Wednesday, 13 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1313

Um corte, um voto

(Imagem de Mariana Anatoneag por Pixabay)

Após apertarem as mãos, os candidatos vão ao púlpito. Dão um olá à plateia e ao mediador, postado no centro do palco. O debate tem início. O público, atento, escuta as propostas, acompanha as questões dos especialistas aos debatedores e pondera a respeito de réplicas e tréplicas. Ao fim do evento, a racionalidade desse escrutínio terá depurado propostas, iluminado ideias e evidenciado eventuais falhas dos candidatos. Bem-informado, o público volta para casa com melhores ferramentas para decidir seu voto, em um contínuo incremento do bem-estar público.

No geral, isso é mais ou menos o esperado de um debate eleitoral. Em debates, há expectativas quanto ao uso do discurso e da lógica. Da parte dos debatedores, há regras acordadas sobre os limites da arena discursiva e o uso do raciocínio, em vez da violência, e um compromisso com o diálogo e o respeito mútuo. Da plateia, espera-se que o conteúdo discutido seja acompanhado de modo racional, atento à estrutura dos argumentos, e que esse esforço seja fruto de um bom senso coletivo.

É verdade que essas expectativas são abstrações. Há sempre a possibilidade de que candidatos joguem abaixo da linha da cintura em debates e que as ferramentas da retórica sejam usadas para distorcer argumentos e confundir o público. Assim como é possível que membros da audiência se entreguem às paixões de torcida ou que desprezem as melhores práticas, tentando atropelar as ideias dos adversários. De todo modo, essas abstrações sobre um “debate ideal” têm servido, há alguns séculos, para balizar conversas públicas como parte do maquinário democrático. Dos tempos da imprensa até o rádio, e depois a TV, essa noção de debate como confronto de ideias entre homens públicos, com suas regras e modos de discurso, tornou-se parte importante do processo de escolha do voto.

A chegada dos debates políticos aos novos meios de comunicação levou a adaptações. Informados por uma cultura livresca, os debates presenciais da era da comunicação impressa, no século 19, chegavam a se estender por horas entre a argumentação inicial e sua tréplica. Ao migrarem para o rádio, na primeira metade do século 20, os debates se adaptaram a diálogos mais curtos, com um alcance mais amplo, numa dupla adaptação: tanto à natureza imediata e de largo alcance do rádio quanto à atenção do público, em sua relação com o tempo e o discurso desse novo meio.

Com a expansão da comunicação de massa, o jornalismo e os jornalistas também se consolidaram como mediadores do debate público. Grandes meios de comunicação se posicionaram como parte organizadora das democracias liberais do Ocidente, com veículos e jornalistas profissionais encarregando-se de ordenar os fatos do mundo e informar o público. Isso significou, entre outras coisas, organizar e mediar debates eleitorais. Nesse contexto, o trabalho jornalístico, ainda que restrito às necessidades e ao funcionamento específicos de cada meio de comunicação, parece ter mantido, de algum modo, a baliza do debate racional iluminista como horizonte. Mesmo com a chegada da televisão, com seu reordenamento discursivo e novos formatos de documentação e exibição, ainda era possível encontrar essa noção de debate como obediência a certa lógica argumentativa, um diálogo linear baseado no respeito mútuo e na racionalidade.

O discurso televisivo é um terreno escorregadio. Sua linguagem, assentada em edição contínua e um gestual cênico próprio, lança o público num jogo que alterna o real e o encenado. Sua adaptabilidade ao entretenimento e ao show business, e seu tratamento da audiência como multidão passiva, mobilizam o imaginário e o debate público. Na era do homem público tornado celebridade televisiva, com marqueteiros esculpindo a imagem de políticos com truques de câmera e trilha sonora, o debate eleitoral parece ter se tornado, ele também, um espetáculo. Mesmo assim, a ocasional mistura de teatro e institucionalidade democrática de um debate televisivo ainda tem, como forma, a representação do debate público tradicional.

E então surgiu a rede social, e as celebridades deram lugar aos influencers.

A lógica das redes sociais, com suas plataformas estruturadas na oferta de conteúdo não submetido a uma continuidade temporal e descolada de um encadeamento contextual, parece ter aberto caminho à implosão de uma lógica discursiva que também servia de estrutura e baliza ao maquinário tradicional da democracia representativa. Enquanto o debate televisivo (e o jornalismo que o estrutura) operava dentro de uma lógica de tempo, coesão interna e interesse cívico, as redes sociais criaram um novo cenário. A transição do discurso televisivo para a linguagem fragmentada e instantânea das redes sociais parece ter exacerbado a desconexão entre o discurso público tradicional e as transformações técnicas e discursivas dos meios de comunicação.

O maquinário do debate público tradicional, que deveria operar dentro de parâmetros claros e definidos, e o jornalismo, em particular, veem-se desafiados em um jogo cujas regras mudaram radicalmente. A construção do debate público como um intercâmbio de proposições lógicas e refutáveis, num contínuo refinamento da escolha cidadã via tentativa e erro, desmorona quando seu sentido argumentativo — seu início, meio e fim — é fragmentado logo de saída. E não há debate possível, ou esclarecimento público razoável, quando uma das partes do debate passa a tratar os intercâmbios argumentativos apenas como oportunidades para cortes em redes sociais.

Se a transição do debate político para a televisão transformou a disputa de programas em espetáculo, sua migração para plataformas como o TikTok parece inaugurar uma era da política como entretenimento rápido e monetização. O resultado é uma política e uma comunicação pública nas quais, cada vez mais, a racionalidade e o interesse coletivo correm o risco de serem substituídos por uma lógica de entretenimento e gratificação instantânea.

Nesse curto-circuito, resta o desafio de como adaptar a arquitetura do debate democrático à natureza maleável e não linear das redes sociais. E, mais importante, como fazer isso a tempo.

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Tiago C. Soares é jornalista e doutor em História Econômica pela USP. É integrante do grupo de pesquisa Jornalismo, Direito e Liberdade (ECA-IEA/USP), e pesquisador bolsista do Programa José Reis de Incentivo ao Jornalismo Científico (Mídia Ciência), pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).