Tuesday, 03 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

Os presbiterianos de Santos no olho do furacão

(Foto: Blog Lopes)

A cidade de Santos, apesar de sua tradição e maioria católica, tornou-se, nestes últimos anos, uma espécie de centro político-religioso do protestantismo presbiteriano tradicional de origem calvinista, mas de importação norte-americana. Nada a ver com os chamados evangélicos, cujos pastores são geralmente autodidatas sem uma formação teológica universitária. Nas três igrejas presbiterianas existentes em Santos, uma delas chamada de independente e pertencente a outro sínodo, os pastores estudaram quatro ou cinco anos em seminários, tiveram vida acadêmica universitária e um importante currículo.

O ramo presbiteriano do cristianismo vem da Reforma, quando Martin Lutero, em 1517, e Jean Calvino, em 1541, em movimentos separados, romperam com a Igreja Católica. Durante alguns séculos, a Reforma (principalmente o calvinismo) significou um importante avanço em termos de liberdade individual e de modernidade, uma ruptura com os princípios éticos medievais e surgimento de novas atitudes e visões morais e sociais.

Não pode ser esquecido: as novas relações criadas com o capital e seu rendimento, as riquezas e o trabalho, abriram as portas para o capitalismo. Mas isso seria outro tema; o que nos interessa agora são certas coincidências ocorridas em Santos e relacionadas, direta ou indiretamente com a atualidade.

Quando, em 1944, o jovem reverendo (naquela época não era comum se dizer pastor) Boanerges Ribeiro chegou a Santos, a pequena congregação presbiteriana formada na cidade não era grande e não possuía um templo para se reunir. Mas surgiu uma solução: em consequência da Guerra Mundial dos países aliados contra a Alemanha, à qual o ditador Getúlio Vargas aderiu à contragosto, em 1943, foram cortadas todas as relações com a Alemanha. E a Igreja Luterana, na rua Francisco Glicério 626, no bairro do José Menino, frequentada por alemães e cujos cultos eram em alemão, também teria sido fechada, se não tivesse cedido seu templo para a congregação presbiteriana se reunir.

O templo da Igreja luterana tinha sido construído em 1935, com base numa planta arquitetônica enviada da Alemanha; era e ainda é totalmente inadaptado ao clima santista, úmido, quente e abafado. Com seus vitrôs estreitos permitindo pouca ventilação, ideais para os rigores do inverno alemão, o templo se transformava num forno no verão.

Com a entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial contra a Alemanha, todo o litoral foi considerado área de segurança e tanto o pastor luterano como as famílias alemãs dos 750 membros da igreja tiveram de deixar a região. O templo luterano só não foi confiscado pelas autoridades federais e locais por ter sido entregue e emprestado totalmente à congregação que assim se tornou a Igreja Presbiteriana de Santos.

O confisco e expulsão dos imigrantes alemães e seus descendentes fixados no litoral paulista já mereceu boas pesquisas e análises. Os interessados poderão ter uma visão geral da época, consultando um resumo do professor e pastor luterano Sérgio Luiz Marlow, “Os Súditos do Eixo, O Luteranismo na visão das autoridades brasileiras durante a Segunda Guerra Mundial”.

O templo emprestado foi devolvido aos luteranos em 1959, quando os presbiterianos construíram seu próprio templo. Com o crescimento da comunidade presbiteriana, um grupo se separou e criou a Igreja Jardim de Oração, onde o pastor Milton Ribeiro exercia seu ministério por 28 anos, quando foi nomeado ministro da Educação pelo presidente Bolsonaro.

Estava faltando apenas acrescentar que o atual ministro do STF, André Mendonça, nasceu e se criou na Baixada Santista, sendo também de profissão de fé presbiteriana.

O mineiro Boanerges Ribeiro morou poucos anos em Santos, onde deve ter ficado impressionado e marcado ao ver a adesão dos estivadores, portuários e trabalhadores no transporte do café ao Partido Comunista, logo após a libertação da prisão do líder Luís Carlos Prestes. Nas primeiras eleições, logo depois do fim da ditadura de Vargas, os comunistas elegeram mais da metade dos vereadores da Câmara Municipal, e a cidade ficou conhecida como Santos, a Vermelha. Isso durou pouco; os mandatos dos vereadores, deputados e senadores foram cassados em todo o país e o Partido Comunista foi colocado na ilegalidade.

O filho de Boanerges possuía um problema raro no coração, que deveria ser tratado nos EUA. Acabou indo e ficando por lá alguns anos; tornou-se tornou pastor em duas igrejas norte-americanas, onde reforçou seu conservadorismo e fundamentalismo. De volta ao Brasil, inteligente, culto, escritor, foi presidente do Instituto Mackenzie e chanceler da Universidade Mackenzie. Entretanto, seu renome está mais ligado ao fato de ter apoiado o Golpe militar de 1964 e por ter feito uma limpeza nos seminários presbiterianos de Campinas e Recife, já como presidente do Supremo Concílio da Igreja Presbiteriana do Brasil, demitindo professores e alunos suspeitos de comunismo. Falou-se mesmo no equivalente às IPMs nas igrejas.

Uma visão ampla da situação do presbiterianismo não só na Baixada Santista mas em todo Brasil, antecedentes e destaques a partir de 1960, foi publicada em 2017, na revista Unitas, acessível pela Internet, pelo teólogo batista Isaque de Góes Costa, sob o título “Representações, exclusões e apoio ao Golpe Militar no Presbiterianismo: uma análise histórica da tendências conservadora e ecumênica na Igreja Presbiteriana do Brasil”.

A adesão da maioria dos dirigentes presbiterianos à campanha de Bolsonaro em 2018, apesar de suas posições nada evangélicas, só foi denunciada por um abaixo-assinado de uma minoria, contra a qual não sei se houve represálias. Tratava-se de um projeto de poder oferecido às lideranças protestantes aceito pelos presbiterianos, tendo havido generosas retribuições de Bolsonaro a esse apoio. Entretanto, como tínhamos previsto num texto publicado em julho de 2021, haverá um “Alto custo Bolsonaro para os evangélicos”. O escândalo de corrupção envolvendo o pastor Milton Ribeiro, com prisão e denúncia ao STF, vai além do que se poderia imaginar há um ano, em termos de perda de credibilidade.

As resistências, como contou a Folha, do chanceler do Mackenzie, Robinson Grangeiro e do vice-presidente do Conselho de Administração do Instituto Presbiteriano Mackenzie, Antonio Cesar de Araújo Freitas, assim como do presidente do Supremo Concílio da Igreja Presbiteriana do Brasil, Roberto Brasileiro, de comentar e colocar em discussão a prisão e acusações ao pastor, sugerindo o silêncio, que pode ser conciliador mas também cúmplice, enfraquece ainda mais a credibilidade dessa denominação evangélica, por ir no contrassenso de suas pregações morais e éticas. O que aconteceria se um simples membro da igreja fosse acusado de roubo, preso e processado?

Seja qual for a decisão tomada pela justiça, no caso a ministra Carmen Lúcia do STF, já ficou evidente o desvio de recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. Uma situação grave, impossível de ser resolvida com orações. Como foi grave para os presbiterianos terem aceitado apoiar o candidato em 2018, com sua plataforma distante dos princípios básicos do cristianismo, e de terem aceitado participar do governo praticando malversação com o dinheiro destinado às crianças e jovens nas escolas. É o caso de se dizer, se existe Deus haverá castigo!

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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro sujo da corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, A rebelião romântica da Jovem Guarda, em 1966. Foi colaborador do Pasquim. Fez mestrado no Institut Français de Presse, em Paris, e Direito na USP. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.