Saturday, 21 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Somos uma nação desorientada

(Foto: cottonbro/ Pexels)

Os resultados do primeiro turno das eleições presidenciais mostraram a intensidade da desorientação do nosso eleitorado diante das consequências da transição da era analógica para a digital. Um segmento da população demonstra um medo, não assumido, pelas incertezas geradas pela revolução tecnológica, enquanto outro propõe mudanças, mas não consegue oferecer soluções para pelo menos três grandes desafios criados pela digitalização e pela internet. 

A votação obtida pelos adeptos da corrente ultraconservadora mais conhecida como bolsonarismo agarram-se a rotinas, regras e valores que remetem a um passado conhecido e, portanto, tido como seguro. Não importam os argumentos, fatos e dados. O que predomina é o temor atávico diante da possibilidade de perda de bens e valores consolidados e a tendência compulsiva à formação de guetos sociais por meio de bolhas informativas que alimentam a polarização e a radicalização.

Já os seguidores do chamado lulismo, um amplo arco social identificado com a ideia de uma renovação de práticas políticas, regras institucionais e valores culturais, mostra uma grande dificuldade em formular propostas inovadoras para os três grandes desafios criados pelas novas tecnologias de comunicação e informação. Apesar de apostar no futuro, o lulismo também recorre ao passado como forma de concretizar sua plataforma política. O slogan “vamos ser felizes outra vez” procura despertar na memória das pessoas algo que já passou, e que não deve se repetir, porque o mundo mudou.

O bolsonarismo não tem futuro porque vive no passado e se recusa a abandoná-lo porque nele encontra a segurança patrimonial e cultural. Mas numa nação desorientada, este segmento tem a vantagem porque oferece uma solução ilusória para um problema real. A fuga da dúvida e das inseguranças alimenta o caudal eleitoral de um movimento cujo ideário não resiste aos mais primários argumentos, como é o caso da oposição às vacinas, o terraplanismo e o armamentismo civil. Mas é justamente a irracionalidade que funciona como grande agregador eleitoral dos ultraconservadores. 

Três desafios angustiantes

O bolsonarismo pratica um populismo eleitoreiro ao conceder benefícios financeiros à população mais pobre só para ganhar votos ignorando que isto implica custos futuros, possivelmente impagáveis. A extrema direita brasileira e mundial enfia a cabeça na areia como avestruzes quando ameaçados. Ela fecha os olhos para o futuro, o que seguramente a levará para um beco sem saída, e daí para a violência e o arbítrio.  

O problema do lulismo é que seus adeptos sabem que a mudança é inevitável, não a temem, mas ainda não conseguiram produzir soluções concretas para os desafios da desigualdade na sociedade contemporânea, do futuro do trabalho e do manejo da informação. São os três mais angustiantes desafios gerados pela transição à era digital, além de muitos outros menos urgentes e menos complexos.  É a resposta a estes três desafios que pode dar às tendências inovadoras um novo alento político/eleitoral capaz de superar o medo dos ultraconservadores.

A desigualdade é uma das principais características da sociedade contemporânea. Há dois tipos de desigualdade. As, por assim dizer, naturais, como as diferenças de sexo, raça, cultura, localização geográfica, idade, para citar as mais notórias. E existem as diferenças criadas pelo homem como as desigualdades econômicas, sociais e políticas. As primeiras alimentam a diversidade de visões de mundo que, por sua vez, estão na base da produção de novos conhecimentos e da inovação social, econômica, política e cultural. Já as desigualdades criadas pelo homem destroem o tecido social, abalam a economia e provocam conflitos letais. São elas que ameaçam as comunidades em que vivemos.

Dificilmente será possível acabar com toda a desigualdade produzida pelo homem, mas para reduzi-la a limites toleráveis e compatíveis com as exigências de crescimento econômico será necessário mudar muita coisa no sistema financeiro e na forma como as riquezas de um país são distribuídas a seus habitantes.  Não há como fugir da implantação do sistema de renda mínima universal que por sua vez implicará na redução dos ganhos da parte mais rica da população. Os mecanismos políticos e financeiros sobre como este sistema será implantado ainda são uma grande incógnita, mas é certo que os bilionários perderão parte de sua fortuna. 

A questão da renda mínima está ligada diretamente ao problema do trabalho nas próximas décadas. A população mundial continua crescendo, mas há cada vez menos postos de trabalho em virtude do avanço da automatização na produção de bens e serviços. Assim, o desemprego tende a continuar crescendo mesmo com a adoção de incentivos à contratação de trabalhadores e trabalhadoras, pouco ou não qualificadas, que formam a esmagadora maioria dos desempregados. O que fazer com este excedente de mão de obra? Nenhum político no planeta conseguiu até agora dar uma resposta a este problema. A população é levada a não pensar no que fazer porque os candidatos só oferecem soluções imediatistas e eleitoreiras.

Perplexidade informativa

Mas é no manejo da informação que reside a mais perturbadora questão dos tempos atuais. A avalanche informativa na internet criou condições para o surgimento do fenômeno das fake news e com ele a desconfiança sobre o que é dito ou publicado, por pessoas e meios de comunicação. A contaminação viral da incerteza se choca com a cultura dicotomia do certo ou errado, bom ou mau, justo ou injusto, belo ou feio. 

Nossa estrutura cognitiva está sendo gradativamente abalada e com ela nossa segurança comportamental. Estamos perdendo confiança naquilo que vemos, ouvimos e sentimos porque já não sabemos mais se os nossos cinco sentidos estão sendo enganados por narrativas ou discursos falsos, distorcidos ou fora de contexto. As dúvidas informativas nos empurram para as bolhas e tribos que podem levar ao sectarismo e xenofobia. 

Combater essas tendências é um processo longo e complicado, mas que precisa ser iniciado imediatamente, enfrentando a hostilidade dos ultraconservadores que no momento ainda dispõem de poder político e financeiro para ocultar a dura realidade desta era de incertezas. O maior desafio é combinar alternativas imediatas, como ganhar uma eleição, com a exploração de soluções de médio e longo prazo, que geram polêmicas, mas poucos votos.  

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Carlos Castilho é jornalista com doutorado em Engenharia e Gestão do Conhecimento pelo EGC da UFSC. Professor de jornalismo online e pesquisador em comunicação comunitária. Mora no Rio Grande do Sul.