador. Essas pessoas eram tratadas pelos pastores como “povo de Deus”. Num dado momento da sessão, um vereador sugeriu que quem estava ao lado “esquerdo” defendia a ideologia de gênero, já quem estava do lado “direito” eram os defensores do “bem” e da “família”. Desenhava-se assim outro efeito de grafia local da política teológica nacional: “nós contra eles”.
Hoje ainda vemos os efeitos desta ideologia extremista-reacionária que encontra no terreno fértil de profunda crise econômica, moral e ética do país espaço ideal para semear. Assim, convoca os “brasileiros médios”, que são genuinamente pobres e conservadores, a germinação e colheita caótica. Desta forma, a adesão do “povo” a esta penumbra radical não é um mero defeito moral de quem o pratica, mas a execução de um nítido projeto de nacionalização do cristianismo reacionário, instrumento principal de manipulação da extrema-direita no mundo, conforme aponta Ronilson Pacheco em recente artigo no The Intercept Brasil.
O preocupante no caso brasileiro é que em menos de uma década o principal representante deste modelo de sociedade incivil lidera uma das maiores correntes eleitorais do país. Por este motivo, pessoas que até ontem estavam alheias às lutas dos direitos humanos, conseguiram compreender o perigo bolsonarista apenas agora, tardiamente. Diferente de ativistas como eu, que já somos suas vítimas (ou bode expiatórios) há alguns anos.
Letícia Cerasino confere a ideia de “públicos anti estruturais” para entender a recente ascensão da extrema-direita nas redes digitais através de um “sistema sociotécnico global, a partir do compartilhamento de dinâmica cibernéticas comuns”. Transportando essa ideia para o comportamento não necessariamente digital, estas “alas antidemocráticas e ultraconservadoras” sempre existiram nos confins da vida política, no entanto, são nestes “eventos críticos” de crise institucional que elas encontram oportunidades para imersão em efeito cascata, contaminando todos os interessados em dominar, lucrar e validar sua violenta opressão. Portanto, o que antes não se sobressaia, hoje se impõe a partir das últimas revelações eleitorais.
Observamos a ilustração de cores sobre as zonas regionais do país, após este triste primeiro turno, divulgadas em muitos veículos de informação. Quem as viu tem absoluta convicção que o Brasil está dividido em dois pedaços. Ledo engano! Este tipo de gráfico, pode ser didático para o jornalismo político, mas manipula a real mensagem. O Brasil não está adjetivamente dividido, mas hiper fragmentado em sua substância de valores. Esta condição dá vazão a estes públicos anti estruturais (pequena, mas significativa rede de operação do bolsonarismo) atuarem nas fragilidades emocionais e psíquicas dos estratos sociais mais pobres, convertendo em voto modelos repetitivos de doutrinação. Estrategicamente, encontram na igreja o principal instrumento tático para a execução do projeto.
Por isso, é descolado da realidade e falacioso do ponto de vista retórico, entender o fenômeno bolsonarista como um conglomerado de pessoas que surgiram do nada e hoje domina o mal aniquilador na sociedade brasileira. Estes sujeitos, muitos de nossos familiares e amigos, foram atingidos em contextos desfavoráveis da crise e servem como forças que colidem entre o molar e o molecular da ameaça democrática.
O primeiro turno também nos revelou que Bolsonaro alçou ao patamar de viabilidade e o projeto representado por ele se consolidou definitivamente através das urnas e na representação parlamentar. Se antes era subestimado, hoje não é mais. A direita moderada se dividiu, uma parte convergiu com as adversidades e outra se corrompeu na lama da história. Apesar desta cobra já ter sido criada, cortar a sua cabeça não será possível nesta eleição. No entanto, impedir que ela envenene mortalmente as instituições, sim. Há uma chance. Eleger Lula. Mas não apenas. Precisamos dialogar muito nos duros anos que virão.
Virar voto é entender que o Brasil profundo deve ser acessado em contornos dialéticos, em autoritarismos retóricos que imponham uma suposta “ética superior”. O saber local tem seu lugar. O exercício é encontrar no outro contraditório o eixo interseccional da dor compartilhada. Sem dogmas. Ouvindo e convergindo. O “nós contra eles” é uma antagonia equivocada, pois organiza uma fronte de batalha onde inimigos precisam ser aniquilados. Grande parte do eleitorado brasileiro não alcança a abstração do conceito “democracia” e não há outra possibilidade a não ser firmação de consensos, retrações e alianças para uma política anti-guerra [2].
Embora nosso cercado social costuma não deixar que enxerguemos para fora da bolha, é imperativo conformar o entendimento de que há eleitoras de Bolsonaro mulheres, como também há negros, pobres, dissidentes sexuais, nordestinos, desempregados e, por incrível que pareça, pessoas adeptas aos princípios democráticos. Este público não é composto apenas por evangélicos reacionários loucos por poder e as elites empresariais que repugna pobres, embora estes sejam os setores que, verdadeiramente, sustentam seu projeto. Ataques morais, insinuações ou acusações moralistas, apontando hipocrisia à base evangélica que, por excelência, tem estilos de vida e valores próprios, imaginando que “crente” é burro, desonesto ou precisa de uma (re)ssalvação iluminada à razão é um erro grave para, de fato, convencer aquele que consideramos ser o “outro-sabotador”. Esta presunçosa superioridade ofende e efervesce as bases ideológicas contrárias à democracia.
É nítido que a estratégia de Bolsonaro é adubar a terra neste terreno de crises, semeando mais sementes conspiratórias em meio a ervas daninhas para o arraso do campo progressista. Portanto, o “bolsonarismo” não é apenas um defeito moral, mas um projeto pobre de poder que encontra nas circunstâncias caóticas oportunidades de fortalecimento. Estes são provocados por diversas forças que colidem em contextos de antagonismo social e econômico, acirram conflitos radicalizados e, assim, deixando nosso país cada vez menos intolerante ao “outro diferente”. Infelizmente, estes comportamentos provocam efeitos danosos em ambos os lados da polarização, por mais justa e digna que os princípios da luta podem ser. Nossa função, portanto, não é utilizar as ferramentas do opressor e nem provocar ainda mais divisões, mas nos engajar na tarefa hercúlea de reconciliar o Brasil consigo mesmo.
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Notas:
[1] Conceito inspirado na antropóloga Mariza Peirano sobre rituais como estratégia analítica.
[2] Conforme já defendido pela filósofa Judith Butler em relação as minorias sociais e os conflitos de fronteiras.
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Vinícius Zacarias é doutorando em Antropologia (CEAO/UFBA) e especialista em gestão pública. Pesquisa, escreve e atua nas áreas de cultura e política.